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Ao escrever sobre o modernismo - Semana de Arte Moderna, de 1922 -, o poeta Ivan Junqueira recorda que “o furor iconoclástico do grupo de 22 era tamanho e tão difuso que seus integrantes chegaram a proclamar que não sabiam bem o que queriam, mas sabiam perfeitamente o que não queriam”. A isto seguiu-se toda uma ordem de estardalhaços, alguns célebres pelo ufanismo retrógrado. O correto seria falar em modernismos, tamanha a variação de facções poéticas e tão rara a presença da poesia naquelas que se impuseram como consagradoras do movimento. E mesmo aí não teríamos propriamente divergências, mas antes simplesmente desencontros. Em conferência célebre (18/02/1922), Menotti del Picchia dizia não ver lugar no Brasil para o que ele chamava de “futurismo ortodoxo”, isto porque “o prestígio do seu passado não é de molde a tolher a liberdade da sua maneira de ser futura”. Por sua vez, em igual tribuna (03/02/1922), Graça Aranha salientava que, “no Brasil, no fundo de toda a poesia, mesmo liberta, jaz aquela porção de tristeza, aquela nostalgia irremediável, que é o substrato do nosso lirismo”. Já no editorial da revista Klaxon (15/05/1922), publicação considerada primeiro órgão do movimento modernista, era possível encontrar: “Klaxon sabe que a humanidade existe. Por isso é internacionalista. O que não impede que, pela integridade da pátria, Klaxon morra e seus membros brasileiros morram.” O momento seguinte seria marcado por um quando menos presunçoso encerramento do “ciclo histórico do verso”, pontuando contradições basilares como a manifestação contrária a “uma poesia de expressão, subjetiva e hedonística”, ao mesmo tempo em que imantada por um “campo magnético do relativo perene”. Tais indicativos foram postulados pelo Concretismo, a partir do manifesto Plano-piloto para poesia concreta (1958). Acabaram propondo um tal grau de isolamento que reflete até hoje uma postura pedante de cunho cientificista que torna a poesia item de um receituário cartesiano, cujo pior desdobramento se dá no plano ético, definindo-se por uma perspectiva excludente e sectária que ampliou, em definitivo, nossa inclinação para a empáfia, no fundo manifestação de uma precariedade do espírito. Em depoimento cedido a Augusto Massi, em 1991, o poeta Claudio Willer sintetizou muito bem o plano de época: “Infelizmente, a negação das vanguardas em seu aspecto mais enfático e autoritário tem servido para justificar o academicismo, a volta ao passado, ou então, sub-repticiamente, a escolha da tendência certa da vanguarda, disfarçada em contemporaneidade ou até pós-modernidade”. Em paralelo a esse momento tivemos manifestações que, por isoladas, são desconsideradas pela crítica, cabendo aí atentar para articulações que punham em pauta tanto o Surrealismo como a Beat Generation. No entanto, a história oficial reconhece apenas uma outra vertente, a do poema-práxis. Vejamos. Um dos pontos do manifesto do praxismo tratava do “ato de consumir”, onde se buscava também uma utilidade para o poema (ou seria para o poeta?), aspiração que situava o “poema-produto” defendido pelo Concretismo como um bólido intimamente ligado à noção de “poesia-produção” da Práxis. Por mais que seja conveniente concordar com Mario Chamie que “o concretismo, enquanto movimento centralizador, nasceu sob o império do controle, já a partir de seu manifesto”, é impossível desconsiderar essa auto-definição do poema-práxis, igualmente expressa no manifesto inaugural do movimento: “a única totalização válida e não-alienada da consciência poética contemporânea”. Se observadas as conhecidas relações traçadas por Octavio Paz entre tradição e ruptura, torna-se difícil encontrar substância no que se convencionou chamar de vanguarda na poesia brasileira. De toda maneira, ao se tocar no assunto, é natural que um certo fascínio exerça o radicalismo avant la lettre que o tema implica, mas cabe atentar para o elo estabelecido entre tradição e ruptura em se tratando da vanguarda hispano-americana, o que não se deu no caso brasileiro, onde os laços com o passado foram cortados de maneira tão violenta que resultaram em perda de qualquer referencial dialético, criando ainda uma condição de orfandade para as gerações seguintes. Já em 1924, Oswald de Andrade, no manifesto da poesia pau-brasil (Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 18/03/24), defendia uma condição para o poeta: “sem reminiscências livrescas. Sem comparação de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia.” Exceto pela ausência do ontológico, é quando menos curioso que a poesia que se difunde hoje no Brasil seja caudatária de Oswald de Andrade, ao mesmo tempo em que define-se justamente pelos aspectos que ele manifestamente repudiava. Em decorrência, um país de quase nenhuma tradição poética, cujo diálogo com Portugal - não tanto pela perspectiva da colonização, mas sim pela coincidência idiomática - praticamente inexistia, e com duas fissuras em seu organismo cultural - a modernidade e a vanguarda -, viu-se atônito na busca de novas sinalizações que dessem consistência à poesia, país que enfrentou um largo período de exceção (regime militar) em sua política, mas sobretudo que se deixou, logo em seguida, corroer pelos falsos louros ofertados pela mídia, fascinado por uma relação quando menos leviana entre intelectual, poder e meios de comunicação. O crítico Carlos Alberto Messeder Pereira (depoimento dado a José Castello, O Estado de S. Paulo, 19/06/2001) observa o panorama da poesia brasileira nos anos 70 como um “fazer uma revolução (um tanto anárquica) no plano dos costumes e do comportamento”. Já em um outro depoimento, desta vez do poeta Glauco Mattoso (igualmente cedido a Augusto Massi), disse haver escapado “da vala comum onde jazem os poetas ditos marginais dos anos 70, ou seja, a mediocridade semi-analfabeta”. É bastante interessante atentar para a passagem dos ‘70 aos ‘80, quando a marginalidade converteu-se em horda acadêmica, leve alteração no eixo do status quo, porém sem interferência alguma em plano ético ou estético. Se a visão de mundo dos poetas que caracterizam o período marginal encontrava-se extenuada pela ansiedade de assimilar eu lírico e perplexidade existencial, excesso idêntico cometeu a geração seguinte, ao confundir erudição com título acadêmico e citação com intertextualidade. Todas as justificativas apresentadas a favor de ambos sintomas de decaimento de uma tradição em formação são verificáveis em outras sociedades, sobretudo na América Latina, e não cercearam desdobramentos estéticos consistentes. Uma outra instância cronológica nos traz aos dias de hoje, pautada por prolongado alheamento, onde a discussão se move entre o falar para si mesmo e o que falar. Como assimilamos todas as gramáticas literárias das culturas influentes - quando menos por razões culturais -, lidamos com o lugar-comum das recorrências de linguagem e por vezes nos sentimos com uma larga experiência que contraria o perfil de um país (jamais nação, ainda não) quase, reitero, sem tradição alguma. A ausência de diálogo tornou a sociedade brasileira refém de acontecimentos alheios à cultura, quase sempre desestabilizantes. O desalinho político, com interferência direta na economia, não deixa de refletir-se no âmbito cultural. Assim é que, em grande parte, nossas razões estéticas não passam de razões coloniais, ou seja, nos tornamos o depositário de experiências alheias, onde o influxo português foi logo substituído pela gritante modernidade francesa que, em um terceiro momento, encontraria, no desgaste da desconstrução sintática estadunidense e na sobrante volúpia barroca de uma fração da América Hispânica, uma razão de ser uma vez mais evidenciada pela falta de diálogo, desconsiderando vertentes inaugurais que influiriam mais relevantemente. O que anotamos aqui, contudo, não é senão um comentário geral sobre três momentos que poderiam sintetizar a aventura da poesia em terras brasileiras. Por sorte, a verdade canônica não corresponde aos fatos e podemos hoje ao menos considerar algumas situações distintas entre uma cronologia oficial e as reentrâncias dadas como indesejáveis. A começar por um denominador comum do que se anotou até então, que diz respeito a um eterno retorno ao parnasianismo, como se fosse nosso relativo perene, segundo o Concretismo. Antes mesmo do Modernismo, já não digeríamos muito bem o influxo simbolista, que surgia como perigoso contraponto a uma tendência positivista que demarcava os interesses políticos de um progresso que começava a se instalar no Brasil. Um perigo antevisto como além da alçada de um preciosismo, se tomarmos em conta a consistência da obra de um Cruz e Souza, anterior, e logo a poética de Jorge de Lima, Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa. Importa observar que a entrada na modernidade se dá de uma maneira, mais do que mesclada, tensa, ou seja, havia um choque de referências e a trama se desfez justamente por não comportar a realidade, a exigência de “todos os ritmos sobretudo os inumeráveis”, como preconizava um poema de Manuel Bandeira. Os desdobramentos, em vez de serem afirmações de uma multiplicidade, restringiram-se a encarnar a exceção. Fascistas foram considerados aqueles de explícita tendência a um nacionalismo que então era corrente de uso. Contudo, me pergunto se, ao esvaziar a mesa de diálogo que se poderia haver fundado ali, não foram todas as linhagens insurrectas co-responsáveis pela desvirtuada afirmação de uma quando menos equívoca tradição. De uma forma ou de outra, uns poucos explícitos e a grande maioria afeita ao silêncio estratégico, o cenário inteiro estava composto por coadjuvantes de uma hipocrisia que reina até o presente. A chamada Geração de 45 referia-se a si mesma como uma continuidade do Modernismo, e acreditava na necessidade de manter o sucedâneo. Mas a qual modernismo se referia, se aportava esteticamente com um formalismo exacerbado, em muitos casos mero retorno ao parnasianismo? Por mais que se enumerassem tendências então - regionalismo, neo-romantismo, intimismo etc. -, o fato é que o influxo dessa geração foi tanto incontestável quanto desastroso. Embora recorressem à primeira pessoa, partiam de uma idealização do eu, e não o desdobravam no outro - a outridad tão cara, por exemplo, aos desdobramentos mais essenciais da vanguarda hispano-americana - ou recordavam algo relevante, uma vez que o pronome estava ali apenas como recurso estilístico e não como essencialidade do dizer. Esse abismo entre o falante e sua condição existencial é um dos dilemas mais freqüentes na poesia que se tem escrito no Brasil. O coloquialismo buscado pelo que se poderia chamar de uma pós-vanguarda, aquele momento centrado nos anos 70 - onde se confunde o entoar de cantos contraculturais com a erva acesa em nome de nada -, raramente atinge uma carga de vivência que se misture a uma expressão poética consistente e renovadora. Ao contrário, foi dar em uma junção de grandiloqüência e maneirismo que exacerbava a mais lastimável de todas as vertentes estéticas até então cultuadas. A falta de analogia, uma das características essenciais da poesia desde quando entrada na modernidade, nos deixou primeiramente a fazer graça (sem graça alguma, diga-se), concluindo por uma ironia estéril, onde o objeto do riso não pode contestar por ausência total de diálogo. Toda perspectiva de analogia foi convertida em imposição, assimilação fácil da colonização de origem, identificação com um cartesianismo escolástico, onde a teoria define a prática, em cumplicidade com as evidências de poder. Certo é que as vozes mais substanciosas permanecem, em grande número, subterrâneas. Não se trata de uma etapa, em meio a uma plataforma de superficialidade em que se constitui a presente época. Estamos sempre descobrindo com atraso nossos grandes valores poéticos do passado, quase sempre defasados em relação a nós mesmos. Padecemos de uma ignorância que nos é praticamente inata. Desconhecemos o mundo que levamos dentro de nós, no caso da grandeza indiscutível de uma tradição poética, o que se traduz em um comportamento deslumbrado diante de fogos pirotécnicos dentro e fora do país. Em face disto, acabamos difundindo a produção de uma poesia de duvidosa qualidade, repleta de ornamentos (uma irreverência atônita, um frívolo orientalismo, um grafismo inócuo, um devaneio sub-filosófico etc.), onde não há um mínimo contato com a visceralidade da existência humana. Apesar de tudo, essa é a poesia que se mostra, ainda que não seja a que verdadeiramente temos. Como o país vive em perene descompasso entre a vertigem do dia e um prazer ilusório, prevalece toda forma de facilismo formalista, desde o desenho aleatório (com ares de uma equação matemática) de palavras na página, até a mera descrição de cenas, flashes de uma paisagem onde a pessoa é nada. Enfim, não há uma contribuição de sentido nessa linguagem poética. Nada deve, contudo, nos conduzir a um desestímulo patente na crônica dos últimos acontecimentos. Temos um rompimento melhor consistido a ser efetuado do que meramente a difusão de nomes de ocasião. Creio que é importante que novos poetas saibam perceber a urgência de fundar uma contra-tradição. No raquítico mundo que constitui a poesia brasileira hoje difundida, maquiada pelos fatores já aqui anotados, há alguns nomes que merecem referência pelo que andam buscando, tanto em termos de uma estética renovada quanto pela afirmação de caráter na contramão de nossa tradição: Jorge Lucio de Campos, Contador Borges, Fabrício Carpinejar, Adriano Espínola, Leontino Filho, Donizete Galvão, Maria Esther Maciel, mas chamando a atenção para o fato de que não esgotam em si sequer a própria poética. Há um mundo novo sendo tateado no que diz respeito à poesia brasileira? Importa saber: o que foi incorporado pela mídia - essa apressada forma de chegar tardiamente a qualquer lugar - é apenas reflexo de uma tradição que requer leitura sem preconceito, discutida abertamente. | |
Floriano Martins (Brasil, 1957). Diretor da revista Agulha (www.revista.agulha.nom.br) e membro da ABCA - Associação Brasileira de Críticos de Arte. | |