Falar com os outros

 

 

 

 

 

 

 


JOAQUIM SIMÕES


PREFÁCIO ao livro «Falar com os outros», de Nicolau Saião. ARC Edições, Brasil, 2019


O que significa “renovação”? Sabemos que todos os organismos vivos se renovam, desde o primeiro até ao último instante. Sabemos que, para muitos deles, a renovação inclui mesmo a metamorfose. Trata-se, em ambos os casos, da concretização e da permanência necessárias ao percurso intrínseco dirigido a uma forma pré-estabelecida. Uma pergunta se gera, porém, a partir deste momento: como se chegou ao estabelecimento dessa forma estratificada? É mediante ela que nos surge um segundo significado, mais fundo, do conceito de “renovação”.

Renovar implica um “isto”, quer dizer: um “aqui” e um “agora”; logo: o que designamos por não-eus, os quais, imersos no mesmo processo, constituem os elementos e os meios que, consoante as circunstâncias, designamos por adversos ou por propiciatórios para cada um deles. Se entendermos por “renovação” o conceito explicitado anteriormente, encontramo-nos ainda no âmbito deste nível, restando-nos entender a realidade como competição e luta entre uma espécie de robots com capacidades diferentes, em que a vitória pertencerá aos mais bem equipados, aos que se degradem menos facilmente e aos que dispuserem de maior capacidade para albergar a quantidade e variedade de dispositivos necessários ao sucesso. A realidade é, todavia, demasiado lata para um conceito tão limitado e limitativo ao seu acesso a ela; porque a realidade, embora comporte a luta circunstancial derivada do cumprimento de cada ser com e apesar dos restantes seres, é muito mais do que a busca de uma “vitória final” coincidente com a consabida estreiteza de algumas perspectivas e mentalidades.

Chamamos “sentidos” às capacidades com que nos encontramos dotados para percepcionarmos o real, quer directamente, através do nosso corpo, quer indirectamente, através dos instrumentos que construímos para reforço desses mesmos sentidos, desde os telescópios aos detectores de ultra-sons. E, se detectamos, em muitos dos seres que nos rodeiam, alguns dos nossos sentidos com um grau de apuramento inferior ou, pelo contrário, de grau equivalente ao dos recursos técnicos que tivemos que criar, conhecemos também inúmeros outros em que algum ou alguns deles nem sequer existem. A pergunta “o que gerou um sentido naqueles que o possuem?” é, afinal, a que complementa a anterior, ao inquirir sobre o que constitui um nível mais radical do conceito de renovação.

Procure-se explicar a alguém que tenha nascido cego o que é “ver” e verificar-se-á, de imediato, que é uma tarefa impossível, da mesma forma que seria impossível dizer o que é um odor a quem tivesse nascido sem o sentido do olfacto ou o sabor do leite e do mel a quem não possuísse o do paladar; e, caso não vivessem num ambiente cultural dos que vêem, como poderiam saber ou imaginar o que isso é, mover-se em direcção a tal? Impossível aspirar a conhecer um universo diferente daquele que os sentidos nos proporcionam, não porque não consigamos imaginá-lo mas porque nem sequer conseguimos determinar algo dirigido ao indeterminado. Ou se possui o sentido e a sensação ou não se possui – como aspirar ao de que, por condição, nos é vedado sequer suspeitar? Eis a pergunta que se torna no epicentro do terramoto que atinge o nosso saber assim que a formulamos.

É nesta consciência mais ou menos difusa e intuitiva da existência de um mistério que nos é, no aqui e no agora das diferentes vicissitudes do que designamos por existir, inacessível, aquilo em que se firma o movimento interior da religiosidade – depois estratificado em religiões e cultos para as “massas” resultantes da necessidade de tornar suportável e de encontrar caminhos à nossa medida para minorar e esclarecer esse mistério, com consequências, em geral, desastrosas e, até, criminosas. Mas é também nessa consciência difusa e intuitiva que se gera outro movimento interior como resposta mais funda, porque se afigura como algo que se encontra na génese de uma outra forma de abertura, feita entre a dor e o prazer, para a captação do (ou integração no?) real e que abarca a anterior: refiro-me à estética entendida não no plano da mera decoração mas no da metafísica.

O conceito de surrealismo surge na mente de Breton, ao aperceber-se desse jorro primordial de onde ocorre a humana condição e o humano destino – que Freud havia começado a sondar anos antes – em simultâneo com a constatação de que o modo de racionalidade vigente é demasiado estreito para o compreender visceralmente. E, na linha de Plotino que, ao invés de Platão, entendia o Belo como ontologicamente primeiro em relação ao Bem, reavalia nessa perspectiva todo o percurso ontológico da humanidade da civilização ocidental (e, em seguida, as restantes) através do plano estético, detectando em todas as épocas e estilos, tanto na literatura como nas restantes estéticas, aqueles que se moveram para uma abertura de um novo sentido (chamemos-lhe intelectual, à falta de saber o que ele é antes de ele surgir num “nós” que será, inevitavelmente, um outro “nós”, uma nova – também por assim dizer – espécie). Essa reavaliação constitui-se como o primeiro pilar concretizador desse novo “sentido”.

Breton pressente-o no lento emergir próprio de um novo ser em formação, mas comete um erro ao entendê-lo como algo colectivo e prestes a acontecer – daí a sua ligação inicial aos “amanhãs que cantam”. Ao contrário de muitos dos seus companheiros, deu-se conta (com bastante maior profundidade do que, posteriormente, Sartre) de que o materialismo dialéctico nada mais é do que a visão estreita e fixista do humano – do demasiado humano, como diria Nietzsche – que tolheria esse movimento interior em emergência. E apercebeu-se ainda de que, como acontece hoje, o surrealismo viria a ser, na perspectiva limitada que tal fixismo lhe procuraria impor, um mero sinónimo de bizarria e absurdo e não de um quotidiano em transmutação, onde se forma um alguém novo – recorrendo uma vez mais a Nietzsche: um Super-Homem.

Encontramos assim já, em André Breton, a visão da luta permanente que acarretará a formação desse sentido, equivalente ao eclodir de um novo ser: a luta por um presente, pessoal e social, em permanente revisitação transfiguradora, à medida do movimento do ser que a efectua. E se a educação desse ser houver sido como um relâmpago de ternura que o atingiu no âmago da pulsão para o desconhecido, para o que os seus nervos captaram das palavras e de todo o quotidiano vivencial a que elas se referem, numa palavra se ela tiver sido feita pelo acalento maternal de um outro ser em movimento, de um poeta como João de Deus, então teremos surrealismo e surrealista.

Um deles, e não o menor, chama-se Nicolau Saião.

ARC Edições
São Paulo, 2019