FLASH: "Fernando Pessoa", por Magno Urbano
NOTICIA NECROLÓGICA DA MORTE DE FERNANDO PESSOA
[tal como foi publicada no Diário de Noticias de 3-12-1935]

Registando as palavras de Luís de Montalvor

MORREU FERNANDO PESSOA

Grande poeta de Portugal

Fernando Pessoa, o poeta extraordinário da Mensagem, poema de exaltação nacionalista, dos mais belos que se tem escrito, foi ontem a enterrar.

Surpreendeu-o a morte, num leito cristão do Hospital de S. Luís, no sábado à noite.

A sua passagem pela vida foi um rastro de luz e de originalidade. Em 1915, com Luís de Montalvor, Mário de Sá-Carneiro e Ronald de Carvalho - estes dois já mortos para a vida - lançou o Orpheu, que tão profunda influência exerceu no nosso meio literário, e a sua personalidade foi-se depois afirmando mais e mais. Do fundo da sua «tertúlia» a uma mesa do Martinho da Arcada, Fernando Pessoa era sempre o mais novo de todos os novos que em volta dele se sentavam. Desconcertante, profundamente original e estruturalmente verdadeiro, a sua personalidade era vária como vário o rumo da sua vida. Ele não tinha uma actividade «una», uma actividade dirigida: tinha múltiplas actividades.

Na poesia não era só ele: Fernando Pessoa; ele era também Álvaro de Campos e Alberto Caeiro e Ricardo Reis. E era-os profundamente, como só ele sabia ser. E na poesia como na vida. E na vida como na arte.

Tudo nele era inesperado. Desde a sua vida, até aos seus poemas, até à sua morte.

Inesperadamente, como se se anunciasse um livro ou uma nova corrente literária por ele idealizada e vitalizada, correu a notícia da sua morte. Um grupo de amigos conduziu-o ontem a um jazigo banal do Cemitério dos Prazeres. Lá ficou, vizinho de outro grande poeta que ele muito admirava, junto do seu querido Cesário, desse Cesário que ele não conhecera e que, como ninguém, compreendia.

Se Fernando Pessoa morreu, se a matéria abandonou o corpo, o seu espírito não abandonará nunca o coração e o cérebro dos que o amavam e admiravam. Entre eles fica a sua obra e a sua alma. A eles compete velar para que o nome daquele que foi grande não caia na vala comum do esquecimento.

Tinha 47 anos o poeta que ontem foi a enterrar. Quarenta e sete anos e um grande amor à Vida, à Arte, à Beleza. Quando novo, acasos do Destino, a que ele obedecia inteiramente - Fernando Pessoa teósofo, cristão, que conhecia todas as seitas religiosas e as negativistas, pagãos como só os artistas o sabem ser, Fernando Pessoa obedecia cegamente ao Destino - levaram-no para a África do Sul. E na Universidade do Cabo cursou o inglês. E de tal maneira estudou a língua que Shakespeare e Milton imortalizaram que, anos passados, apresentava nos cercles literários da serena Albion quatro livros de poemas - English Poems, I, II, III, IV; Antinous e 35 Sonnets. E num concurso de língua inglesa alcançou o primeiro prémio.

Depois, uma vez em Portugal, a sua actividade literária aumentou. É de então que data a sua colaboração na Águia, onde o seu messianismo metafísico, num célebre e elevado estudo, anunciou o aparecimento do Super Camões da literatura portuguesa.

1915. «Orpheu». Movimento intenso de renovação. Entretanto, colabora no Centauro, Exílio, Portugal Futurista, Contemporânea. Começa a ser amado e compreendido.

1924. Funda com Rui Vaz a revista Athena. Depois, de então para cá, a sua actividade multiplica-se. Colabora em revistas modernistas, como Presença, Momento e, há um mês ainda, no Sudoeste, que Almada Negreiros fundou com notável desassombro. Traduziu Shakespeare e Edgar Poe. Estas são, em linhas muito esquemáticas e gerais, as obras que definem a sua personalidade. Quem o quiser compreender folheie a sua obra vasta e dispersa. Começará a amá-lo.

*

Da capela do Cemitério dos Prazeres, para jazigo de família, cerca das onze horas de ontem, partiu o corpo do grande poeta. Alguns amigos de sempre acompanharam-no. Foram eles, pelo Orpheu, Luís de Montalvor, António Ferro, Raul Leal, Alfredo Guisado e Almada Negreiros; pela Presença, João Gaspar Simões; pelo Momento, Artus Augusto e José Augusto; e Ferreira Gomes, Diogo de Macedo, Dr. Celestino Soares, António Botto, Castelo de Morais, João de Sousa Fonseca, Dr. Jaime Neves, António Pedro, Albino Lapa, Silva Tavares, Vitoriano Braga, Augusto de Santa-Rita, Luís Pedro, Luís Moita, Manuel Serras, Dr. Boto de Carvalho, Rogério Perez, Celestino Silva, Telmo Felgueiras, Nogueira de Brito, Dante Silva Ramos, Carlos Queirós, Mário de Barros, Dr. Rui Santos, Marques Matias, Gil Vaz, Luís Teixeira e poucos mais.

O Sr. Capitão Caetano Dias, cunhado do poeta, representava a família.

Em frente do jazigo que Fernando Pessoa passa a habitar, Luís de Montalvor, seu companheiro de vinte e quatro anos de vida literária, proferiu simples e emotivas palavras em nome dos sobreviventes do grupo do «Orpheu».

E disse:

«Duas palavras sobre o trânsito mortal de Fernando Pessoa.

Para ele chegam duas palavras, ou nenhumas. Preferível fora o silêncio, o silêncio que já o envolve a ele e a nós, que é da estatura do seu espírito.

Com ele só está bem o que está perto de Deus. Mas também não deviam, nem podiam, os que foram pares com ele no convívio da sua Beleza, vê-lo descer à terra, ou antes, subir, ganhar as linhas definitivas da Eternidade, sem anunciar o protesto calmo, mas humano, da raiva que nos fica da sua partida.

Não podiam os seus companheiros de «Orpheu», antes os seus irmãos do mesmo sangue ideal da sua Beleza, não podiam repito, deixá-lo aqui, na terra extrema, sem ao menos terem desfolhado, sobra a sua morte gentil, o lírio branco do seu silêncio e da sua dor.

Lastimamos o homem, que a morte nos rouba, e com ele a perda do prodigio do seu convívio e da graça da sua presença humana. Somente o homem, é duro dizê-lo, pois que ao seu espírito e ao seu poder criador, a esses deu-lhes o Destino uma estranha formosura, que não morre.

O resto é com o génio de Fernando Pessoa. »

Os serviços fúnebres estiveram a cargo da Agência Barata.

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