• FLORIANO MARTINS
    RETRATOS SEM ROSTO


NOTA

Em um entranhável ensaio sobre o terror e a piedade, diz Marcel Schwob que «a arte consiste em dar ao particular a aparência do geral». Os retratos aqui concebidos mesclam piedade e terror como formas de dedução e sedução dos desígnios e artimanhas da espécie humana. Duas mulheres me visitaram em ocasiões nem de todo propícias. A idéia de visitação coloca-se sobretudo em um sentido religioso, pois fui sempre procurado como se lhes pudesse abrandar as dores. E elas sequer vieram fisicamente. As confissões foram dadas em transe. Cabe a quem as recebe aprender a lidar com o imprevisto. Recordo um caso, no século XVI, em que diante do Diabo disse uma mulher: «estou disposta a te dar minha alma após a morte, desde que me faças o que desejo». Ainda não estimo de todo o que me encomendaram, mas o fato é que não houve caridade alguma na escritura desses retratos.

1. DÁLIA

Ao acolher-me o fez deixando claro que não me persuadiria a nada. No entanto, algo parecia dizer-me que nada faria por mim sem que o adorasse. Pude ficar ali por muitos dias, a refazer-me da perda do filho e das injúrias do pai a acusar-me de incesto e assassinato. Como encontrar lugar no mundo tomada por uma dor tamanha? Meu afável hospedeiro mantinha-se discreto, limitando-se a trazer-me alimentos. Certa vez pareceu-me ouvir: «aqui nenhum mal virá ter contigo», mas decerto era a voz de um capricho meu. Já em sonhos, lavrada em ânsias, era minha a voz que percutia os tambores da noite: «o que pretendes fazer comigo?». e todo um silêncio desesperava à minha volta quando de súbito despertava. Encolhia-me em um canto do leito, a memória do corpo ainda mencionando as carícias do filho, sussurrando seus beijos e afagos, deixando-se marcar por aflitivas delícias. Não sei se lastimo o que houve ou a ausência. Mais terríveis as províncias desse silêncio com que a noite me atormenta. E durante os dias resíduos de uma penitência desatinavam-me: «nada escapa à crueldade do desejo», repetidas vezes ouvia sempre que de mim se afastava meu benfeitor. Aos poucos fui notando como seu corpo era coberto de folhas. Sob um manto fino aveludado parecia haver um bosque inteiro a caminhar solene assegurando-me a guarida. Senti-me inundada por uma nova autoridade do destino. Junto à porta de minhas dores um outro rigor fascinava-me. Haveria que vencer as etapas da indiferença ou desvendar-lhe uma tática de sedução. Quem era aquela indulgente criatura que me recebera como uma metade aguardada? E sem que lhe prometesse nada por que me sinto agora tão atraída? Decerto nos une um mistério recíproco. «Não me confessas, mas sei o que fizeste a teu filho.» - de tanto parecer ouvir aquela voz cheguei a desconfiar que punha algo em minha comida. Nada se pode esperar de um drama que não seja complexo. Voltava a despertar apequenada em uma ponta da cama, suando imprecisões, violada por uma angústia que me dilacerava toda a harmonia do ser. Em uma dessas noites gritei um «de que me acusam?» cuja ressonância deixou-me esvaziada por algum incalculável tempo. Sonhos, memória, meu guardião, nada mais ali e sequer conseguia refletir sobre a piedosa ou terrificante ausência de tudo. Aos poucos a única evidência restante era a da fome, cercada por uma fraude de quimeras, todas com o rosto do filho, meu corpo entregue a seus lábios, a generosidade extensiva da luxúria, rostos que são mãos que são falos que me abrem como se todas as visões buscassem aperfeiçoar-se na violência oh meu anjo que persiste em mil formas ressuscitadas, tu és a semelhança buscando devoção, o cárcere, a estalagem, a obra recuperada sem fim, um mar de folhas em que me desalento seduzida pela ilusão. O que fiz de mim ao sangrar-te senão buscar toda a volúpia do mundo em um só gesto?

2 ALEJANDRA

Ela andou por aqui diversas vezes. Comentávamos acerca de seu vulto de marfim. Movia-se em gestos bem medidos e o olhar nos desafiava sempre a revelar algum segredo. Meu marido dizia que diante dele sentia uma curiosa disposição por revelar um que outro detalhe de sua vida. Falava quase nada e já sabíamos o que vinha buscar: parafina, óleo, barbantes. Nunca lhe perguntamos nada. Apesar do semblante sigiloso, não era de nossa conta o que iria fazer com tudo aquilo. Uns comentários nos levavam a crer que era pessoa muito religiosa, sempre trancada na velha casa da Rua dos Passos. Os moços negros que foram encontrados lá não conhecíamos, ela deve tê-los trazido de outro lugar. Ainda não sei se acredito que alguém possa ser capaz de tanto. Tenho dito a meu marido que levamos uma vida que se desvanece sob todos os aspectos, quase sempre um sinal de despedida. Acho que a vida requer uma hospitalidade. Cada um tem que estar disposto a receber a si mesmo. Outro dia um menino presenciou um engalfinhado de corpos, uma mulher que resistia a um safado que a tentara currar e, vendo a arma ali ao lado de ambos, disparou assustado, matando a mulher. A maldade é quase sempre mais fácil de se acusar do que remediar. Eu bem entendo essas pessoas que estão sempre a duelar com a vida. É muito simples dizer que a mulher morreu pelas mãos do garoto como uma prova da fatalidade da vida. Igual fatalidade teria levado um daqueles dois negros a entornar o braseiro provocando um incêndio na cela em que viviam, destruindo praticamente todo o local? Eu não sei. Quando vimos aquelas fotos todas publicadas disse a meu marido que encontrava algo de cúmplice no olhar dominado das vítimas. Uma espécie de sondagem de limites. Até onde iria aquela mulher? E o que dela esperavam eles? Um dos dois poderia ter provocado aquele incêndio, a qualquer momento, segundo entendi. Esperaram, no entanto, que ela não estivesse presente e que já houvesse um acervo de fotos o bastante não para a denúncia mas para a afirmação de um pendor. De onde surge a voz inocente senão de uma circunstância que a ilumina? As fotos encontradas são reveladoras de uma perversão daquele vulto de marfim. Mas havia um certo equilíbrio de tensão. Há mais ênfase no gozo de Gustavo quando o faço cativo. Me parece que os elementos em uma vida se misturam, nem mesmo o flagrante pode afiançar o real valor da cena. Algum tempo depois ainda conversávamos a respeito. Não há nada mais fabuloso do que a ambição humana.

Floriano Martins (Brasil, 1957). Poeta, ensaísta e editor. Dirige a revista Agulha (www.revista.agulha.nom.br). Publicou livros como Alma em Chamas (11998), Cenizas del Sol (2000) e O Começo da Busca (2001). Pertence à UBE - União Brasileira de Escritores e à ABCA - Associação Brasileira de Críticos de Arte.