• FLORIANO MARTINS
    CARLOS NEJAR:
    NO ESPELHO DAS METAMORFOSES


CARLOS NEJAR
O LIVRO DO PEREGRINO

Editora Objetiva. Rio de Janeiro. 2002. 161 pgs.

Densa e reflexiva a imagem de "um rosto que não acaba mais", que encontramos em Carlos Nejar (Porto Alegre, 1939), em uma entrevista em que fala da memória do esquecimento, recurso que lhe tem valido a escritura de romances como Memórias do Porão (1984) e RioPampa (2000). Esta idéia do esquecimento ligado à infinitude como que completa uma poética que, no dizer do próprio autor, define-se por uma tríplice abrangência: o cosmogônico, o epopéico e "uma análise das alienações contemporâneas".

É através de um dos personagens de O Livro do Peregrino (2002) que Nejar nos confirma: "Caminhar é desenraizar-se", enlaçando o sentido dessa caminhada com o do exílio que caracteriza o esquecimento. Estrangeirismo que apenas a entrega total à vida ("Viver é fundar") lhe torna senhor dela. E toda essa trajetória de fundações e deslizamentos da memória a percorremos já a partir de uma rápida olhada em títulos de alguns livros do poeta: O campeador e o vento (1966), Árvore do mundo (1977) e O chapéu das estações (1978).

Outro aspecto essencial a ser lembrado na parcela romanesca da obra de Nejar é que a mesma encontra-se fundada pela poesia, ele próprio a recordar que está em Os Viventes (1979) "o germe de minha criação ficcional", na verdade um híbrido de prosa poética com relato memorioso - a aludida memória do esquecimento -, pouco tendo de ficcional no sentido literal do termo. O simulacro não está presente em tal poética, mas antes uma busca voraz por desterrá-lo, mesmo considerando a centuplicada aparição de personagens em seus livros.

Nejar tem um acentuado parentesco com Federico Fellini: multiplica-se ao infinito, sendo sempre ele mesmo, o inverso de Woody Allen, que repete-se exaustivamente à procura de desfazer-se de si. A referência ao cineasta italiano, particularizada no filme Amacord, me foi lembrada pelo próprio poeta brasileiro, que encontra nas escrituras bíblicas - e seus inúmeros desdobramentos nas artes - a fonte insuspeita de identificações que lhe valem o verbo.

Mas nos cabe aqui comentar em particular este O Livro do Peregrino, larga prosa poética que se faz a partir de uma máxima que se repete incontável por toda a trajetória errante do mesmo: "O mágico é verdadeiro". Sendo um livro de peregrinações, também o é de fragmentos, sendo através deles que se percebe uma unidade, sim, mas importando sobretudo esse emaranhado de vertigens que perfaz a caminhada. Exemplifica-se com a passagem: "Tudo roda nas almas. Junto aos pássaros: tudo voa."

Nejar está o tempo todo a nos lembrar que o homem só atravessa verdadeiramente a história se antes atravessa a si mesmo. Toda a grande poesia tem dito isto, o tempo inteiro, por toda a eternidade de nossa precária memória. Os poetas atravessam-se a si mesmos. E pagam um pesado quinhão por essa insolência em sociedades onde o mágico é apartado do verdadeiro.

Quando um personagem de O Livro do Peregrino diz que "é de um sonho que relato outro", bem se poderia pensar que o mesmo se aplica ao poeta, sendo de um livro que desentranha outro. E isto pelas pistas que nos deixa em duas passagens: "tudo pode ser recuperado", e "o vivido tão completamente, que não acabará de viver". Não espere, portanto, o leitor, uma resenha que demarque começo, meio e fim desse mergulho intenso em um fazer-se constante, inesgotável.

Ao escrever sobre As metamorfoses, de Ovídio, Italo Calvino remete a uma "contigüidade universal", lembrando que "estamos em um universo em que as formas preenchem densamente o espaço trocando de modo contínuo qualidades e dimensões, e o fluir do tempo é ocupado por uma proliferação de contos e de ciclos de contos". Este abismo de adjacências, queda perene onde tudo se dá a caminho, encontramos em Nejar quando um de seus personagens afirma que "o andar criava a alma".

O poeta tem em si todos os tempos e igualmente a contigüidade de espaços, dentro e fora do percebido. Se a volúpia criativa de Ovídio acena para uma dilaceração constante de formas, em Nejar nos encontramos com uma obsessão por "ficar sozinho na palavra", também um encantamento pautado pela metamorfose. Talvez o leitor se indague a respeito de particularidades ficcionais em um livro editorialmente assim apresentado. O peregrino Carlos Nejar é alguém que atravessa a si mesmo, que dá nome e entrega-se a tudo que toca, confundindo-se com este personagem errante que defende, de uma ponta a outra do livro, que "o mágico é verdadeiro".

Recordo a finalizar uma declaração do autor de O Livro do Peregrino, afirmando que "o fogo da criação assemelha-se ao amor de Deus: um fogo que arde sem poder consumir-se", concluindo o poeta que "a criação é santificadora". Há duas percepções da ação do fogo: o que ilumina e o que queima. A queimação tende a converter-se em iluminação. O contrário identifica um nem sempre perceptível retrocesso. De qualquer maneira o melhor no homem é que percorra a si próprio e transmude-se.

Floriano Martins (Fortaleza, 1957). Poeta, ensaísta, tradutor e editor. Membro da ABCA e um dos diretores da revista Agulha (www.revista.agulha.nom.br).