ANTÍMIO DAMIÃO
Antímio Damião (Portugal). Autor / Desenhador Gráfico e Ilustrador / Formado em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa e Mestrando em Ciência Política na Universidade da Beira Interior
Na Cova da Terra, os escaravelhos saídos da mata invadem os caminhos de cabras, enquanto a luz, melíflua, definha para lá da serra azulada. As estradas jazem desertas e, a sul, para além do limite raiano, vivem homens que aí ficariam para sempre se Deus o permitisse. Tais homens, aquando crianças, viviam de bem com a vida, instigados pela descoberta do mundo e do tempo. No Verão, iam brincar para as lezírias, à beira-rio, à sombra dos castanheiros. Depois, já enxutos, como potros sem rédeas, entregues ao acaso, corriam pelos campos fora e transpunham muros de pedra cobertos de musgo e a perder de vista no horizonte verde-seco. Apesar do curso imparável do tempo, ainda há maravilhas na aldeia. Contudo, ninguém dá por nada, nem pelos bandos de andorinhas que, em voos e cantos primaveris, atenuam a mesmice dos dias. Os aldeões, cientes da finitude, nada exigem. Vieram ao mundo com a pele do corpo, nus na inocência desta travessia vital, cujo fim nada explica. Por tal motivo, na canícula e no frio, esperam a noite depois dos dias chatos. Temem e troçam da morte; tomam o futuro como um eco atrasado. Seja como for, já ninguém ri como dantes. A vida foi-se com a desertificação. O caderno de encargos da aldeia foi escrito com o sangue de muitos devotos e incréus, de nobres e pobres do mais diverso jaez. Agora, os bibelôs no interior das casas testemunham o silêncio das horas e o fim jaz sob as campas dos mortos, cujos fantasmas se pavoneiam pela última vez antes da vez última, à noitinha, atidos aos sonhos dos que dormem, escritos nas pedras tumulares, lembrando que a vida é clarão ou centelha eterna. É costume remoer-se o que não se sabe, bem como as memórias que a vida retém no âmago do seu mistério. Ao fim da tarde, há quem se sente no batorel ao pé de casa e se ponha a pensar nisto; outros assomam à janela, peneirados pelo crivo da moral mas filiados na inveja — por mais que se evite, não há como escapar à iniquidade. De caminho até à praça, escancaram-se abismos de momentos perdidos para sempre mas cristalizados na memória como a cera das velas solidificada na calçada após as procissões. No jogo da vida, as regras são ditadas à força e os dados lançados ao deus-dará. As linhas do destino cosem-se na casualidade e na teimosia dos desejos maiores. A loucura espreita e tende a irromper na anemia do tempo morto. No subsolo, correm águas até ao mar sem que vivalma se dê conta disso. A sabedoria traça um quase-absoluto no quadro obscuro da verdade. A saudade é obscena, sabe a melancolia; a ausência define o estar. As roupas vestem-se na rotina dos que se julgam sem a canga da idade, quando, em verdade, a carregam diariamente. Para fugir: o sonho. Cada um tem a vida que merece, pois a morte cumpre à risca a sua única tarefa. Mesmo assim, despontam sorrisos, conquanto raros, nos poucos que ali vivem, uma vez que a desafinação da banda filarmónica persiste ainda na cauda dos cortejos.
A luz do crepúsculo tinge de dourado as rugas vetustas das velhas que, vestidas de negro e de cabelos de linho alvo, muito conversam à porta de casa, durante as noites de estio. As suas vozes passeiam pela aldeia, acompanhadas de risos e lamentos. O calor fá-las subir as saias até ao joelho e mostrar as varizes. Abanam-se com leques e pensam na vida que já lá vai. Os netos alcançam a custo o parapeito das janelas, em bicos de pés, de modo a poderem vê-las falar. Algumas delas já não se preocupam com a casa ou os filhos, pois estes, já adultos, foram viver para as cidades. À medida que as vozes se subsumem na enorme distância entre a aldeia e as estrelas, o salgueiro-chorão da praça agita-se, vergado pelo vento. De história em história, a noite enche-se de espíritos e demónios. A carreta-fantasma percorre a aldeia de lés-a-lés e pára à porta de quem menos a espera. A Morte anda por ali, a monte, devagar.
Reza a lenda que a Lua ia já alta quando o marido pegou na mão da mulher e apontou para a janela. Do lado de lá, a aldeia dormia sob nuvens amotinadas, recortada aquém do céu, entre as colinas, as suas poucas casas espalhadas num imenso manto de neve. O casal, desnudo, saiu do quadro na parede e, atravessando a janela, sobrevoou as antenas das casas, as estalactites de gelo nos beirais dos telhados, as calçadas das ruas, a fonte na praça, os muros das granjas, os juncos crespos à beira-rio, o campanário da igreja, o palacete no alto da colina, as árvores esqueléticas do bosque. Findo o voo, voltaram à casa donde partiram e entraram pela janela do quarto onde outro casal dormia. Entreolharam-se. A nudez não os envergonhava, pois nada havia a censurar. Eram, na sua essência, matéria volátil à espera da morte. Nos olhos de ambos: a paixão de sempre. Viviam um sonho, quiçá ali ou noutro mundo. Ele fitou-a com ternura, ela insinuou um sorriso. Os seios da mulher sobressaíram através da camisa de dormir, à luz do luar entrado pela janela. Depois, soltou os cabelos e olhou para o homem, para o fundo dele mesmo, estendendo-lhe o braço. De mãos dadas, avançaram para junto do casal adormecido. O apetite pantagruélico do relógio de parede consumia as horas da noite. Diante da cama, em cima da cómoda, estavam vários brinquedos de madeira. Um pequeno monociclo de brinquedo caiu de súbito, perturbando o sono do homem que dormia. Este revirou-se e, por momentos, acordou a mulher a seu lado. Não obstante o sobressalto, ambos voltaram a adormecer. Aos pés do leito, o casal do quadro olhou para o casal dormente. Pressionados pelo despontar da aurora, os amantes voadores ocuparam os respectivos lugares junto da cama e, como ectoplasmas da alma, fundiram-se nos sósias que dormiam. Lá fora, a neve caía e a quietude reinava. As sombras dos flocos de neve sarapintaram as paredes do quarto pela última vez, em suaves oscilações, acentuando a melancolia do instante. Os candeeiros da rua apagaram-se e o quarto pintou-se de luz natural. O Sol, triunfante, expulsou os últimos despojos da noite e, ao cantar do galo, a vigília adveio e o casal despertou. O amanhecer sobreveio. Era o começo de um novo dia.
As lebres nas lavradas imobilizam-se, atentas ao rugido da motorizada que rompe pela estrada rural. A canícula sente-se na terra seca, em fim de tarde de Verão. O espírito do antigo professor voga para longe quando o seu corpo passa por ali, para um lugar da memória que lhe cria a perfeição dos instantes. As moscas zunem agressivamente à sua volta, em órbitas a pique e de persistência errante, com o fito atroz de o enlouquecerem. Após anos dedicados à cidadania e à erudição, concluiu que o mundo dos homens é uma farsa democrática povoada de pequenas e grandes tiranias, uma fatalidade obrigatória que tudo subtrai tirante a sabedoria. Nunca é tarde para aprender, pensa ele, escarrando o catarro de fumador. As suas pernas já não são o que eram, fraquejam mais do que antes, tremem com a trepidação das pisadelas no saibro grosso do caminho. Sente-se perdido num lugar longínquo mas ao mesmo tempo familiar. Nada foi senão um hipócrita, convicto de coisa nenhuma, embora aparentasse o oposto. Foi vítima de si próprio, da sua falsa firmeza, do seu irrepreensível estatuto de pedagogo. Antigamente, as pessoas vinham ter com ele a pedir explicações, qual monte de bocas sujas e espevitadas, defronte de si, víboras cuspideiras que, sempre que podiam, expeliam discretamente o veneno verbal; lábios jovens e velhos, encavalitados no seu campo de visão, só bocas e lábios sem olhos e narizes, só dentes cariados e ratados nas extremidades, falando e interrogando-o até ao limite da paciência como suínos desordeiros com fome de saber. Assim são os aldeões: porcos no estrume da mentira e da inveja. Apesar das lições professadas, preferem a estupidez à ciência, vivem felizes na ignorância e entendem o mundo com uma burrice igual à dos asnos. O antigo professor foi relegado para segundo plano por culpa do novo docente da aldeia, que, a seu ver, reúne agora as atenções de todos. O sábio de outrora tornou-se um arcaísmo dispensável e desprezado, carne em decomposição e a um passo do sepulcro. Tem pois de regressar a casa. A caminhada tornou-se nociva. O corpo parece desgastar-se como uma clepsidra de sangue, cujo vazão se faz gota-a-gota, em sina irrecuperável para nenhures. De caminho, entoa uma ode ao que foi e se vai, ao horror da velhice que se revela na pedra secular dos casebres solitários que pontuam os campos trigueiros. À passagem pelo seminário, há um silêncio no terreiro vazio e na cantina onde os seminaristas comiam com pratos e talheres de metal oxidados. Aquando garoto, almoçava aí, na companhia de padres e seminaristas, dali banidos por falta de meios financeiros e vocação. Tinha como hábito brincar com uma menina nas traseiras do seminário, pronto a cravar as mãos na carne da sua paixão e de lhe afagar o sexo virgem e tenro, de convidá-la a pecar naquele lugar sacro de deleite panteísta e crucifixos de pedra. Um dia, encontrou um padre numa das casas de banho do seminário, a urinar com um prazer desmedido, enquanto ele, no urinol do canto, assistia, estupefacto, ao ritual fisiológico daquele homem alegadamente beato — mictório testemunhado pela ubiquidade do Criador. Desde então, sentiu-se talhado para troçar das estátuas dos mártires na igreja matriz. Como acólito, furtou dinheiro do peditório dominical, coisa que, no seu entender, era francamente admissível; um mero pecado residual que, no fim de contas, o levaria a pecados maiores. Ainda assim, nunca matou ninguém, embora o tivesse desejado na juventude por causa da mulher de outro. Ela, por seu lado, pouco lhe importava com quem dos dois ficasse, já que o sustento seria garantido por qualquer um dos homens. “Puta!”, vociferou o professor ao descobrir as intenções da amada. Quis desfigurá-la, cortar-lhe os lábios à facada, mas emendou-se ao contemplar sobejas vezes o fundo de uma garrafa vazia. Com o tempo, a amada tornou-se rameira e ele professor. Por coincidência, alguém escreveu “PUTA” em maiúsculas no portão duma tapada. De facto, depressa o belo se torna feio — ou mesmo o contrário — com a escolha mordaz da obscenidade certa. De qualquer modo, foi com desapego e forte resolução que o antigo professor escolheu a senda do ascetismo como um penitente arrependido, enredado na rotina do pão duro e da maçã ao pequeno-almoço, da sopa e do café aguados ao jantar, das caminhadas solitárias para espairecer e se esquecer de tudo. A motorizada que por ali passou — qual condenado solto do inferno a espalhar a rebeldia flamejante sob um sol tórrido de Verão, para, daí a pouco, disseminar a maldita semente a diesel pelos caminhos tortuosos do Senhor e voltar ao tártaro para lá do ocaso a sul — traz de longe em longe demónios rodados que se difundem pelo povoado. As lebres fogem afugentadas para o escuro poento das tocas que as salvaguardam do prolífero mal humano que nem a treva pode reter, enquanto ele, o antigo docente, progride em caminhos aonde volta amiúde e que desgasta com o hábito da lembrança. Tem mais que fazer do que perder tempo com as banalidades dos paisanos, com os chuviscos matinais, com a remela acumulada nos seus olhos, com a letargia dos que passam por ele sem o cumprimentarem, com os cães vadios que se agrupam ao pé do mercado municipal, enquanto os compradores, nos seus afazeres consumistas, vão desdenhando da aparente argúcia dos feirantes afeitos à má-fé para beneficio próprio. Por mais que o evite, ele tem de se ater a si mesmo como o animal que escolhe sozinho o melhor lugar para morrer. No fim da caminhada, regressa a casa e fecha a porta. Será que tudo se mantém lá fora ou à crueza inconstante da vida corresponde apenas a realidade etérea dos seus pensamentos?
Excerto do diário do novo professor: “Eis-me: destroço entre destroços. Não sei se me contente, pois embora viva, dou por mim a soluçar sem desvelo neste exílio forçado. O consulado da minha memória repousa num pretérito ao qual já não pertenço, e, por ora, relego-me à solidão. Ouço ecos da loucura que decerto me vitimará no futuro e escrevo na esperança de aniquilar a sua ameaça falsamente fraterna. O tédio paira sobre a aldeia, cuja aura fúnebre parece reclamar dádivas de carne. Vejo fogos alados na noite, caudas de luz para lá da serra. Fraquejo ao tentar perceber o que quer que seja. O simulacro é a realidade. Tudo aparenta ser que é. Oxalá haja um mínimo de sustento espiritual para que eu possa sobreviver aqui. Após testemunhar a farsa da civilização e de ter percebido o quão enganado fui, não temo o que virá. Duvido que o exílio seja a porta da muralha que oculta a luz da salvação, a qual, uma vez vista, brilhará com o dobro da intensidade. Construirei um mundo gentil, respeitoso, fundado na simpatia e na poesia, um sonho belo de e para mim. Se eu pudesse descrever o que imagino não precisaria deste corpo só e abandonado. Talvez sonhe apenas e, daqui a dias, semanas ou meses, o sonho terminará comigo no cimo do monte, mastigado pela boca imunda e babada do gigante zarolho que muitos dizem viver por lá. De qualquer das formas, elejo o recato em vez da sociedade doente dos homens e entrego-me ao apogeu da imaginação, cujo valor se acha para além do Bem e do Mal. Por outro lado, tudo o que construí foi um erro. Não sei o porquê do que faço e do que farei. Mais, o cepticismo e o sarcasmo mantêm-me vivo como um naco de carne râncida numa salmoura. A minha costela humana torce-se, a amargura aperta-me o peito, faz-me odiar quando as coisas não se me afazem. Ó, como é fluida a influência da morte, cujas mãos ásperas e gretadas sinto sobre o meu peito e a sufocarem-me o pescoço! Nunca pensei vir a amar a morte que, em vez de me enlear nos sargaços de um mar maligno, me arrebata no limite do amor. Preciso de odiar algo senão enlouqueço, de servir a morte como um escravo que ignora a sua servidão! É doce amar e aceitar tal fim. Sou de antes como de hoje; sou o jovem cônsul na neblina matinal que costumava espraiar-se lenta e delicadamente no terraço do consulado e que me cegava de júbilo ao penetrar em seu denso nevoeiro, que cedia à maresia persistente que se impregnava na pele áspera dos lobos-do-mar e nas tábuas da marina. Eu passava horas imerso nesses miasmas vaporosos, circunspecto, com o pressuposto naïf de que o purgatório se dimanava ali como uma praga brumosa em cuja espessura se diluíam os espíritos de vivos e defuntos. Agora — ó homens desprezíveis e roídos pelos males do conforto e da submissão, da inveja e do elitismo! — diz-se por aí que o mundo sofreu um revés, que está tudo ao contrário, quando na verdade o mundo sempre foi assim. O véu da humanidade tem sido destapado ao longo da evolução civilizacional e do devir histórico, revelando um retrato abjecto de que Bosch desdenharia e se recusaria a pintar. Maldoror fez um pacto com a prostituição para semear a desordem nas famílias. Mal sabia ele que não precisava ter feito nada para que tal acontecesse, pois a impostura é, por excelência, a regra vital. Com efeito, fervilham sanguessugas e ditadores no seio familiar, lapas e tiranos que sorvem até ao osso as mamas mirradas das mães. “Dantes, o macho sacrificava-se pela prole; agora, pelo contrário, tudo está do avesso”, rezingam os velhos na praça central, atidos a saberes populares e sentados na parte limpa dos bancos de madeira defecados pelos pombos. No centro do largo, um cão geme como um condenado no cadafalso, seguido da matilha que o rodeia qual folia tragicómica de um auto de fé canino. Um dos aldeões sai ébrio da taberna e ali mesmo micta, no tronco vergado do salgueiro-chorão. Olha para o cão e atinge-o com um jacto de urina. Insatisfeito com esta crueldade, apedreja-o sucessivas vezes e, por último, enxota-o com orgulho, de mãos nos bolsos e pénis ao léu. Isto deu-se antes do Natal, quando os mancebos plantavam na praça o madeiro sazonal, cujas labaredas, depois de inflamadas, evocam, juntamente com o esvoaçar das faúlhas no céu negro da noite, a obliteração do mundo através do fogo. A fogueira, aquando ateada, espevita a carnalidade de certas cachopas que, por vezes, rodopiam em torno da fogueira e sobem as saias como bruxas num ritual satânico, incitadas em contrapartida pelo olhar fervoroso dos homens que, em face do viso concupiscente, as aplaudem com encarecido deleite. Saltam olhares entre os aldeões, provocados pela falsa ralação de muitos para com outros tantos. Fulano e sicrano são queimados com maledicência como porcos no espeto, rodando à medida que a sua reputação vai assando até ser perfeitamente deglutida e, mais tarde, defecada pelas más-línguas que se entretêm às suas custas. Tais vítimas, como cervos tranquilos num bosque repleto de caçadores, acabam por não entender a ostracização pública de que são alvo mas intuem as probabilidades da sua origem e da sua finalidade. A hipocrisia é disparada com um sorriso impostor. A estultícia doutrinal é fermentada pela televisão. E eu, à janela do meu quarto, olho os montes ao longe e desejo que o gigante adormecido se erga, desça até ao sopé e abocanhe para sempre a aldeia, para dentro do seu estômago cavernoso.”
A chuva ablui e verte-se sobre a aldeia qual cortina de água estendendo-se pelos campos, assistida por trovões e relâmpagos que se recortam à contraluz do céu plúmbeo. Quando chove, a miséria é esquecida, e mesmo os desfavorecidos não resistem ao encanto diluviano, pois desejam ao mundo purga afim. O lento desfilar das horas, quando aliadas à contemplação da chuva, gera um conformismo manso em que tudo se esquece, em que a ansiedade abranda e a existência defere a mais sincera cortesia ao poder divino da natureza. As mãos das crianças estendem-se em concha por sob o telheiro da escola primária numa tentativa vã de reterem parte das águas caídas em catadupa. Da terra desprende-se um cheiro vivo e agradável que induz o apaziguamento da alma e a paz das batalhas na arena da vida. Os objectos são esquecidos lá fora, à mercê da inclemência da chuva e da putrescência do tempo. “À cova!”, parece a bátega entoar a Hélio Tavares, o ex-combatente, pedindo-lhe que cave um fosso e se cubra de lodo, de modo a render-se à sua última morada. Não terá mais nada a fazer senão esquecer e perder, esquecer e perder tudo para o final da sua já pouca distância a percorrer. E com isso virá o alívio, cuja demora se propagará na eternidade, seja esta o que for. Com o saraiva repentino surge-lhe a lembrança dos corpos feridos na lama, das vibrações provindas da terra como gorgolejares de um Leviatão com mau acordar, do estardalhaço dos tanques, do estrondo das bombas, dos homens em alvoroço cuja fúria resultava para lá da dor, dos marulhos de passos e marchas, da cacofonia dos tiros, dos compassos da destruição. Os pássaros, assustados, esvoaçavam dos abetos esquálidos e, como pontos negros, descreviam rotas na fuligem do firmamento. O incentivo márcio aumentava, tal como as ofensivas e as defesas estratégicas, a fome de combater, o desespero das tropas, o último grito da palavra de ordem antes da investida, o choque com o inimigo, o cheiro da pólvora, os estilhaços dos projécteis, o ódio e a razia da contenda, o sangue e as lágrimas, o triunfo efémero. A morte, saída da guarita fronteiriça entre vivos e mortos, recolectava a sua quota-parte de vida. Os generais, a braços com os danos colaterais, verificavam com consternação o elevado número de baixas. O ódio contagiava os mancebos, ainda jovens e carecidos de glória e causas, que, por alistar, pretendiam defender a pátria das forças inimigas, desafiando a morte e os danos da guerra. Diziam que à vitória cabia o júbilo, e à derrota, a vitória moral. Com efeito, as baixas sucederam-se e, a dada altura, pediu-se a intervenção dos estados aliados, pois a brecha no bloqueio fronteiriço agravara-se. Os soldados na voragem bárbara do massacre compreenderam, só então, a importância da vida quando aliada à razia da morte. Se a vida fosse realmente um milagre, não andariam miúdos no campo à procura de grilos para engaiolar; se a justiça servisse de facto a verdade, nunca o pão faltaria à mesa dos homens; se a vida prometesse a felicidade, as filhas não visitariam as mães nas noites frias, sem homens a escoltá-las, à procura de regaço aonde depositar a angústia da guerra, cujo fim, apesar de residir no passado, se perpetua nas alvissaras da boa vida que tarda em chegar. E um homem como Hélio Tavares, perneta à custa dessas batalhas, que se recorda de tudo e mantém a obrigação de continuar a fazer pela vida, sente a coragem e a vontade a irem-se-lhe. Está gasto, mortificado pelo tormento dos desmembramentos e da irracionalidade atroz. Por mais longe que esteja da guerra, esta consome-o ainda. À custa disso, acorda de noite, oprimido pelo demónio do ódio, essa criatura de sorriso pérfido e olhar assoberbado de camaleão, aventesma de má-memória com pernas de sapo, cauda de escorpião e chifres de bode, que se lhe anicha de quando em vez sobre o peito e o sufoca. Tal demónio surde-lhe também em pesadelos, cavalgando a baioneta que, em dia fatídico, no palco sangrento do combate, se espetou na já baleada perna de Tavares. A gangrena, intransigente, não o perdoou e alastrou-se do joelho ao gémeo. Tudo indicava que ali ficaria, em delírio de lenta morte, caído, de coração dilacerado e abandonado pela vontade ambivalente de Deus, num outeiro lamacento aonde o sangue se vertia na terra pulverizada. A salvação adveio por intermédio dos enfermeiros que dali o tiraram e o carregaram em maca, quase moribundo, camuflados por espessa e miraculosa neblina que se abateu de repente naquela terra de ninguém. Tavares, de braço ao alto, procurou tocar em vão a beleza distante e há muito esquecida do páramo azul. Chove. Tavares olha o espelho como por uma janela: a inutilidade de tudo. Nos seus olhos vê a forma arisca da morte. “Chegou a hora”, repete ele ao reflexo qual lengalenga infantil. A apatia nasce na contemplação do mundo que acontece ante o beneplácito indiferente dos homens; e ele, veterano assombrado pela desumanização, é obrigado a ficar na vida, contanto que lhe sobre a vontade para continuar a arcar com os males da mesma. Por ora, a chuva, conciliadora e fraterna, alenta-o no preciso instante em que a memória se esvai e corre, sublime como as águas, pelas valetas sáxeas da calçada.
A luz da tarde entra pela janela e, na imobilidade das coisas e na presença insinuante da morte que precede o impulso suicida, aquece ao de leve as pernas enrugadas de Elvira, a septuagenária. É malvada; é desleal; é má — assim a julgam. A idade não lhe angariou respeito. Com efeito, Elvira não é a má da fita que caiu no goto dos que a desprezam mas o bode expiatório do ódio comum da aldeia e alvo de calúnias quando a falência instalada nas vidas dos outros se acentua um pouco mais com a chegada do Inverno. Enquanto a aranha que, há semanas, no canto escuro do tecto, vive alheia às crises de consciência da velha senhora e vai tecendo a sua delicada teia, Elvira, por seu lado, arranha com as unhas roídas da mão esquerda o espaldar de madeira fendida da cadeira onde está sentada, à mesa da cozinha, de caneca ligeiramente tombada na outra mão e olhar fixo no relógio de parede. A sua mente vadia no vazio. A prosa do tempo discorre ao sabor do enfado. E se por acaso raiar nela um fulgor de alívio ou agrado, a consciência tratará de a censurar, não vá ela esquecer-se do que fez há anos atrás. Ninguém se condói dela ou a lastima, ninguém se preocupa com ela ou a tem em conta. Elvira aparenta ser o trapo roto que, preso à entrada do alpendre de sua casa, é sacudido, dia e noite, teimosamente, pelo vento. Segundo a prática da cristandade, até uma delatora como ela merece expiação ou o indulto moral. Não obstante, Elvira não é nada senão uma sombra que vagueia pela treva das ruas, amparada pelo desgosto e pela redenção tardia da alma. Fala e ora para si mesma, convicta de assim espantar a perdição a que foi votada, perdida no arrependimento e na procura assídua de uma simples verdade que lhe revogue o passado de má memória. Traz um carrapito à cabeça que, aquando desfeito, desnovela finas e ténues cãs que a aranha do tecto tomaria pelos fios sedosos da sua intricada e geométrica teia. Apesar da boa maquia da reforma, Elvira intervala os banhos por longos períodos. Diz que poupa na conta da água, mas, verdade seja dita, tem em si algo sujo que não consegue tirar por mais que se esfregue; algo nauseante, pegajoso, relativo às vidas que ajudou a destruir, uma mácula indigna do perdão de Cristo. E tudo por culpa da inveja e da frustração. Elvira gostaria de ter sido bonita e capaz de reunir os olhares masculinos como as amigas; gostaria de se ter pavoneado vaidosamente na cidade onde viveu. Não o podendo, serviu as forças de vigilância do Estado, recorrendo à traição, à impostura e à denúncia, ao fado de ser outra como sempre quis ser, sem no entanto se tornar o paradigma de beleza que tanto idealizou para si mesma. Quis o impossível e, por não o conseguir, procurou desfear o belo, corromper a beleza das outras mulheres e cativar a atenção dos homens através da tortura agoniante do ácido e dos cortes cirúrgicos com a lâmina de barbear. Às vezes, assistia a torturas, outras, cometia-as ela própria, de bom grado, depois de uma boa noite de sono de que a vítima, pelo contrário, não fruía. Elvira fazia golpes precisos na pele de galinha das vítimas estarrecidas ou nos lóbulos delicados das orelhas; adorava o cheiro cáustico das linhas de ácido sulfúrico derramadas em coxas macias, de cabelos desbastados à bruta e à tesourada. O facto de ser malparecida e discreta não lhe angariou suspeitas de crueldade, até ao dia em que o partido do poder foi deposto. Daí em diante, andou de terra em terra, perseguida por milícias rivais, procurando lugar aonde esconder e enterrar o arrependimento e a vergonha. Mas, por mais que fugisse, nunca veio a encontrar um tal refúgio.
A pequena casa no caminho de terra tem porta, janela, a solidão invicta da pedra e da cal dilapidadas pelo tempo. Coroam-na o granito, a pedra dura e seca ao sol do meio-dia, o sudário de orvalhada sobre os campos nas manhãs de Inverno. E a alma querendo morar ali, para todo o sempre, entregue ao vento plácido das noites caldas.
As tempestades desabam às vezes sobre a aldeia, durante as quais tudo é tremor, som e cadência, um espectáculo natural de imponência, grandeza e enlevo. Porém, no fim, tudo é Weltschmerz.