Dois filmes andam a percorrer salas de cinema em várias partes do mundo sem a percepção de afinidades existentes entre ambos. Trata-se de The mist e Blindness, os dois de 2007, respectivamente dirigidos pelo francês Frank Darabont (1959) e o brasileiro Fernando Meirelles (1955). O abuso de classificação limita a influência de The mist (Nevoeiro), ao restringi-lo ao ambiente de filme de terror. Já no caso de Blindness (Ensaio sobre a cegueira), há certa tendência a inseri-lo na categoria cult. Os motivos se irmanam e justificam-se pela matriz narrativa dos filmes, adaptações de um conto de Stephen King (Estados Unidos, 1947) e de um romance de José Saramago (Portugal, 1922). São duas leituras catárticas de um mesmo aspecto: a que ponto pode a humanidade chegar quando colocada em prova sua verdadeira condição humana.
Nos dois filmes o que é essencial é o naufrágio do que chamamos de humanidade quando somos levados a agir fundamentados por nossos "instintos primários". Com isto rapidamente se conclui que a humanidade como a compreendemos é uma farsa. Os dois filmes (assim como as duas narrativas em que se baseiam) são absolutamente iguais na recorrência do tema. À diferença de José Saramago, Stephen King vai mais fundo ao poço. Eu poderia dizer que à diferença de Fernando Meirelles, Frank Darabont vai mais fundo ao poço. Porém não li a novela adaptada por Darabont - de longe, para mim, o melhor filme produzido a partir de uma obra de Stephen King -, enquanto que a crítica no Brasil louva em Meirelles sua fidelidade ao romance português. O fato é que Blindness é mais brando em sua leitura de "uma luta sangrenta pela sobrevivência", de tal forma que soa artificioso, tão beletrista como a matriz em que se fez.
A maneira como nos dois filmes se evoca a influência da religião no acento dado à barbárie que habita em nós, por exemplo, está melhor tratado, com a violência que lhe é devida e seu poder virulento, em The mist. Por outro lado, Meirelles abrandou tanto o tema que optou por cortar cenas da passagem em que os cegos de uma ala da quarentena, que haviam se apossado da comida, exigem que as mulheres das demais alas se entreguem a eles em troca de alimento. E o fez sem a concordância de José Saramago, pois lhe foi consultar antes de. Bastidores, claro. Não vêm ao caso. O caso é o filme em si. Mas como o filme em si não sobrevive em nosso tempo, será considerado o frisson existente no tocante aos dois nomes: Meirelles e Saramago, mitificados ao ponto de tornar cega uma leitura crítica acerca do filme. Particularmente acho que Frank Darabont toca no tema de maneira mais crua, sem concessão de espécie alguma, o que significa dizer que o lixo humano está melhor apurado em The mist.
Os dois cineastas pertencem a uma mesma geração. Darabont entende melhor de exibir com requintes a crueza humana, o que já ficou patente naquela seqüência inicial do filme Saving Private Ryan (O resgate do soldado Ryan, 1998), de Steven Spielberg (Estados Unidos, 1946). Por outro lado, Meirelles domina de maneira admirável a sutileza da obstinação do protagonista do excelente The constant gardner (O jardineiro fiel, 2005). Lamentável aqui é a tradução do título deste último, pois a dedicação do personagem encarnado por Ralph Fiennes não pode em circunstância alguma se restringir a fidelidade. O primeiro filme possui roteiro original de Robert Rodat, enquanto que o segundo é adaptação de romance de John le Carré. Fernando Meirelles trabalha com roteiristas. Frank Darabont assina o roteiro de seus filmes. Mais bastidores. Nada disto importa acima dos filmes. Não vem ao caso, por exemplo, afirmar que Stephen King possui narrativa mais pungente do que José Saramago, ou que este seja mais artificioso do que aquele.
Importa observar o que disse Daniel Levi ao comentar The mist: “Darabont manipula habilmente questões como diversos tipos de preconceito, religião e as possíveis conseqüências de se deixar pessoas enclausuradas” (O Globo Online). Importa observar o que não tem, em geral, a dizer, de forma substanciosa, a crítica a respeito de Blindness, restringindo-se ao que reza a sinopse do filme, graças à superficialidade que, neste caso, é tanto do filme quanto do romance adaptado. Isto nos leva a dizer que importa mesmo observar certa diferença de tonus entre a narrativa de Stephen King e José Saramago. Importa observa que o autor de The dark tower (2004), genericamente enclausurado na classificação redutora de “mestre do horror moderno”, encontrou em Frank Darabont uma sugestiva afinidade no tocante a seu entendimento visceral da condição humana quando posta em conflito vertiginoso e irremediável. Por outro lado, é pífia a sugestão no tocante à reação ao mesmo dilema apresentada pelo autor de As intermitências da morte (2005), daí que igualmente artificiosa resulte a adaptação de Ensaio sobre a cegueira. O português, que tanto relutou em ter seu romance adaptado para o cinema, temia encontrar-se com seus personagens. Em contraponto com Stephen King, que rigorosamente é um substancial criador de mitos, tais personagens são incorrigivelmente pálidos.
Virão novos filmes de Frank Darabont e Fernando Meirelles. Todos os aguardamos com confiança. O brasileiro queria filmar o romance de Saramago desde antes da realização de Cidade de Deus (2002). Deve agora finalmente livrar-se deste fantasma apático. Quanto ao francês, caso optasse por adaptar a narrativa de Stephen King pelo resto da vida fatalmente encontraria ali uma intensa afinidade com sua verve aguda, catártica. Aos dados, como se fosse o caso.
Abraxas
Floriano Martins
floriano.agulha@gmail.com
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Direção: Frank Darabont
Com: Thomas Jane, Marcia Gay Harden, Alexa Daval os, William Sadler, Laurie Holden, Chris Owen, Nathan Gamble, Andre Braugher, Toby Jones
Roteiro: Frank Darabont, baseado em livro de Stephen King
Após uma terrível tempestade, uma estranha névoa encobre uma pequena cidade. Criaturas ocultas no nevoeiro atacam as pessoas que saem as ruas. Um grupo fica preso em um supermercado e não pode sair do estabelecimento temendo ser atacado. A partir de então, começa uma luta sangrenta pela sobrevivência. |
Direção: Fernando Meirelles
Com: Mark Ruffalo, Julianne Moore, Yusuke Iseya, Yoshino Kimura.
Roteiro: Don McKellar, baseado em livro de José Saramago
Uma inédita e inexplicável epidemia de cegueira atinge uma cidade. Chamada de "cegueira branca", já que as pessoas atingidas apenas passam a ver uma superfície leitosa, a doença surge inicialmente em um homem no trânsito e, pouco a pouco, se espalha pelo país. À medida que os afetados são colocados em quarentena e os serviços oferecidos pelo Estado começam a falhar as pessoas passam a lutar por suas necessidades básicas, expondo seus instintos primários. Nesta situação a única pessoa que ainda consegue enxergar é a mulher de um médico (Julianne Moore), que juntamente com um grupo de internos tenta encontrar a humanidade perdida. |