Floriano Martins
DIÁLOGOS COM ASTRID CABRAL

FM Em uma entrevista dizes que “exprimir emoção não é apenas uma questão estética, é questão de saúde”. O que tem buscado a poesia através da Astrid Cabral e como ela tem reagido a isto, ao longo de sua obra?

AC Sou um ser de muita compaixão. A doença é algo que me comove e abala. Na infância quando visitava o tio-avô Teófilo, que em conseqüência de queda de rede tinha uma grande mala nas costas, começava a sentir doer as minhas. As pessoas brincavam comigo, quem tem pena é galinha, menina. A preocupação com saúde resultou de ter presenciado meu pai no hospital, de turbante na cabeça já sem algum osso do crânio, meu avô vítima de esclerose a falar de uma máquina monstruosa que um inimigo construíra para eliminá-lo, minha irmã perdendo o fôlego em constantes crises de asma.

Até os 11, quando fui a Fortaleza conhecer a família de meu pai, meu projeto era estudar medicina. Mas o sonho foi enterrado com o cadáver que eu vi na Faculdade de Medicina, desfigurado, boiando em formol. Passei muito mal. Eu não tinha os nervos, a devida serenidade para enfrentar tais situações. Ao longo da vida, minha resposta foi valorizar a saúde e ocupar-me com a prevenção. Leio apaixonadamente sobre o assunto e faço o possível para mantê-la. Acho que, de um modo geral, as pessoas menosprezam o corpo, desrespeitando-lhe as exigências.

Por outro lado essa idolatria no mundo atual, a obsessiva malhação nas academias, não me convence. Não passa de modismo meio mórbido. Uma falta de equilíbrio bastante insana, que aponta para um vazio interior deplorável. As pessoas descartaram o fanatismo religioso e adotaram o fanatismo atlético.

Saúde para mim brota do reconhecimento e preenchimento das profundas necessidades de cada um. Acho que tem a ver com o que Jungfala sobre o processo de individuação, a possibilidade de desabrochar-se em plenitude. Essa história de amordaçar os sentimentos é uma submissão covarde ao culto das aparências. Puro medo de manifestar fraqueza. E quem não tem as suas? Mas se fraqueza disfarçada é altamente corrosiva, quando assumida perde o travo, fica mais convivível, mais combatível.

Que história é essa dos homens posarem de deuses? Não quererem confessar que levaram porrada? Adoro o poema de Pessoa em que ele desmascara tal vaidade covarde. Nos dias de hoje o mito do sucesso é tão ditatorial que as pessoas não ousam admitir suas falhas e incapacidades. Tudo porque o próximo é antes de tudo visto como um competidor em potencial. Ninguém quer ficar por baixo. Tem que levar a melhor nem que seja de fachada. As pessoas vivendo a vida como se estivessem o tempo todo no palco.

Vejo a poesia como um eficaz “conhece-te a ti mesmo”, isso na modalidade lírica, um “conheçamo-nos a nós mesmos” na modalidade épica. Suponho que nunca recorri a psicanálise por causa desse hábito de descer sozinha ao meu porão. E até comprazer-me nesses mergulhos no escuro. Além de suspeitar de tudo por onde passa o dinheiro, de tudo que cheira a negócio e dá espaço para charlatanismo, sempre detestei tutelas.

A poesia me compraz por ser atividade de absoluta independência. Me faz sentir livre (embora, a rigor, a liberdade não passe de uma utopia), é um vinho reconstituinte. Produzi-la me dá também uma sensação de poder. Só eu posso executar a minha poesia. Não posso delegar a ninguém a tarefa. Gosto muito de cozinhar e já ensinei muita gente a fazer do meu jeito. E as pessoas executam como se fosse com as minhas mãos. Mas poesia não é ensinável.

Tem muito autor por aí falando no sofrimento do ato de escrever. Cada um fala da sua experiência particular, é claro. No meu caso seria uma mentira descarada, pois se a vida me faz penar e já me feriu muitas vezes, a literatura sempre me proporcionou prazer. Através dela posso dialogar com a dor e transfigurá-la. Escrever para mim só foi desagradável quando no serviço público eu tinha que “redigir”, isto é, utilizar-me da linguagem convencional, rígida, fossilizada. Era um uniforme com que eu tinha de vestir o pensamento alugado, que não era meu. Tratava-se de um ato de disciplina, nada a ver com o ato de criação. Mas a criação é uma dança da alma. Vale o tempo empregado.

Como lidar com palavras é um ato altamente aprazível (poucos fazem poesia, mas muitos brincam de palavras cruzadas), temos aí uma ocupação terapêutica. O prazer sempre foi manancial de saúde. Eu consegui através da poesia restabelecer o equilíbrio pessoal ameaçado pelas exigências familiares e profissionais. Os encargos particulares e públicos eram tantos que eu me sentia sugada por força centrífuga, afastada de mim mesma, girando em torno dos outros.

É comum as mulheres passarem pelo processo de perda de identidade, não saberem quem são além de filhas, esposas, mães, amantes, secretárias, profissionais, etc. Abdicarem até da primazia do pensamento sobre a vida. Passarem a pensar conforme vivem e não o inverso. A entrega total ao outro é nociva, tem que haver momentos de pausa e retorno ao âmago de cada um. De vez em quando precisa ocorrer revolução na casa antropófaga que vai engolindo nossos pensamentos, mãos, pés e sobretudo nosso tempo. Temos que reagir sem sentimento de culpa contra o canibalismo do excesso altruístico, o auto-esvaziamento.

Através da poesia busquei e cultivo a minha identidade. Sempre quis me descobrir. Tentar saber o que se esconde em mim. Toda uma trajetória de vida pode ser rastreada nos meus textos: os arroubos da juventude, as indagações existenciais que me perturbam, os momentos cruciais, os espaços por onde andei e que me causaram deslumbramentos ou decepções, os encontros transformadores. É um itinerário emocional.

Nunca me debrucei sobre temas puramente (será que existem?) intelectuais e abstratos. As tragédias que me sacodem são as que vivencio ou testemunho, de pessoas próximas de carne e osso, não de ilustres e remotos gregos e troianos. Talvez por contingências específicas não tenha enveredado a fundo pelos caminhos da cultura como gostaria e sonhei na juventude. Mas quando converso com certas pessoas simples do povo, com crianças e velhos (que ainda não foram iniciados na cultura oficial ou já esqueceram tudo), aprendo coisas sobre a condição humana e a natureza, nuvens, formigas, hábitos dos bichos, e convenço-me de que a vida é um livro aberto, onde letras e páginas não fazem falta.

A questão é abrir os olhos e aprender a enxergar diretamente, sem intermediação. Como já dizia o nosso Oswald, “ver com olhos livres” e que até adotei como lema para meus alunos de formação, a fim de ousarem pensar sozinhos sobre o que liam, sem se valer de interpretações alheias, nem sempre de boa qualidade. Exercitar a própria intuição sempre me pareceu um hábito mais enriquecedor do que entupir a memória de material em abundância, sem processá-lo de modo crítico.

FM Não creio que o Oswald de Andrade praticasse o que preconizava, mas entendo o que dizes. De que maneira busca e cultivo de identidade se mostram, em teu caso, em termos de poética? É possível que te distancies da Astrid Cabral e comentes a percepção crítica que tens de sua obra?

AC Para início de conversa vale dizer que não tenho grande paixão pela obra do Oswald. Considero-o supervalorizado. Dele eu pinço e adoto um ou outro relâmpago de intuição. Meu enorme respeito é mesmo pelo Mário, que tanto trabalhou pela identidade nacional, com seriedade em vez de humor.

Quanto à questão da identidade sempre agucei o ouvido para a voz interior. Nunca me deixei levar pelas expectativas que os outros possam ter de mim.

Nem adolescente me importei pela moda reinante. Sempre fui “inner directed”, pelo menos nas minhas intenções conscientes. Nos anos 50, a maioria dos meus amigos do Clube da Madrugada cultivava o soneto e as formas fixas. Eu escrevia à solta. Quando, ginasiana ainda, eu descobri o modernismo, vibrei.

Era o direito ao verso fora da gaiola, em que eu, timidamente, ensaiava.Aliás, a essa altura, eu me exercitava muito mais na prosa, e foi nela que me inaugurei nas letras. Em 52, no curso clássico do colégio Pedro II, organizou-se um debate para comemorar os 30 anos da Semana. A província ainda era tão impregnada de parnasianismo que ninguém queria participar na bancada de defesa. Fiquei cabalando até encontrar dois colegas para atuarem comigo em prol do modernismo. Convivi com poetas da geração de 45 e apreciava a competência técnica deles, mas não me submetia àquela disciplina. Comecei a praticar o soneto ao traduzir Petrarca como tarefa do curso de língua e literatura italianas, já na faculdade. Gostei da experiência, mas há na minha natureza uma espécie de rebeldia a balizas e portas fechadas. Sou claustrofóbica por natureza e estou sempre com um pé atrás diante de leis e convenções.(Enquanto minha avó beijava o anel do bispo, eu apenas lhe estendia a mão.)

Ao analisar minha obra vejo nela a manifestação das contradições e conflitos, indagações e descobertas que me habitam desde que me entendo por gente. Em testes de psicologia empato extroversão com introversão, daí uma espécie de força centrífuga que me conduz à descrição e crítica do mundo real circundante, e de uma força centrípeta que me reconduz ao âmago de mim mesma, à ponderação e reflexão de questões filosóficas, invisíveis. Adepta da linguagem mais concreta, uso metáforas para expressar realidades imateriais. (Por exemplo, me refiro à morte como onça sem pelo, bicho de sete cabeças, coisas assim.) Amazonense, nascida e criada em Manaus, aberração de cidade sofisticada no meio do mato, sou atraída pela natureza e pela cultura.

O balanço entre esses pólos pode ser rastreado na temática e também na fatura dos meus poemas. Acolho o popular e o erudito, o coloquial e o requintado, o regional e o universal, sem preconceitos. A vida é feita de aspectos contraditórios e quero apreendê-la no seu todo, sem preocupação elitista, no calor da paixão, sem a frieza das coisas idealizadas. Por isso é que tanto leio os clássicos como ando de ouvidos abertos para o que as pessoas dizem nos ambientes informais das feiras, das filas, etc. Tudo me apraz. A linguagem oral é também um espetáculo imperdível e a vida incessante aprendizagem.

Creio que meu foco poético está no existencial e não no metalingüístico.A linguagem para mim, só eventualmente constitui-se em tema. Ela é sobretudo meu instrumento de sondagem e apropriação direta da realidade, sem intermediários, a não ser os que o inconsciente convoca. Não utilizo o que Benedito Nunes chama de “esfolhamento das tradições”. De um modo geral, meu discurso poético decorre mais da intuição, filtrada, é claro, pelo conhecimento de várias tradições literárias (leio poesia em várias línguas), que da memória consciente de outros textos e autores. Já li tanto que se tivesse boa memória até que teria armazenado razoável erudição, mas minha cabeça funciona em sínteses, não se detém muito nos detalhes, a não ser os que a emoção sublinha.

FM Como se deu tua experiência de ensino por ocasião da criação de Brasília. Ali te encontraste, por exemplo, com o poeta Santiago Naud. Que espécie de esperança alimentava então aqueles dias de surgimento da nova capital e até que ponto esta esperança foi abortada pelo golpe militar?

AC Entrei para UnB pela mão de José Carlos Lisboa, irmão de nossa querida Henriqueta, que nem ela, um ser culto e sensível. Foi meu professor de língua e literatura espanhola na Faculdade Nacional de Filosofia do Rio, onde cursei neolatinas, idos de 55-58. Devo a ele minha formação como professora. Era desses que não se limitava a trazer os peixes. Ensinava efetivamente a pescar. Tinha metodologia e estava sempre interessado no crescimento pessoal de cada aluno de per si. Tanto lidava com os grandes painéis, como descia às minúcias do texto. Era um dissecador dos problemas lingüísticos, dos recursos literários e exigia produção e aperfeiçoamento. Estava sempre avaliando o progresso ou a estagnação do aluno. Mantendo uma estreita aliança com seus discípulos, conhecendo-os em suas potencialidades, escolhia os autores e os temas em que cada aluno deveria trabalhar com extrema perspicácia psicológica. Impossibilitado de se transferir definitivamente para Brasília (era catedrático no Rio e em Belo Horizonte), passou o cargo ao Cyro dos Anjos que me recebeu muito bem, pois apreciara a contista de Alameda.

Na UnB tínhamos contratos semestrais e com isso estávamos sempre trabalhando em áreas diferentes, como auxiliares jovens de professores mais velhos e experientes. Trabalhei em teoria literária com Oswaldino Marques, em língua portuguesa com Adriano da Gama Kury, em literatura portuguesa com o professor George Agostinho da Silva. Foi na equipe deste que me encontrei com o Santiago Naud, até hoje meu grande amigo. Tenho por ele uma admiração total, pela alta qualidade de seu trabalho e pela figura humana extremamente digna.

É um ser como o Afonso Félix de Sousa era, de alta espiritualidade. Nos idos de Brasília estávamos todos unidos pela utopia de um Brasil melhor, de uma universidade de alto nível. Mas nós, idealistas, volta e meia nos defrontávamos com fatos reais decepcionantes.

Darcy Ribeiro, por exemplo, a despeito de toda bagagem etnográfica e sociológica, era de uma prepotência terrível. Queria sempre ditar as leis, não sabia dialogar. Uma de suas propostas era de que o mestrado em letras devia incluir obrigatoriamente línguas indígenas, podendo até dispensar o latim e o grego. Um dia um colega lhe disse de cara que ele não parecia um reitor de universidade, mas um feitor de fazenda. Havia também muita rivalidade entre equipes oriundas de regiões diferentes, o grupo paulista, o grupo baiano, o mineiro. Farpas e mais farpas

Porém a degringolada veio com o golpe militar, pois a degola começou pelas figuras de proa. Eu trabalhava num curso de morfologia dos gêneros literários com o professor Oswaldino Marques, quando ele foi cassado. Pedi exoneração em solidariedade e também porque o ambiente estava lúgubre. Apareciam figuras suspeitas a paisana espionando as aulas e até policiais certa vez invadiram minha sala dando busca em papéis e livros.

(Vários amigos me aconselharam a queimar os livros de esquerda que eu tinha em casa. O Afonso estava viajando e eu podia ser surpreendida por uma visita de inspeção. Felizmente eu não cometi o crime de jogar fora os livros.) As vagas dos cassados foram preenchidas por pessoas favoráveis à ditadura e incapazes na profissão, espertalhões que avidamente abocanharam os empregos sem o menor escrúpulo. Por outro lado os professores que permaneceram durante a instalação da ditadura passaram por grandes apuros. Quando retornei à UnB, depois da anistia em 88, observei que com o passar dos anos tinha havido uma certa recuperação e o nível no departamento de letras estava bom.

FM Bom exatamente em que sentido, Astrid? Quais relações poderiam ser traçadas, em termos de qualidade de ensino, entre o que se tinha no período do regime militar e o que se tem hoje em âmbito democrático?

AC Observei, Floriano, contrariando minhas expectativas pessimistas, que o nível dos alunos era de melhor qualidade. Brasília dispõe hoje de bons colégios de nível médio. Nos idos de 60, os candidatos afluíam de vários pontos do país, eram moradores recentes, com bagagem educacional de origem muito variada. Já nas últimas décadas, a seleção mais apertada no vestibular, devido à forte competição, redundou em turmas mais aptas e homogêneas. Os três ou quatro alunos que não consegui aprovar por total falta de base, eram beneficiados por lei de transferência dos servidores públicos , com dispensa de vestibular para o ingresso na UnB.

Nesses mais de 20 anos de ausência, a competição entre maior número de professores determinou processos de avaliação, em princípio mais difíceis, maior cobrança de produção acadêmica. O atual quadro docente é basicamente constituído de doutores com especialização.

Cabe lembrar que não testemunhei o terrível período da ditadura no poder, a não ser no primeiro ano de sua instalação. Isso me impede de traçar uma análise profunda das transformações.

De certo modo, acho que dei uma pequena contribuição à democracia quando, ao reassumir o magistério, incentivei vivamente os alunos a fazerem uma avaliação do meu curso. O fato é que eu, na condição de oficial de chancelaria do Ministério das Relações Exteriores, durante vinte anos fui julgada pelos chefes diplomatas, o que sempre me pareceu um abuso de poder, dada a inexistência de julgamento em sentido inverso.

Pude portanto ver com alegria o diretório estudantil começar a avaliar semestralmente os cursos, dando nota aos professores, contribuindo portanto diretamente no aperfeiçoamento do processo de aprendizagem. Se a gente abre bem os olhos, vê que no Brasil ainda se tem uma democracia muito de fachada. A todo momento deparamos situações de flagrante autoritarismo, as pessoas crentes que os cargos lhes concedem poderes absolutos.

FM Falemos sobre poetas brasileiros com os quais acaso tenhas dialogado no desenho de uma poética que te define. Mencionaste em algum momento o “fôlego épico-lírico” de Jorge de Lima. Que importância tem este poeta para ti?

AC Pergunto onde falei do “fôlego épico-lírico” de Jorge de Lima, pois não estou me lembrando. Tenho uma verdadeira paixão pela poesia dele, em particular pelo Invenção de Orfeu, que tanto me seduz quanto me escapa. Acho de uma complexidade fascinante. Esse poema tem uma dimensão de mistério que me atrai. É um labirinto que convoca ao desafio. Meu poeta preferido é Drummond, mais ao alcance do meu entendimento, mais em sintonia com a minha cosmovisão prosaica.

Jorge de Lima me ultrapassa em seus oníricos périplos, seus altíssimos vôos. Eu não me alço muito alto, tenho asas de galinha, mas tenho o desejo de ultrapassar meus limites. Aliás, a minha proposta para dissertação de mestrado (1963/1964) era sobre os processos de criação vocabular em Invenção de Orfeu, que terminei por abandonar a meio caminho. O primeiro obstáculo foi a morte do meu orientador, o Hélcio Martins que faleceu de uma anemia perniciosa. Depois veio a ditadura e a essa altura, aos 29 anos, eu já estava com uma escadinha de 4 filhos e outros problemas de pesada sabotagem.

Quanto a outros poetas brasileiros, estou à espera de que alguém me diga onde me encaixo, quais são meus antepassados. Já me aproximaram de Ungaretti, Francis Ponge, Elizabeth Bishop. O Otávio Mora já me falou até de um poeta escocês, de quem esqueci o nome, mas que segundo ele tem tudo a ver comigo. E eu que sou escancaradamente brasileira, não sei mesmo onde me entronco, com quem me aparento. Será que você me ajudaria? Uma coisa é certa, nunca me preocupei em imitar ninguém. Não sou furta-cor e qualquer semelhança é mera coincidência, ou fruto de uma elaboração gratuita do inconsciente.

FM Não pretendia falar em semelhanças ou coincidências, mas antes em afinidades, ou seja, quem te chama a atenção em termos de poesia brasileira, e que importância atribuis a tais afinidades em tua poética. Mencionaste aqui uma grande poeta brasileira raramente lembrada, a Henriqueta Lisboa. O que disseste sobre o Jorge de Lima foi em uma resenha escrita sobre livro do Reynaldo Valinho Alvarez. Não me interessa com quem te aparentas. Eu tampouco me aparento com ninguém, por exemplo, mas sei observar algum diálogo valioso que minha poesia traçou, em algum momento, com poetas como Roberto Piva, Ferreira Gullar e o próprio Jorge de Lima. É disto que quero que fales.

AC Muitos poetas brasileiros me tocam fundo, além de Drummond e Jorge de Lima. Gosto imensamente de Gregório de Matos e Augusto dos Anjos. São poetas de incontida força, vulcões em erupção. Dos árcades prefiro Claudio Manuel da Costa e dos românticos, me amarrei primeiro em Castro Alves e mais amadurecida, vim a preferir Gonçalves Dias, mais épico e menos altissonante. Entre os modernistas, além dos já mencionados, gosto do Bopp com quem comungo do telurismo amazônico, e sobretudo de Joaquim Cardoso e Mario Quintana. Estes dois sempre me arrebatam e iluminam.

Cecília Meireles me embala com sua finíssima musicalidade e imagética. Gilka Machado me atrai por sua sensualidade e coragem, precursoras do aflorar da voz feminina, secularmente reprimida. A importância dela ainda não foi devidamente aferida nas gerações que lhe sucederam. Creio, em certo aspecto temático, estar mais próxima dela do que de Cecília. Dos contemporâneos mantenho intercâmbio com grupos em vários pontos do Brasil, mas acho difícil apontar afinidades. Nutro admiração por alguns autores de expressão singular, que não nomeio para evitar os infalíveis esquecimentos.

FM Segundo teu entendimento, se tem praticado a crítica no Brasil dando-se importância menor à obra literária, ou seja, nossos críticos “servem-se dela mais como pretexto do que como núcleo de análise”. Poderíamos conversar mais claramente, em torno de nomes?

AC Floriano, lógico que há muita gente séria, tipo Wilson Martins, Antônio Cândido, Alfredo Bosi, Fábio Lucas, etc. Peço que você guarde segredo sobre os nomes dos outros. De muitos eu nem gravo os nomes, desisto no meio do caminho, só vejo lá no pé do texto que o autor é doutor em letras. Quando um aluno meu me apresentava texto mal elaborado, eu assinalava todas as falhas para que ele corrigisse raciocinando. Alguns apresentavam várias versões como exercício até a definitiva. Tenho ganas de mandar certos críticos de volta a uma classe de redação. O ensaísta ou o crítico, a meu ver, não pode ser ambíguo, nem lacônico. Sua função é desembrulhar e não embrulhar. Ele tem que ter uma postura preferencialmente didática. Fico espera de que alguém traduza, em linguagem legível, os críticos de pensamento confuso. Penso com Boileau, “ce que l’on conçoit bien, s’ennonce clairement”.

FM Mas não te parece que os próprios escritores, sobretudo pensando naqueles que exercitam a crítica, são muito coniventes com essa linguagem cifrada de teus dois belos exemplos? Observo ainda que é muito pouco substantiva a pretensão crítica em nossos poetas. Isto acaso deriva de alguma falha de cultura? Seria reflexo inclusive de tanta imaturidade poética, como a que sabe existir desenfreadamente e até conviver muito bem com esses libelos da crítica acadêmica? Isto acaso nos levaria a um círculo vicioso?

AC Sim, há muitos cultores de linguagem cifrada, tanto entre criadores como entre críticos. Será um estilo de expressão típico da atualidade? Mais um modismo vigente? Um barroquismo pós-moderno? Por que estarei eu a exigir tanta claridade? A luz equatorial que me banhou na infância me viciou até hoje? Ou lê-se tanto hoje em dia que a assimilação se processa de modo atropelado e imperfeito?

As pessoas, em geral, não mais se debruçam sobre coisas, fatos e palavras com o devido vagar. São engolidas pela voragem da leitura, enfeitiçados pela erudição. Não lhes sobra tempo para refletir. Empanturradas de informações, se perdem ao dissecar e analisar . Não se dão as pausas necessárias para chegar ao amálgama da síntese. Que existe falha de cultura e imaturidade poética, falta de pretensão crítica da parte de muitos criadores é um fato.

Nesse caso, estarão expostos ao crivo dos leitores e entendidos. Mas a crítica hermética acaso poderá resolver isso? Para ser de alguma utilidade, ela precisa mostrar com precisão as deficiências ou apontar as qualidades de modo convincente. Afinal , espera-se da crítica como gênero secundário, uma atitude auxiliar, avaliadora.

Cito aqui o Fausto Cunha, um dos críticos mais lúcidos que o país já produziu: “A crítica não supre o conhecimento da obra, como o conhecimento da obra quase sempre dispensa o conhecimento da crítica” . A impressão que tenho é de que a crítica está disputando o primeiro plano, competindo com a obra de criação, usando-a apenas como ponto de partida para uma criação paralela de outra natureza, analítica, parafrásica, sei lá, desdenhando portanto de sua função original. Bem, Floriano, estás a ver que não sou nenhuma teórica, uso apenas o bom senso que às vezes não passa de uma incapacidade para atingir alvos mais distantes ou mais profundos.

 

ASTRID CABRAL (Brasil, 1936)

Ponto de cruz . Cátedra. Rio de Janeiro. 1979.

Torna-viagem . Pirata. Recife. 1981.

Lição de Alice . Philobiblion. Rio de Janeiro. 1986.

Visgo da terra . Edição Puxirum. Manaus. 1986.

Rês desgarrada . Thesaurus. Brasília. 1994.

De déu em déu . Sette Letras /Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro. 1998.

Intramuros . Secretaria de Cultura do Paraná. Curitiba. 1998.

Rasos d’água . Secretaria de Cultura do Amazonas/Valer. Manaus. 2003.

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