"Estou actualmente atravessando uma daquelas crises a que, quando se dão na agricultura, se costuma chamar "crise de abundância".
Tenho a alma num estado de rapidez ideativa tão intenso que preciso fazer da minha atenção um caderno de apontamentos, e, ainda assim, tantas são as folhas que tenho a encher que algumas se perdem, por elas serem tantas, e outras se não podem ler depois, por com mais que muita pressa escritas. As ideias que perco causam-me uma tortura imensa, sobrevivem-se nessa tortura escuramente outras. V. dificilmente imaginará que a Rua do Arsenal, em matéria de movimento, tem sido a minha pobre cabeça. Versos ingleses, portugueses, raciocínios, temas, projectos, fragmentos de coisas que não sei o que são, cartas que não sei como começam ou acabam, relâmpagos de críticas, murmúrios de metafísicas... toda uma literatura, meu caro Mário, que vai da bruma - para a bruma - pela bruma...
Destaco de coisas psíquicas de que tenho sido o lugar o seguinte fenômeno que julgo curioso. V. sabe, creio, que de várias fobias que tive guardo unicamente a assaz infantil mas terrivelmente torturadora fobia das trovoadas. O outro dia o céu ameaçava chuva e eu ia a caminho de casa e por tarde não havia carros. Afinal não houve trovoada, mas esteve iminente e começou a chover - aqueles pingos graves, quentes e espaçados - ia eu ainda a meio caminho entre a Baixa e minha casa. Atirei-me para casa com o andar mais próximo do correr que pude achar, com a tortura mental que V. calcula, perturbadíssimo, confrangido eu todo. E neste estado de espírito encontro-me a compor um soneto* - acabei-o uns passos antes de chegar ao portão de minha casa -, a compor um soneto de uma tristeza suave, calma, que parece escrito por um crepúsculo de céu limpo. E o soneto é não só calmo, mas também mais ligado e conexo que algumas coisas que eu tenho escrito. O fenômeno curioso do desdobramento é a coisa que habitualmente tenho, mas nunca o tinha sentido neste grau de intensidade... "
ABDICAÇÃO
Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho... eu sou um rei
que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.
Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mão viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa - eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços
Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.
Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.
Fernando Pessoa, 1913
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