Falo de José Emílio-Nelson

 

 

 

 

 

MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov.


Poesia de pendor metapoético, assinala João Albuquerque no escrito de contracapa de Então assim falo, o mais recente livro de poemas de José Emílio-Nelson. Com efeito, o seu aparato técnico mima o de uma edição crítica, salvo as notas de pé de página, inexistentes. De diversas maneiras o livro se apresenta como edição crítica, sendo mais evidentes a recensão de primeiras, segundas e outras versões de dado poema, as expressões dubitativas, as isoladas por sinais de pontuação não usuais em poesia, o projeto geral de completar o flash back da vida com o que seria uma conclusão pacífica: “Então assim falo”, e mais evidente, o poetar na primeira pessoa, já manifesto no “falo” – então é assim que falo…

Temos por consequência um livro complexo, poliglota, muito rico do ponto de vista semântico, pouco vulgar nas técnicas a que recorre e pródigo nas referências a outros livros e outras obras de arte. Muita referência num cadinho que pode querer-se alquímico, como é pretensão de qualquer poeta. Assinalemos alguns indicadores dessa prática de tradição milenar, a começar por Hermes, o Trismegista, e a continuar pela «Oficina da Fénix», a ave mítica consagradora da obra alquímica, ao transmutar-se a partir das próprias cinzas.

Muitas matérias-primas se usam no processo transmutatório, alheias tornadas íntimas, caso das artes mais amadas, entre elas a pintura. Diversos pintores com diversas obras são trazidos à boca de cena: Goya, com «Saturno», o devorador dos filhos  e a série de gravuras de «Os caprichos», Edvard Munch, provavelmente com o «Grito», e não identificados artistas que ilustraram obras de naturalistas no século XIX e contíguos, a exemplo da Histoire Naturelle de Buffon, à qual o poeta vai contemplar os cisnes. Bem tocante a referência, na minha perspetiva de investigadora da História Natural, esta visita de José Emílio-Nelson a obras de beleza oculta, por vezes ignorada dos próprios interessados, como acontece com os livros e revistas antigos de ciências, ricos de lindíssimas gravuras de artistas desconhecidos em épocas anteriores à proliferação da fotografia e mais recentes meios audiovisuais. A consulta de Buffon não é casual, outras referências demonstram a boa aliança estabelecida pelo poeta com a História Natural, aliás transferida para a religião e mito, a exemplo da Fénix, e também do escaravelho conhecido por empurrar bolas de estrume muito maiores do que ele. O coleóptero procede também ele, ínfima criatura, a máximas transmutações, e dá mote a vários poemas, donde se conclui que em muito impressiona a imaginação do poeta:

 

Discreto, José Emílio-Nelson recusa dar lugar na sua poesia ao mais comum e por isso mais bem aceite do seu tempo, reservando-se um lugar de singularidade, que pode ser inóspita como escrever na carapaça do escaravelho no deserto (Scarabaeus sacer), porém vai-se inscrevendo num registo de escrita muito moderno, apesar de vir desde o hieroglifo egípcio, esse precisamente que coloca o escaravelho sobre o coração da múmia, abrindo com ele o caminho da vida eterna. Símbolo terreno do ciclo solar, idêntico à Fénix, o inseto faz parte de uma paleta lexical do livro ligada à terra, ao solo, ao que por isso dá início à vida, como princípio matricial, e a recolhe no seu seio, tal o cofre tumular.

 

JOSÉ EMÍLIO-NELSON
Então assim falo
Escrito de João Albuquerque
Desenhos de Sebastião Resende
Portugal, Edições Esgotadas, 2023