MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov
Comunicação apresentada na tertúlia Letras e Artes. Biblioteca Municipal, 25 de Maio de 2024, Lamego
Tive a agradável surpresa, na Biblioteca Almeida Garrett, depositária de fundos da Biblioteca Municipal do Porto, enquanto durarem as obras nesta, de consultar três livros de Fausto Guedes Teixeira (1871-1940) que pertenceram a Sampaio Bruno. Existiu correspondência entre ambos, pelo menos da parte de Guedes Teixeira, uma vez que este lhe oferece as obras autografadas, e lhe dedica o poema “Entregue ao meu tormento”, incluído no livro Alma triste. Existe alguma relação entre a obra de ambos? Talvez o sentimento religioso, porém o matiz é muito diferente. Guedes Teixeira é um católico fervoroso, com poemas a Nossa Senhora da Carregosa e à morte do Papa Leão XIII, dois exemplos apenas, que não deixam margem para dúvidas, e Sampaio Bruno era um espírito muito mais complexo, cuja espiritualidade, em parte grande revelada na criação de O Encoberto, foi a primeira pedra da chamada Filosofia Portuguesa, misto de poesia e misticismo, ou de Razão e mistério, para lembrar uma obra de António Quadros em que se debate precisamente a possibilidade de Portugal ser fruto dessa díade.
No entanto, o poema dedicado a Sampaio Bruno induz no engano de supormos que Fausto Guedes Teixeira se encontra em crise de crença, tal o seu título, “Entregue ao meu tormento”, e arranque :
Duvido, sim, duvido! Confessal-o
Deixa-me em sangue os labios e a tremer…
Mas se eu sinto essa dôr, meu Deus, deixal-o,
Embora ella me esmague, hei de a dizer.
Realmente, não se trata de dúvida religiosa, este poema dedicado a Bruno conta – é um texto narrativo – as desventuras amorosas do poeta, que o tornaram incapaz de acreditar nas mulheres.
Vamos distinguir autógrafo de dedicatória para deixar claras as referências impressas a poetas e outras pessoas, nas três obras consultadas de Guedes Teixeira. Excluindo Verlaine, Zola e outros estrangeiros, com apenas uma pergunta: porquê Verlaine e não Rimbaud nem Baudelaire?, ficamos com bastantes pessoas: familiares, como a tia Maria Candida Guedes d’Almeida, a quem dedica o texto “Esperança nossa”, desconhecidos meus, e escritores e artistas bem conhecidos: Afonso Lopes Vieira, Alberto d’Oliveira, Teixeira de Pascoaes, Eugénio de Castro, Fialho de Almeida, Carlos Malheiro Dias, Júlio Dantas, Augusto Gil, Teixeira Lopes e Cândido de Figueiredo. Nota-se a falta, até 1908, visto que não consultei obras posteriores, de Camilo Pessanha. A Clepsydra é uma obra de publicação tardia, Camilo Pessanha sabia os seus poemas de cor e declamava-os. A passagem à tipografia verificou-se apenas em 1920, graças aos esforços de Ana de Castro Osório e filho desta, João de Castro Osório.
Quanto a Cesário Verde, merece que me ocupe dele a partir de agora.
O longo poema intitulado “Cesário Verde” foi publicado no livro Mocidade Perdida, em 1896. Porém, quando Guedes Teixeira reúne textos anteriores na coletânea O Meu Livro, de 1908, não o inclui nela. O poema é dedicado a Silva Pinto, responsável pela edição do Livro de Cesário Verde, em 1887. Tal como esse outro longo poema, “Carta a um poeta”, dá conta do terrível flagelo que foi a tuberculose, da qual o próprio Fausto Guedes Teixeira, a considerarmos autobiográfico o texto, também foi vítima: na “Carta a um poeta”, poema narrativo também, temos uma casa à beira mar em local não identificado, em que o sujeito lírico vai encontrar mais três personagens, duas delas, o Manuel e a Maria, sua irmã, muito doentes. Manuel, que lhe vigia o sono, tem na mesinha de cabeceira os remédios do destinador da carta, vamos admitir que remédios inúteis para a doença de Fausto Guedes Teixeira, uma vez que no seu tempo ainda não havia cura para a tuberculose. “E sinto-me com febre, estonteada a cabeça… /Vim a escrever, vim a soffrer muito depressa…” – conta ele. Também a recomendação de temporada à beira-mar, ou na montanha, era receita habitual nos casos de tuberculose. Quanto ao lenço manchado de sangue, tornou-se marca da doença na literatura da época, e também ele é referido na “Carta a um poeta”.
A despedida, um “Até breve” de mau agouro, em “Cesário Verde”, indicia igualmente que o poeta está doente e teme pela sua vida. Este poema é um obituário, como outros, na obra de Fausto Guedes Teixeira, caso do intitulado “Na morte de Leão XIII”. Se bem que tais poemas sejam tristes, de uma sentimentalidade algo mórbida, como em geral referem os comentadores do poeta lamecense, eu preferiria ver neles uma notação realista a dramas bem concretos do seu tempo. Aliás, atendendo ao naturalismo que desponta em Cesário Verde, e a Silva Pinto, que teorizou essa nova estética, eu diria que há muita pontuação naturalística em Fausto Guedes Teixeira, a quebrar a toada melancólica de um sofredor de penas amorosas: além da tuberculose, a questão da partilha de África, que ele traz à tona em dois poemas, um dedicado à morte de Cecil Rhodes, outro ao regresso dos Boers, são dos mais relevantes, por se tratar de assuntos que marcaram a história desta época.
Cesário Verde, tal como António Nobre, foi uma das mais importantes vítimas da tuberculose no nosso meio intelectual. Vejamos o texto que Fausto Guedes Teixeira lhe dedica.
A Silva Pinto.
Mestre. Permitte à minha mão que escreve
O nome do Poeta ao pé do teu…
Vossas Almas irmãs o luar as leva
E p’ra attingir o coração da Treva
É-nos forçoso atravessar o ceu!
CESARIO VERDE
A Alma do Cesario desprendida
Ouço-a cantar, cantar pelos cyprestes,
Co’o sinistro ranger que vem da Vida
Na dureza de Versos como estes.
E a branca luz do luar onde me banho
Escorre em doces lagrimas dos ramos…
Poetas! Vinde vêr o Poeta estranho,
Maior que todos nós, os que chegamos!
Abre o jazigo. Espera. Vou tirar-te
A Alma que ahi gela entre arvoredos…
Bem na conheço, é a mesma da tua Arte…
Escorrem-te gangrenas pelos dedos.
Amordaçada pela podridão
A tua bocca já ninguem a beija,
Nem dedos de mulher te pentearão
Os cabellos d’um loiro de cerveja.
E ris, como só ri quem passa a vida
A rir p’ra dentro e vendo em cada rosto
A bocca abrindo a mesma eterna f’rida,
E em cada olhar o mesmo ideal desgosto.
Vejo-te altivo, a mesma fronte immensa,
No labio roxo o mesmo rir humano,
Com que passaste à nossa Vida intensa
Sob o lapis genial de Columbano.
E nasce a aurora n’esse Campo Santo
Onde as cruzes parecem bisturis
Ainda enterrados, p’ra causar espanto,
Em cada cova – funda cicatriz!
Alguém que passa, o negro olhar rasteiro,
– Está uma tarde pallida d’estio –
Ouço-o dizer ao ouvido do coveiro
– Vê lá se dorme bem, se elle tem frio!
Campas, jazigos, uma cova aberta,
Troçam da minha funebre emoção
E ao longe é a Arvore – atalaya alerta! –
É alli que moras, Astro, meu Irmão!
E eu que não sei ajoelhar e sinto
Bem pequeno o cypreste p’ra me olhar,
Bebedo fico, como do absintho,
Na vontade que tenho de chorar!
E eu que nunca te vi, Alma suprema,
Mais que os outros conheço-te e melhor,
Pela dôr que arripia o teu poema
Nos teus Versos cobertos de suor!
Alma de Neve, eu tenho-te já lida;
Lá aprendi a sopear meus ais,
Primeiro na batalha d’esta vida
Em que nós somos todos generaes.
Cesario, dorme, dorme! A luz do luar
Espalha-se serena entre os jazigos
Com a tristeza de quem soube amar,
Com a saudade de quem deixa amigos!
E o Hamilton, Cesario? teml-o visto?
Dá-lhe um abraço, adeus!… cae tanta neve!…
Á luz da lampada estremece um Christo…
Agasalha-te e espera-me… Até breve!
Correm no ceu as tranças d’Alvorada;
E chora a Luz versiculos sombrios
D’uma Biblia de sangue condemnada
Que alguem encadernasse em calafrios!
LEITURAS
Guedes Teixeira, Mocidade perdida, Manuel d’Almeida Cabral, Editor, Coimbra, 1895-1896.
Guedes Teixeira, Alma triste, Imprensa de Libanio da Silva, Lisboa, 1903
Guedes Teixeira, O meu livro, Antiga Casa Bertrand – José Bastos & C.ª, Lisboa, 1908
Guedes Teixeira, [O meu livro I e II], Edição definitiva, revista e aumentada. Coordenação de textos Manuela Vaquero.Produção Árvore – Cooperativa de Actividades Artísticas, Porto.. Edição da Câmara Municipal de Lamego, 2021.