JOÃO GARÇÃO & NICOLAU SAIÃO
FOTO DE ABRIL
O pai chegava tarde…A mãe e os avós
(que o mano era pequeno) estavam sempre comigo.
Então o pai chegava, perguntava da escola
perguntava das coisas que a mãe lhe sussurrava.
arranjava-me o lanche, chamava-lhe merenda
e eu ia no autocarro (sem o mano que tinha)
Eu não sabia de anos só sabia de meses
– o que a mãe me ensinara e que na escola aprendia –
(o mano era pequeno!) eu jogava sozinho.
O pai que vinha tarde não jogava comigo.
E o pai que vinha tarde mesmo se era Domingo
chegou perto da porta na manhã daquele dia.
Havia gente na rua e gente que gritava
E na televisão muitos desconhecidos.
E o pai depois daquilo disse-me: anda jogar
Anda jogar meu filho pois já não há fascismo.
E o pai que vinha tarde jogou comigo à bola
na rua da Amoreira a rua pequenina
E a mãe chorou ao ver-nos e eu não a entendia
a mãe que era só minha (e do mano que havia)
Eu sabia de meses mas não sabia de anos
E jogava com o pai pois já não há fascismo
A avó não gritava Levava-me p’la mão
até ao autocarro E para a Escolas eu ia
Sozinho ia p’rá Escola (o mano era pequeno…)
– E eu e o pai jogávamos quando eu de lá vinha
Jogávamos jogávamos – eu e o pai jogávamos
E o mano (era pequeno!) olhava sentadinho
E a mãe também por vezes nos olhava a jogar
Pois já não há fascismo Pois já não há fascismo!
ABRIL ANTECIPADO
Em Lisboa, na rua
do Alecrim, recordo-me como
se fosse hoje: uma casa
sombria, onde foi bom ficar
minutos e minutos entre memórias
quotidianas de velhos alfarrábios, livros
para passeios vulgares de compra e venda. Ali
parei. Como um barco, uma nuvem, uma presença
obscura de gentes para sempre perdidas, nessa
humilíssima loja me detive: o pó, o ping-pong
da conversa. E veio a esperança saltando sobre nós
como se o oceano nos tocasse nos olhos, lembranças
de Índias sem pimenta e sangue. E logo, por acaso
um estrondo lá fora. Mistério. Cumplicidade. E assim
tive tempo de Abril antecipado na fala do colega
de amargura: “Ainda não é a ‘bernarda’, caro amigo. Podes continuar
a ver os livros que aí estão. Ainda (que chatice!)
está por anos!”. Nessa tarde, numa
vendedeira de rua, comprara pêssegos. Era
em Julho. Nas caras que passavam pareceu-me distinguir
por entre o resto todo, agonia e raiva. Homens, mulheres
crianças como em todos os tempos. Senti então, enquanto
no Tejo tombava um sol devastado, que um dia
um estrondo não seria apenas o dum pneu que estoira. O coração
tivera, pobre dele, Abril antecipado e, aberto
ficava de conserva mais uns tempos, criando
talvez outras janelas para todos os lados, esperando
para todas as horas a hora enfebrecida como um sulco de lume
nas espáduas dos amantes. A hora
ardente e dura como cimento secular. Foi isto em
setenta e dois. Depois
a vida continuou, vaga e solene, tenaz e sonolenta. Tive
amores e amigos mortos, alguns suicidados, outros
feridos de pasmo e solidão. E rochedos erguidos
nos caminhos do mundo. E quando Abril chegou
com seus favos, seus deuses, suas flores
suas praias, seus bosques, sua chuva benigna
a memória da esperança não morrera. O poeta fala
no tempo. É seu o tempo imenso
dos vivos e dos mortos, dos que nunca
contemplaram face a face o seu destino. Por ser um espelho
ardido, é a palavra. O signo do instante destruído. Foi
o Abril dos ombros curvados que me deu Abril.
Mesmo que Abril nada me desse, senão
senão esta tristeza de tão pouco
Abril ter sido para uma sede de primaveras, feitas
para o pão, para o riso, para o tempo intacto
do livre Verão dos homens sob as estrelas de Agosto.
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