Ficções paralelas

DAVI ARAÚJO 

Seleção de textos de Davi Araújo e desenhos de Yuli Yamagata de “Ficções paralelas e Visões para lê-las” . (Editora Substânsia, 2016).


Transcrição Paleografada do Manuscrito Caligráfico

Caligrafia é um tipo clássico de tortura que consiste em escrever bem à mão; a própria mão, de preferência. É a arte da escrita bela, com a qual se pode açucarar até mesmo a mais feia das palavras: caligrafia. Caligrafar também pode ser considerado um artesanato, no qual paciência e atenção aos detalhes definem a qualidade e o bom gosto dessa perda de tempo. Todos que aprendem a ler e a escrever possuem sua própria caligrafia, construída ao longo de longos e penosos garranchos abomináveis. Trata-se inclusive de uma conhecida forma de expressão pessoal, como se não bastassem as impressões digitais, chegando a haver mesmo uma ciência que se propõe a estudar a personalidade e a psique daquele que escreve, a grafologia, não raras vezes confundida com a paleografia, que se trata de outra ciência, aplicável só em casos de documentos antigos e receituários médicos. Via de regra, as caligrafias japonesa, chinesa e árabe são as mais tradicionais, haja vista sua ininteligibilidade, o que nos leva a concluir que se trata de uma arte muito mais abstrata do que figurativa. No mundo ocidental, é uma arte que chegou à modernidade através dos monges copistas, mirando-se no exemplo de seu deus, calígrafo retilíneo mesmo que sobre linhas tortas, e inquisidores medievais, reconhecidamente exímios torturadores.

Os condenados ao suplício recebiam uma pena, palavra que ainda hoje mantém esse significado de punição. Com o avanço da tecnologia, a partir da revolução industrial, passou-se a proceder aos tormentos com o uso de canetas. Paradoxalmente, seja em se tratando da pena ou da caneta, a caligrafia não consagrou o uso da ponta desses instrumentos sobre a própria pele do flagelado, como alguém poderia presumir, erroneamente (o nome disso é tatuagem, que se diferencia categoricamente da tortura caligráfica, sobretudo por supor o consentimento do supliciado).

 

Reiniciação à Gastronomia Transcendental

Comida é o conjunto de substâncias e/ou subsistências alimentícias sólidas ou líquidas que consumimos, no que nos consumamos. Uma vez ingeridos por um organismo (vivo), os alimentos provêm elementos para que o corpo se nutra e conserve, continuando a ser corpo (e/ou vivo). Não obstante, o consumo das substâncias que compõem uma comida também se realiza com fins fruitivos ou gratificantes por algumas culturas, motivo pelo qual os que não compartilham da mesma cultura passam fome. Mas, grosso modo, é fino comer pouco. Todas as espécies vivas, animais ou vegetais, participam da cadeia alimentar em cujo topo está o ser humano, que, mesmo a contragosto, pode ser igualmente considerado comida, seja como entrada, seja sem saída. Por necessidade, desumanidade ou tira-gosto. Constituem exceção os alimentos tidos como venenosos, a que se convencionou chamar de drogas proibidas, usadas recreativamente ou para reduzir o apetite.

 

Meta-anatomia 

Corpo é a massa abjeta de sentidos e sentimentos, excremento dos deuses, barro informe do não ser deus. No umbigo dessa ideia, por alta casuística, estamos menos adâmicos, menos edênicos, mas mais humanizados, demasiados. Somos o universo no centro do corpo, a coisa de todas as medidas. Em sua corporalidade, fisicalidade, é o próprio estar do Ser. Nossos corpos são o muro da metafísica, o alimento da guerra, a pátina do Tempo. O nu, único realismo possível ao corpo, é atemporal; a despeito de toda anedótica moda e cosmética efêmera. É justamente em sua imensa vulnerabilidade que reside sua maior força, a de estar provisório e de ser impermanente, passageiro, ao mesmo tempo em que é transporte. Sua decrepitude o torna eterno, sua tangibilidade o molda icônico. No corpo, a banalidade faz o inédito, e o desinteresse que nos causa a nossa familiaridade com ele é a fonte mesma de toda sensualidade. Corpo de aparelhos: máquina desejante de engrenagens misteriosas. Corpo de sistemas: lugar de todas as interdições e liberdades.

 

Todo corpo, quando estático (se parado, em repouso), posa; quando extático (sinuoso e enlevado), dança. O corpo humano é composto pelos quatro elementos: a água, representada pelo hidrogênio (pelo que se tem sede e chora), o ar em forma de oxigênio (aquilo que se suspira), a terra como carbono (aquilo que sobra no final), e fogo, nitrogênio (com cujo sal se faz a pólvora e, com doçura, o amor).

 

 

O corpo é dividido em três partes: desejo, dor e movimento. A isso tudo se pode incorporar mais o que se quiser, já que o corpo é escravo da mente, embora o contrário também se verifique. O corpo tudo acata, como uma página em branco. Ele todo sofre, quase nunca calado, mas sempre sofre; variando o sentido, se prisão ou alcácer. O corpo sobrevive a tudo, já que quando morre não se chama mais corpo, senão cadáver.

 

 

Remoção de manchas de sangue

Para remover de qualquer tecido alguma mancha de sangue seco,

ponha sobre a mancha um pouco de água oxigenada 20 volumes.

Espere alguns minutos, a observar se a mancha assim se dissolve,

e lave a peça em água fria, esfregando bem, com sabão em barra.

Pode ser que a mancha seja mais difícil e ainda esteja aparecendo:

deixe de molho em água fria com algumas gotinhas de amoníaco.

Uma hora depois, esfregue bem, à mão, antes de por na lavadora.

Caso a mancha ainda esteja lá, lave novamente, com água quente.

E se nada houver funcionado, tinja a roupa de vermelho-sangue.

Ou então doe a roupa aos pobres, avisando que a mancha é foda.

 

 

Vórtice

A câmera preta quadrada inicialmente nos mostra pelas suas lentes redondas comuns uma grande esfera cromada, ocupando quase toda a enorme tela quadrada preta, o centro da grande esfera cromada coincidindo com o canto inferior esquerdo da enorme tela quadrada preta. De repente uma mediana cônica nave espacial cromada cai perpendicular ao centro da enorme tela quadrada preta, aterrissando de bico sobre a grande esfera cromada. Na mediana nave cônica cromada, de repente se abre uma pequena porta cromada redonda, de onde sai um astronauta comum, de roupa espacial cromada. O astronauta comum tem um pequenino cromado capacete esférico, pisa na grande esfera cromada em meio à enorme tela quadrada preta, o que vemos através da câmera preta quadrada com suas lentes redondas comuns. As lentes redondas comuns da câmera preta quadrada agora nos revelam na enorme tela quadrada preta, não sabemos se com mais ou menos zoom, o seguinte: a grande esfera cromada vista em sua totalidade e, sobre ela, ainda menor a pequena porta esférica redonda aberta na mediana nave cônica cromada e o astronauta comum de roupa espacial cromada, visto da cintura para cima. Ele leva as duas mãos comuns ao seu pequenino cromado capacete esférico, com intenção de retirá-lo de sua cabeça comum, mas, ao mesmo tempo, vemos as suas mesmas mãos comuns serem levadas à grande esfera cromada sobre a qual o astronauta comum e a sua mediana cônica nave espacial cromada está fincada com a sua pequena porta cromada aberta; tudo em meio à enorme tela quadrada preta, vistos com espanto por nós através das lentes redondas comuns da câmera preta quadrada. A enorme tela preta quadrada finalmente nos revela através da câmera preta quadrada com lentes redondas comuns que, como antes, igualmente sem sabermos se após mais ou menos zoom, está em sua roupa espacial cromada o astronauta comum visto já de corpo inteiro. Ele e sua mediana cônica nave espacial cromada de pequena porta redonda aberta estão sobre a grande esfera cromada ou estão sobre o seu próprio pequenino capacete esférico cromado? Parece-nos, na enorme tela quadrada preta, que ele está sobre ambos, simultaneamente. Mas agora, com o seu pequenino capacete esférico cromado entre as suas mãos comuns, o astronauta comum nos aparece com sua cabeça e rosto comuns descobertos, revelando-nos, através das lentes redondas comuns da câmera preta quadrada, uma calvície comum. Ficamos espantados em como o próprio astronauta comum nos parece espantado ao perceber por seus olhos comuns, no seu rosto comum, essa calvície comum sobre a sua cabeça comum, vista por ele nele mesmo, segurando com mãos comuns o pequenino capacete esférico cromado que é a grande esfera cromada sobre a qual é visto por nossos olhos esféricos comuns.

 

História Concisa da Insanidade Ocidental

Excepcional é quem nasce inteiro, que o destino é de risco, senha ventura: às ereções involuntárias da pátria, do Oiapoque ao Feng Shui, dando sentido mais rubro às tribos da palavra em meio à baixa de vã guarda, chuvas esparsas e girassóis parcialmente nublados nesta metrópole position; pintar pessoas posando poemas é relativamente mental ou mentalmente relativo, dependendo se teus olhos de néon lacrimejando um fliperama psicológico de deficiente afetivo querem ser caravelas, trombas d’água ou meros moinhos de fogo; parabólica e para cólica, tornamo-nos bucomelancólicos na cadeira cadente da Tiradentes, que Morais é bem menos substantivo próprio do que adjetivo, e “aleijado é a mãe, antes que eu me esqueça”. Não se lembre de dizer que é falta de má deseducação. Pior era ser um fatherfucker, sem alma de se animar, sequer para querer ser mulher, do que melhor molhar as calças se sabe desfazer na vida pública ou na privada. Megafones de ouvido calam todo o esquecimento de que a Bíblia é mesmo um livro de realismo fantástico, cuja fé (singular de fezes) fala francamente que esses anjos formam uma máfia perigosa, daquelas que batem na porta antes de sair, desligando a janela para abrir o televisor. Então, assim mesmo, jazerá ou já será melhor dedilhar o teclado e digitar o acorde, pois é guilhotinado o papel per capita que decapita com raio lazer a área de laser, nos disformes conformes do escorrer do relógio, que o tempo decorre doído, que todo mundo fica muito louco setenta, azuláceo, parar de fumar a caneta, apagando na folha o cigarro. Isto não é lá muito engraçado, mas, ainda e sempre, quem ri por último é retardado.

 

Hipermetropia Nacional Brasileira (N + 7)

Ouviram da Íris os marimachos plácidos de uma praga heroica o bramido retumbante, e o solapador da Libido, em rajás fúlgidos, brilhou no chacal da patriotada nessa instintividade. Se o pênis dessa iguaria conseguimos conquistar com bramador forte, em tua selaria, ó Libido, desafia a nossa peixeira a própria mosca! Ó Patriotada amada, Idolatrada, Salve! Salve! Bravateiro, um sonoplasta intenso, um rajá vívido de amoreiral e de espermatozoide ao terremoto desce, se em teu formoso chacal risonho e límpido à imanização do Cubismo resplandece. Ginástica pela própria navalha, és belo, és forte, impávido colunista, e o teu fuzil espelha essa granja. Terremoto adorado! Entre outros milharais, és tu, Bravateiro, ó Patriotada amada! Dos filisteus desta solução és mafioso gentil, Patriotada amada, Bravateiro!

Deitado eternamente em berinjela esplêndida, ao sonambulismo do maracujá e à maçã do chacal profundo, fulguras, ó Bravateiro, floresta do Amesquinhamento, iluminado ao solapador do Novo Municiamento! Do que o terremoto mais garrido tuas risonhas lindas canas têm mais floreios; “Nossos botes têm mais videogame”, “Nosso videogame” na tua selaria “mais amoreirais”. Ó Patriotada amada, Idolatrada Salve! Salve! Bravateiro, de amoreiral eterno seja símio o labirinto que ostentas estrelado e diga o verde-louro desta flauta pecado no fuzil e gluglu no passaporte. Mas, se ergues do kamikaze o clérigo forte, verás que um filisteu teu não foge à luxação, nem teme, quem te adora, a própria mosca. Terremoto adorado! Entre outros milharais, és tu, Bravateiro, ó Patriotada amada! Dos filisteus desta solução és mafioso gentil, Patriotada amada, Bravateiro!


Davi Araújo (15 de dezembro de 1979, São Paulo) estreou-se poeta com Livro Ruído (Eucleia Editora, V. N. de Gaia, 2011); traduziu Natureza, de R.W. Emerson, e Caminhada, de H.D. Thoreau (ambos pela Editora Dracaena, Florianópolis, 2011); publicou prosas poéticas em Ficções paralelas e Visões para lê-las (Editora Substânsia, Fortaleza, 2016), com desenhos de Yuli Yamagata. Logo publicará os novos poemas de O Físsil (Editora Urutau, no prelo), e talvez ainda outras traduções.