O poeta mexicano José Ángel Leiva pensou que ele fosse um guerrilheiro, metido num bunker em alguma grande cidade da América do Sul, bombardeando de lá o mundo com feras palavras (muitas das vezes combinadas a imagens e gravuras de, entre outros chegados, Hélio Rôla). Acertou em parte. Floriano Martins, com sua barba de rebelde, sua boina guevariana, seus oclinhos, bem figura um guerrilheiro urbano mas não é da metrópole que ele envia seus petardos textuais. É daqui mesmo, do subúrbio de Fortaleza - que ele, mais por ironia que desdém, costuma chamar de “Fracaleza”. Poeta, ensaísta, crítico, tradutor, editor por conta e risco, Floriano conseguiu fazer o que muitos políticos vêm tentando em relação aos nossos hermanos, ao menos quanto à literatura. Em janeiro de 2001, convidado por Soares Feitosa, ele desenvolveu o projeto Banda Hispânica, um banco de dados permanente sobre poesia (e afins) que circula virtualmente no Jornal de Poesia, onde também está abrigada a revista Agulha (editada por Floriano e o poeta paulista Claudio Willer). De lá, passaporte para outras revistas literárias virtuais, como a Alforja (do México), ou a TriploV (de Portugal).
Floriano, o incansável, é responsável por antologias de poetas brasileiros para as revistas mexicanas Blanco Móvil e Alforja, além de ter feito, recém, uma coletânea de poemas de Drummond por encomenda de uma fundação venezuelana. É autor de Sábias areias, Alma em Chamas, Estudos de pele (os três de poesia). Escreveu El corazón del infinito. Trés poetas brasileros, livro de entrevistas publicado em Toledo, Espanha, em 93; Escritura conquistada (diálogos com poetas latino-americanos), também de entrevistas, publicado aqui mesmo em 98. Traduziu Federico García Lorca e Cabrera Infante para a Ediouro. Escreveu a biografia do músico Alberto Nepomuceno (edições Fundação Demócrito Rocha). Organizou ainda uma antologia de poesia surrealista latino-americana, publicada na Costa Rica.
Este ano, o poeta ajeita a mochila para eventos culturais em El Salvador e nas ilhas Canárias. “A verdade é que eu mesmo me sinto zonzo pelo quanto de coisas que a gente vem fazendo, direta ou indiretamente. Montamos uma antologia de poesia brasileira para publicação em Madri, eu com o José Geraldo Neres, e acaba de sair uma edição especial da revista Poesía, da Universidad de Carabobo, em Valencia, na Venezuela, toda dedicada ao Brasil e preparada por mim. Agora em setembro saem quatro antologias de poetas portugueses, preparadas e prefaciadas por mim para a Escrituras Editora, de São Paulo.”
“Até dezembro minha poesia recente, em grande parte inédita, sai em edições no México, no Chile e na Venezuela”, conta por e-mail. Por falar em conta, ele perdeu as contas de quantas palestras, recitais e mesas-redondas participou, nestes anos todos dedicados à arte e à cultura. Mais conhecido mundo a fora do que mesmo em seu país (que dirá no Ceará), o franco-atirador ainda arranja tempo para tomar legítimos runs, tequilas de Guadalajara, entre amigos, num plá que mistura futebol, cinema, música, poesia e prosa em doses alopradas.
Amanhã, os amantes da literatura e das artes, do surrealismo, da fotografia, do vídeo, da colagem, da canção - e os curiosos em geral - podem desfrutar 90 minutos da prosa, da poesia e outros biscoitos finos no Teatro Impossível de Floriano Martins, para o programa Poesia em Revista do Centro Cultural Banco do Nordeste. Participações especiais de Ana Lee (voz e canto) e Jorge Pieiro, com trilha musical de Francisco Casaverde. Teatro Impossível é também o título de livro ainda inédito de Floriano, que também lança, este ano, um CD em parceria com o músico Mário Montaut. Todo o espetáculo será filmado e vai virar DVD.
EC Uma curiosidade. Teatro Impossível é uma mostra dos caminhos por onde você expressa a arte, tem poemas, canções, fotos, colagens, vídeo. Por que o título?
FM A mostra reflete uma condição mestiça, de vivência e defesa estética. É esta minha inquietude por abraçar muitas linguagens, e provocar o limite máximo de suas impossibilidades. Não me agrada a idéia de experiências estanques, vidas retardadas por repetições, pequenos vícios domésticos da arte… O título é emprestado de um livro, porém na mostra a impossibilidade cênica que evoca o livro é de certa maneira confundida pelos sinais vitais oriundos de várias instâncias. Mesmo assim, persiste um teatro impossível, a relação abortada entre arte e vida, um equívoco de cena, onde uma parte deixou de ser representação da outra.
EC Serão 90 minutos, uma partida de futebol. Adianta para nosso leitor como será a apresentação, uma performance? Uma leitura poética com a voz de Ana Lee e trilha do Francisco Casaverde?
FM O termo performance atingiu o limite de seu desgaste. Já de muito é utilizado para qualquer urro ou gesto inconseqüente. Nosso entendimento do novo ainda gira em torno do esgar iconoclasta característico das vanguardas na primeira metade do século passado. A analogia entre tradição e ruptura, tão bem evocada por Octavio Paz, foi mais citada do que praticada. Teatro Impossível, a rigor, é uma leitura poética, como bem situas. Contudo, avança em relações possíveis do poema com outras instâncias. Ana Lee participa tanto na leitura de letras de canções quanto no canto. Uma presença física que teremos em palco é do produtor Jorge Pieiro, que divide comigo a leitura de trechos de uma colagem dramática que fiz de textos meus e de William Burroughs. Não escondo o jogo, posso dar até mesmo a seqüência do roteiro que move a mostra, porém o que importa é este risco delicioso de mesclar as linguagens e que espero resulte também em algo saboroso para o público que se dedique a provar novos pratos. Será uma surpresa para mim também.
EC Teatro Impossível é um livro novo? Quando vai sair? Os poemas da performance serão deste livro?
FM Teatro Impossível é título de um livro que sai este ano, na Venezuela, na tradução de Marta Spagnuolo. A mostra no BNB se utiliza do título e inclui alguns dos poemas. No livro o que temos são textos, em boa parte prosa poética, onde a impossibilidade cênica é definida não pelo acento metafórico, mas antes pela crítica de um afastamento cada vez mais intenso nas relações entre arte e vida. Na mostra no BNB a pegada é outra, porque ali já estamos apontando e praticando outros caminhos. A minha leitura é sempre crítica. Gosto de riscos; não entendo poeta que se acomode ao enfado.
EC Como você dá conta de tantas linguagens? O fundamento é o texto, aqui em sentido o mais amplo possível - uma teia de signos decupável pelos sentidos?
FM Na verdade eu dou conta de apenas uma linguagem, que é essa minha inclinação para a mescla. Tenho que aprender a lidar com isto e não pensar naquela cornucópia de mil fractais e seu vício enciclopédico. O fundamento é a expressão. Se eu mesclo linguagens e digo que o fundamento é o texto, de cara já estou matando meu projeto. Entendo a tua idéia de texto, sim, e até poderia concordar. Mas vamos lá: dou seqüência a toda uma aposta de vida, torço por mim, mas não faço idéia de onde isto vá dar. E nem me importa.
EC E sobre as canções em parceria com Mário Montaut, como nasceu a parceria?
FM Em Teatro Impossível teremos apenas uma canção minha com Mário Montaut. As demais são em parceria com Ana Lee. A parceria com Mário será brevemente difundida graças à produção de um CD nosso, já em sua fase final de produção. Não gosto muito de comentar o que está por vir. É um pouco o reflexo do inexistente. O fato é que haver descoberto um parceiro na música me reacendeu um velho desejo de fazer letras, que é uma linguagem bem diferenciada do poema.
EC Fale um pouco sobre seu trabalho com tradução, em particular, sua ligação com os poetas e escritores latino-americanos.
FM Eu não sou um tradutor. Não gosto das especializações em qualquer módulo. Sou um construtor de pontes, se muito. No ano passado, em um encontro de escritores em Caracas, um poeta cubano veio me cumprimentar por haver traduzido Cabrera Infante. Quando regressei de viagem, um outro cubano, editor de uma importante revista me deu um presente: versão inédita de final distinto do romance Três tristes tigres, do Cabrera, que logo tratei de traduzir e publicar na Agulha. Essas coisas não acontecem à toa, como um gol de bola parada. Eu tenho uma compreensão, um respeito e a busca de uma cumplicidade acerca da cultura – e não somente a literatura – hispano-americana. Tenho reunido esforços, numa ação mínima porém concentrada, que não é governamental ou sequer percebida por instâncias institucionais, para criar e eventualmente ampliar espaços de difusão e discussão de uma realidade que não é nossa vizinha somente em termos geográficos ou de mercado. O grande paiol de pólvora em que se tornou a América do Sul, mais recentemente, certamente poderia ter outro desdobramento se acaso nos compreendêssemos. Eu não entendo por que jogamos o jogo de um suposto inimigo, por que razão recusamos este conhecimento mútuo.
EC Pra finalizar, queria que você situasse a revista Agulha no contexto das revistas literárias virtuais, e as conexões feitas, através dela, com a América Latina e Portugal e Espanha.
FM É difícil restringir a Agulha ao âmbito das revistas virtuais, porque nós avançamos muito. A circulação é surpreendente e não há exemplos de revistas impressas que tenham o mesmo alcance. Circulamos em dois idiomas, português e espanhol, de maneira que hoje dificilmente se desconhece a Agulha em um âmbito que sabemos ser de larga extensão. Graças a uma de nossas sessões, a “Galeria de Revistas”, além do anúncio em nosso portal, damos cobertura a publicações de vários países. Paralelamente temos editores associados, uma rede que amplia a difusão; parcerias que cuidam de publicação de livros em alguns países, que permutam mostras de artistas plásticos; interferência direta na programação de alguns eventos institucionais; e agora mesmo buscamos uma atuação na produção musical. Sabe o que me parece mais divertido nisto tudo? Que a Agulha é feita por mim e pelo Claudio Willer, que tem o sustentáculo de fé & tecnologia do Jornal de Poesia, através do Soares Feitosa, e que ninguém no Ceará dê por conta disto. Não é uma graça alcançada?
[Suplemento Vida & Arte, jornal O Povo, Fortaleza, 10/07/2006]
O Centro Cultural Banco do Nordeste – Fortaleza apresenta, em seu Programa Poesia em Revista, Teatro Impossível, de Floriano Martins, na noite de 11 de julho de 2006.
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