ACERCA DE ÁFRICA
E DOS ESTRANHOS PEIXES




 
IN: MADALENA FÉRIN
ÁFRICA ANNES

Edições Salamandra
Lisboa, 2001
Publicação patrocinada pela Direcção Regional da Cultura, Açores

 

Sobre a criança que nascera em tão dificultosas circunstâncias, parece que não impendia a sorte de seus irmãos. África, alimentada pela burra e embalada nos ternos braços de Luzia, ganhava saúde e beleza e já ultrapassara os meses que tinham sido fatais para os outros meninos, seus irmãos.

Seu pai ia visitá-la quase todas as tardes, antes do toque das trindades, ao anoitecer, e olhava-a com alguma ternura.

Passava as pontas dos dedos nos seus negros cabelinhos, e as muito velhas mulheres que residiam no paço, quando viam o capitão do donatário olhar a menina, ficavam muito espantadas por não ser costume um tão grande Senhor olhar assim sua filha.

Também Fernão Gonçalves, amo de Antão Annes, chamado da Barba porque a tinha muito comprida, dizia que nunca o pai dele o havia olhado deste modo porque não era hábito os poderosos senhores perderem seu tempo a visitar crianças.

Quando começou a idade de lhe nascer os dentes, deram-lhe para roer a vértebra de um peixe que não era baleia, encontrado no pesqueiro do Demo, assim chamado por ser ruim e trabalhoso. Esse peixe não tinha osso nem espinha, enorme de quarenta e dois côvados em comprimento e oito de largo, de quinze palmos de alto e da ponta da boca até à guelra tinha vinte e cinco palmos; e que, o vendo, alguns homens disseram que se se abrira a boca, bem pudera caber e entrar por ela uma junta de bois com seu carro.

E o amarraram e andaram cem homens subindo por ele como sobem pelas cintas de um navio, e no dia seguinte, cento e cinquenta, e todos o cortaram com machados. Deitou pela ilharga tanto azeite claro que encheu duas ou três pipas e este azeite logo coalhava entrando na água e peneirando-o ficava branco como manteiga.

Derreteram-no em fogueiras que fizeram sobre a areia e aproveitaram-no para a candeia. Depois viram que era também bom para mezinha de sarna e caganeira de bois e para frialdade untando-se com ele.

Todo derretido o peixe, viram que não tinha osso nem espinha como atrás disse, mas os nervos eram de tal modo rijos que podiam prender com eles as reses ou outras bestas à relva e que tinham a maior resistência sem nunca se quebrarem.

Pois foi um pequeno pedaço destes nervos, parecendo âmbar, que puseram nas mãozinhas de África e com o qual ela coçava suas gengivas rosadas.

Tempos depois encontraram outro peixe morto, de estranha grandura, mas derretido não se tirou grande proveito por se gastar mais lenha para o queimar do que o que valia em azeite. Mas alumiava mais claro do que o de baleia quando ardia e não saía nenhum cheiro.

Era tão grande e espantoso com suas barbatanas no redor da cabeça como tábuas de forro e com cabelos como de seda nas pontas, parecendo um resplendor. Este peixe dizem que é grande guerreiro e furioso na peleja.

Também quiseram dar um pedacito dele a África para coçar suas gengivas, mas a menina assustou-se tanto que gritou durante três dias.

Parecia que já o tivesse alguma vez olhado em seu meio, natural, que era o profundo abismo do mar.

E isto tudo que a menina fazia era causa de espanto.

Por todos estes sinais, e porque África tinha um brilho desusado no olhar e devido ao seu nascimento que ocorreu no próprio momento do terramoto, como Petronilla Afonso jurava, pondo a mão sobre a Bíblia, havia quem acreditasse que ela estaria predestinada a grandes feitos.

CAPÍTULO DÉCIMO SEGUNDO