Foto de Abril

 

JOÃO GARÇÃO & NICOLAU SAIÃO


Caros confrades & amigas/os
 
  Neste dia de específica lembrança e celebração, endereço aos convivas do “Inner circle” (e depois aos do “Outer circle”) a minha saudação cordial. 
  Uma vez que, apesar das imperfeições e eventuais caquexias, vivemos hoje numa Democracia – de tipo ocidental e livre, uma dessas que o corajoso mas totalitário estalinista militante, dr. Cunhal, referiu numa entrevista famosa a Oriana Fallaci “não iria garantidamente implantar-se em Portugal“. Mas como também disse Mário Cesariny, numa Comunicação não menos conhecida, “felizmente equivocou-se, para bem de todos nós“.
 
   Em memória da data que foi e da data que é, aqui vos deixo patentes os 2 poemas que João Garção e eu mesmo demos a lume e foram publicados na antologia “NA LIBERDADE – nos 30 anos do 25 de Abril”, organizada e prefaciada por Nuno Rebocho, Jorge Velhote e por mim, com chancela da  “Garça Editora” de Mário Mendes.
 

 

FOTO DE ABRIL

 O pai chegava tarde…A mãe e os avós

(que o mano era pequeno) estavam sempre comigo.

Então o pai chegava, perguntava da escola

perguntava das coisas que a mãe lhe sussurrava.

 
A escola era a Escola onde eu agora andava.
 
E a mãe pela manhã falava devagar
 

arranjava-me o lanche, chamava-lhe merenda

e eu ia no autocarro (sem o mano que tinha)

 

Eu não sabia de anos    só sabia de meses

– o que a mãe me ensinara e que na escola aprendia –

(o mano era pequeno!) eu jogava sozinho.

O pai que vinha tarde não jogava comigo.

 

E o pai que vinha tarde    mesmo se era Domingo

chegou perto da porta na manhã daquele dia.

Havia gente na rua    e gente que gritava

E na televisão     muitos desconhecidos.

 

E o pai depois daquilo     disse-me: anda jogar

Anda jogar meu filho    pois já não há fascismo.

E o pai que vinha tarde jogou comigo à bola

na rua da Amoreira    a rua pequenina

 

E a mãe chorou ao ver-nos    e eu não a entendia

a mãe que era só minha (e do mano que havia)

Eu sabia de meses    mas não sabia de anos

E jogava com o pai    pois já não há fascismo

 

A avó não gritava    Levava-me p’la mão

até ao autocarro    E para a Escolas eu ia

Sozinho ia p’rá Escola (o mano era pequeno…)

– E eu e o pai jogávamos quando eu de lá vinha

 

Jogávamos jogávamos – eu e o pai jogávamos

E o mano (era pequeno!) olhava sentadinho

E a mãe também por vezes nos olhava a jogar

Pois já não há fascismo    Pois já não há fascismo!

 jg
 

ABRIL ANTECIPADO

 

Em Lisboa, na rua

do Alecrim, recordo-me como

se fosse hoje: uma casa

sombria, onde foi bom ficar

minutos e minutos entre memórias

quotidianas de velhos alfarrábios, livros

para passeios vulgares de compra e venda. Ali

parei. Como um barco, uma nuvem, uma presença

obscura de gentes para sempre perdidas, nessa

humilíssima loja me detive: o pó, o ping-pong

da conversa. E veio a esperança saltando sobre nós

como se o oceano nos tocasse nos olhos, lembranças

de Índias sem pimenta e sangue. E logo, por acaso

um estrondo lá fora. Mistério. Cumplicidade. E assim

tive tempo de Abril antecipado na fala do colega

de amargura: “Ainda não é a ‘bernarda’, caro amigo. Podes continuar

a ver os livros que aí estão. Ainda (que chatice!)

está por anos!”. Nessa tarde, numa

vendedeira de rua, comprara pêssegos. Era

em Julho. Nas caras que passavam pareceu-me distinguir

por entre o resto todo, agonia e raiva. Homens, mulheres

crianças como em todos os tempos. Senti então, enquanto

no Tejo tombava um sol devastado, que um dia

um estrondo não seria apenas o dum pneu que estoira. O coração

tivera, pobre dele, Abril antecipado e, aberto

ficava de conserva mais uns tempos, criando

talvez outras janelas para todos os lados, esperando

para todas as horas a hora enfebrecida como um sulco de lume

nas espáduas dos amantes. A hora

ardente e dura como cimento secular. Foi isto em

setenta e dois. Depois

a vida continuou, vaga e solene, tenaz e sonolenta. Tive

amores e amigos mortos, alguns suicidados, outros

feridos de pasmo e solidão. E rochedos erguidos

nos caminhos do mundo. E quando Abril chegou

com seus favos, seus deuses, suas flores

suas praias, seus bosques, sua chuva benigna

a memória da esperança não morrera. O poeta fala

no tempo. É seu o tempo imenso

dos vivos e dos mortos, dos que nunca

contemplaram face a face o seu destino. Por ser um espelho

ardido, é a palavra. O signo do instante destruído. Foi

 

o Abril dos ombros curvados que me deu Abril.

 

Mesmo que Abril nada me desse, senão

senão esta tristeza de tão pouco

Abril ter sido para uma sede de primaveras, feitas

para o pão, para o riso, para o tempo intacto

do livre Verão dos homens sob as estrelas de Agosto.

 

ns