FLORIANO MARTINS |
Simbolismo, Modernismo, Futurismo – com quais desses momentos melhor se
identifica o Surrealismo em Portugal? O crítico brasileiro, de origem
austríaca, Otto Maria Carpeaux (1900-1978), em sua História da
literatura ocidental, aponta “a ausência de um verdadeiro Simbolismo
em Portugal”, ao mesmo tempo em que situa Mario de Sá-Carneiro e Fernando
Pessoa como “dois poetas de formação esteticista mas de ambições que já
antecipam o Surrealismo”. Por onde começamos? Gostaria aqui de fazer
menção a um termo valioso do António Cándido Franco, o de “afinidade
involuntária”.
ANTONIO CÁNDIDO FRANCO |
Quando lemos alguns dos poemas de Oaristos (1890), por exemplo o
décimo primeiro, ou “A Epifania dos Licornes” de Horas (1891), ou
ainda “Um Cacto no Polo” do mesmo livro, percebemos que a poesia de
Eugénio de Castro, um poeta hoje quase esquecido, mas que na época foi
admirado por Ruben Dario e pelos simbolistas franceses, chega para
impugnar a asserção de Carpeaux (e, claro, para tirar muita novidade à
poesia de Pessoa – que em alguns momentos se limita quase a glosar a
poesia de Eugénio de Castro).
Faltou-te porém referir o Saudosismo, que é talvez a afinidade
involuntária do Surrealismo português. O Saudosismo pode ser encarado
como um desenvolvimento português do Simbolismo ou dos aspectos mais
misteriosos dele. O poeta crucial deste movimento, Teixeira de Pascoaes,
foi o antecedente poético de Mário Cesariny; entre os poetas portugueses
logo anteriores que ele tinha à disposição, e muitos eram (Antero, Gomes
Leal, Junqueiro, Nobre, Eugénio de Castro, Ângelo de Lima, Pessanha,
Pessoa, Sá-Carneiro, Florbela, Raul Leal, Almada, Régio), foi Teixeira de
Pascoaes que ele elegeu.
As relações entre o Saudosismo e o Surrealismo estão infelizmente por
estudar. O próprio Saudosismo, sobretudo na evolução da sua linha interna,
aquela que vai por exemplo de 1912 a 1942, quer dizer, do momento do seu
nascimento à publicação dum livro tão excepcional como Duplo Passeio,
é muito mal conhecido e em geral tende a passar despercebido (como a tua
pergunta confirma).
NICOLAU SAIÃO |
O nó do problema creio que assenta nas condições de antidemocracia que
sempre – sublinho, sempre) – existiram em Portugal, não só propiciadas por
uma classe dominante extremamente cínica e autoritária mas, ainda, pelo
seu tipo de cultura primarizada e pela sua mentalidade inculta, plebeia no
sentido exato e o seu reacionarismo incrementado e sustentado por um tipo
de fideísmo profundamente limitado e preconceituoso que tentava eliminar,
espingardear ou suster tudo o que lhe cheirasse a modernidade ou trouxesse
o selo de algo menos academizado. Sempre dominaram os estabelecimentos de
ensino a alto nível, que em Portugal são os órgãos que controlam
apertadamente os sectores intelectuais que fazem entre nós a chuva e o bom
tempo por razões óbvias. Era assim dantes e continua a ser assim hoje. Daí
que as afinidades entre os autores/criadores tenham de ser involuntárias
ou, dizendo de outra maneira, conforme se pode…
Isso faz com que, ainda neste tempo em que vivemos, ou sobrevivemos, a
arte moderna em geral e o surrealismo em especial sejam olhados como excrescências
carnosas, produtos de quase marginais, de gente que não se deve deixar
entrar, preferentemente, nos salões onde os donos da sociedade exercem a
sua música e a sua dança contra tudo o que é legítimo em vida sã.
Portugal segue sendo um entreposto claramente de signo cripto-fascista,
mau grado a maquiagem arranjada nos primeiros tempos a seguir ao 25 de
Abril – maquiagem essa que, por já não lhes fazer falta, têm estado a
abandonar com decisão. Só têm algum respeito pela chamada arte moderna em
sentido lato porque esta, nos lugares onde o ambiente é mais salubre, vale
muito dinheiro! Sá- Carneiro e Fernando Pessoa, como se sabe, foram sempre
corpos estranhos no tempo em que estavam inseridos. E o panorama continua
a ser assim… exceto se o autor/artista se alcandorou por companheirismos
ou afeições, geralmente, aos lugares de topo da “árvore dos níveis”…
FM |
O que evidencia a revolução surrealista em Portugal e como ela se insere
em um mapa da Península Ibérica? Penso aqui nas relações entre Cesariny e
Buñuel, que bem poderiam ter sido ampliadas, considerando afinidades
históricas. Cesariny chega a comentar tangencialmente acerca de Juan
Larrea, J. V. Foix, José María de Hinojosa… Porém nunca houve entendimento
entre as duas vertentes surrealistas. Algum motivo determinante?
ACF |
O choque do surrealismo em Espanha e em autores de língua espanhola (como
Cesar Moro) foi temporão. Basta pensar na importância que Buñuel e Dali
têm nos primeiros anos de afirmação do Surrealismo francês. Nada de
parecido aconteceu em Portugal ou em criadores da língua portuguesa, e
isto mau grado Péret ter passado quase dois anos no Sul do Brasil nos anos
heroicos que se seguiram à criação do Surrealismo. Logo o destino dos dois
movimentos foi distinto e raras vezes coincidente. Ainda assim Mário
Cesariny, além de traduzir Buñuel e ter relações próximas no seu círculo,
penso em José Francisco Aranda, teve uma afinidade expressa e um convívio
intenso com Eugenio Granell, o grande criador catalão, que viveu exilado
muitos anos em Nova Iorque. O mesmo se passou com Cruzeiro Seixas.
NS |
O que a revolução surrealista, encarada a nível europeu ou mesmo ibérico,
evidencia, é a meu ver as enormes dificuldades de se existir
autonomamente, livremente. O poder político-social, precisamente pelas
razões históricas nos dois países, tentou sempre impedir que fôsse fácil
existirem relações entre os criadores daqui e dali. Por isso o cardo foi
sempre enorme, parafraseando uma expressão de Cesariny…
FM |
As cartas de António Maria Lisboa constituem uma fonte de iluminação sobre
inúmeros aspectos referentes ao Surrealismo em Portugal. Poucos anos antes
de sua morte, já descrente da perspectiva de reestruturação grupal do
movimento, lemos em uma carta destinada a Cesariny ali imprimir seu desejo
de ver seus amigos uma vez mais a seu lado, “desta vez não com a sombra de
um Breton”. E em uma de suas últimas cartas, já no Sanatório da Quinta dos
Vales Covões, em Coimbra, 1952, comenta com Mário Henrique Leiria acerca
de uma “fundamental dificuldade” dos surrealistas: “sair da fácil
expressão, do hábito a que dialeticamente se deram e onde
anti-dialeticamente permanecem”, finalizando: “Breton será mil vezes
culpado”. Até onde acerta António Maria Lisboa, não propriamente acerca de
uma culpa de Breton, mas antes de uma falta de identidade no tocante ao
Surrealismo em Portugal?
ACF |
É natural que um poeta com a dimensão invulgar dum António Maria Lisboa se
quisesse autonomizar de Breton, isto depois de o procurar e de com ele ter
aprendido muito ou mesmo tudo. Caso tivesse sobrevivido à doença que o
levou em 1953, aos 25 anos, convenço-me que não teria tido qualquer
questão em se associar ao folheto com que o grupo de Cesariny homenageou
A. Breton, no momento da morte deste, em 1966. O texto, chamado (Neófito)
Não há morte na morte de André Breton, está hoje recolhido no livro As
mãos na água a cabeça no mar (1985). Só um movimento consciente de si,
atento às suas infinitas possibilidades, muito rodado na estrada do
mistério e do amor, podia produzir tão altiva e bela homenagem.
NS |
A culpa de Breton, digamos assim simbolicamente, assentou no fato de que
ele vivia numa França aberta e os surrealistas portugueses, ou que
tentavam sê-lo, viviam num Portugal do antigo regime, ultraconservador e
muitas vezes ultramontano. Em França era-se hostilizado pela mentalidade
academicista da classe dominante, mas em Portugal ia-se parar diretamente,
sem paninhos quentes, à prisão, à miséria econômica e à marginalização
pura e simples. O que agravava as divergências, as questiúnculas e os
destrambelhamentos até, dos autores portugueses, meros sobreviventes de
uma nação dominada por gente nefanda.
FM |
Há um comentário de Adolfo Casais Monteiro
⎼ A
palavra essencial,
1972
⎼
sobre composição e espontaneidade em que recorda que, “tal como em toda a
literatura, também nas criações surrealistas havia uma diferença abissal
entre a poesia espontânea de uns e a espontânea… vacuidade dos restantes”.
Como lidou o Surrealismo em Portugal com essa aparente ambiguidade?
ACF |
Ao contrário do que pensava Casais Monteiro, o Surrealismo não era uma
questão de talento. O terreno matricial do Surrealismo não é o da estética
(literária ou artística) mas o da ética humana, que procura conciliar a
liberdade explosiva das pulsões interiores com a ordem clássica e exterior
da sociedade. Pode-se ser surrealista sem se ter escrito uma única linha;
pode-se ser surrealista sem se ter pegado uma única vez num pincel;
pode-se passar de todo ao lado do Surrealismo depois de se terem escrito
muitos poemas ou pintado muitas telas “surrealistas”. A “vacuidade”, para
quem se situa no plano da aventura interior, como sucede com o
Surrealismo, só pode ser a dos “artistas”. Também houve destes em
Portugal, e de peso, a começar por António Pedro e a acabar em
José-Augusto França, passando ainda por Jorge de Sena. Trataram o
Surrealismo como uma questão de ter ou não ter “jeitinho”. Passaram assim
ao lado do que mais importa.
NS |
Lidou mal, necessariamente. E o contrário é que seria estranho. Um
surrealista autentico, em Portugal, vive ainda hoje, como vivia dantes,
sob a férula de poetinhas que promovem, controlam, selecionam e acatitam
muitíssimas vezes ilustres mediocratas que exibem como gente de grande
gabarito.
Não é pois uma ambiguidade, mas uma consequência de Portugal ter sempre
vivido no domínio apertado de aparelhagens de extermínio moral que
epigrafa os “surrealistas” que lhes convém epigrafar. Liofilizados ou
amansados. Objetos de literatura no pior sentido do termo. E quem se
rebela… fica frito por esses cozinheiros de más iguarias.
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FM |
Seria possível imaginar um Surrealismo outro em Portugal sem a figura
tutelar de Mário Cesariny de Vasconcelos?
ACF |
Sem Cesariny, o Surrealismo português ainda seria o mesmo, se o António
Maria Lisboa que tivemos ainda tivesse podido, sem ele, Cesariny, ser o
que foi (até no diálogo com Pedro Oom), o que se duvida, pois cada um
deles foi uma parte do outro e não podia porventura ser o que foi sem ela.
Sem Cesariny e sem Lisboa, o Surrealismo português teria sido porém
“outro”, muito menos autêntico e muito mais estético. O que se perdia em
aventura e exaltação ganhava-se em truque e habilidade. A poesia, que no
Surrealismo português se elevou altura ímpar, digna da mais alta aventura
humana, teria decaído em simples literatura descartável.
NS |
A realidade é que foi como foi. Cesariny, da maneira que pôde ou lhe
consentiram, foi um resistente. Bem, mal, assim-assim? Sei das
dificuldades que teve, que muitas vezes lhe criaram, já pela hostilidade
já, depois, por o querem jungir a um surrealismo que, se fosse como eles
determinavam, seria então credor de aplausos e de carinhos…duvidosos.
Acresce que Cesariny tinha uma orientação sexual que essa gente tentava
fosse a marca da sua totalidade enquanto ser humano/autor. O truque infame
é bem conhecido…numa sociedade fideísta e, mais que isso, que se serve do
fideísmo, tal qual se serve doutras afins, como arma de repressão e
opressão.
FM |
Quais relações podemos encontrar entre Surrealismo e o happening,
como já o propusera Ernesto de Sousa em 1969, ao reunir poemas de Almada
Negreiros, Mário Cesariny, Herberto Helder e Luiza Neto Jorge? E quais
desdobramentos relevantes podemos comentar?
ACF |
Se o happening se situar apenas no domínio da arte multimédia, ou
mesmo da poesia dita literária, consagrada pela História da Literatura,
não me parece que tenha alguma coisa a ver com Surrealismo. Se entrar pelo
campo magnético da expansão de fenômenos psíquicos desconhecidos aí o
contacto estabelece-se. O teatro ritualístico e mágico de Judith Malina e
de Julian Beck parece-me modelar de como o happening, pondo a nu a
alma, se pode tornar uma forma de viver em colectivo o Surrealismo.
NS |
Não o sei exatamente. Só sei que Cesariny, por várias vezes, me referiu
que em Portugal o fenômeno happening corria o risco de acabar por
ser uma coisa em estilo Parque Mayer. O que eu pude observar deixou-me
muitas vezes com a sensação de que ele, que era um fino observador,
percebera que numa sociedade como a nossa se corria sempre o risco de se
mergulhar num “melting pot” transversalmente atravessado por um ar
eventualmente percorrido por fumos e odores nada salubres.
FM |
O que o tema Surrealismo significa hoje em Portugal?
ACF |
Para uns significa criação estética e está por isso confinado a um período
limitado que vai da década de 40 à década seguinte (e pouco mais); para
outros significa uma porta aberta, que nunca mais se fechou, para
metamorfosear o mundo e conhecer sem limites o interior do homem.
NS |
Algo que foi e continua a ser, da parte dos seus criadores sem jaça,
qualquer coisa de muito luminoso, mau-grado as sombras que lhe tentaram
sempre criar na figura. Da parte dos observadores que estabelecem os seus
figurinos e as suas indumentárias para o baile social, algo que conviria
desaparecesse o mais depressa possível. Apesar de o surrealismo
praticamente não contar para nada socialmente, neste país, se pudesse ser
exterminado deixaria muitíssimo mais felizes os que sentem no sapatinho
essa pedra incómoda.
in Revista MUSA RARA, São Paulo – Brasil .
director EDSON CRUZ
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