Evangelho Segundo o Papa Francisco

BENTO DOMINGUES, O.P.


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Um dos fenómenos mais característicos do catolicismo do século XX foram os movimentos da Acção Católica. Paulo Fontes estudou o seu papel na criação de verdadeiras elites, em Portugal[i]. Para a hierarquia eram o seu braço estendido. Chegavam onde ela não conseguia entrar. Os jovens eram desejados, encorajados, mas a sua criatividade estava limitada pelo mandato que os dirigentes recebiam dos bispos. Eram um laicado super controlado. Daí, os mil conflitos que os assistentes eclesiásticos, correias de transmissão, tinham de saber gerir até onde fosse possível. Que Deus sabe escrever direito por linhas tortas é um aforismo português. Teve muito que fazer. Se a hierarquia perdeu os jovens, e muitos se afastaram da prática religiosa oficial, o Papa Francisco não se resignou a essa debandada, aos vencidos do catolicismo.

Na abertura da reunião pré-sinodal dos jovens[ii] (19.03.18), o Papa não repetiu as asneiras controladoras do passado. Nem cedeu à ideologia aduladora da juventude, de palmadinhas nas costas. Para ele, a juventude não existe. É uma abstracção. Existem os jovens, histórias, rostos, olhares, ilusões. Dizer que importa escutá-los e dialogar, já se sabe. O Papa não tem jeito para conversa fiada. Resolveu, com o seu comportamento e o seu discurso alterar, radicalmente, o relacionamento da Igreja com os jovens. Dados os limites desta crónica, terei de me contentar com algumas passagens e um convite à leitura integral do seu atrevimento.

2

Bergoglio conhece o terreno que pisa: «Há quem pense que seria mais fácil manter-vos à distância para não se sentirem provocados por vocês. (…)

Os jovens devem ser levados a sério! Parece-me que estamos rodeados por uma cultura que, se por um lado, idolatra a juventude, por outro, impede que os jovens sejam protagonistas. É a filosofia da maquilhagem. As pessoas procuram pintar-se para parecerem mais jovens, mas não deixam crescer os jovens. Isto é muito comum. Porquê? Porque não querem ser interpelados.

Vocês são marginalizados da vida pública normal e obrigados a mendigar ocupações que não lhes garantem um futuro. Não sei se isto acontece em todos os vossos países, mas em muitos… Se não erro, a taxa de desemprego juvenil aqui na Itália, dos 25 anos para cima, é de cerca de 35%. Noutro país próximo da Itália, é de 47% e noutro ainda, mais de 50%.

O que faz um jovem que não encontra trabalho? Adoece. É a depressão. Cai no desespero, nas dependências, suicida-se. Devemos reflectir: as estatísticas do suicídio juvenil estão todas alteradas. Ou se torna rebelde, mas é uma forma de se suicidar. Ou apanha um avião e vai para outra cidade que não quero mencionar e alista-se no EI[iii] ou num desses movimentos guerreiros. Pelo menos a vida tem sentido e terá um ordenado mensal. Isto é um pecado social! A sociedade é responsável por isto. Mas eu gostaria que fossem vocês a dizer as causas, os porquês e não digam: “mas se eu nem sequer sei porquê”. Como vivem este drama? Saber o que pensam ajudar-nos-ia muito. É verdade que são construtores de uma cultura, com o vosso estilo e com a vossa originalidade. (…)  Queremos este espaço do Sínodo para conhecer e participar nessa vossa cultura».

3

O Papa Francisco lança um desafio: « Precisamos de ousar novos caminhos. Não se assustem: ousar novos caminhos, mesmo correndo riscos. Um homem, uma mulher que não arrisca, não amadurece. Uma instituição que faz escolhas, sem arriscar, permanece criança, não cresce. Arrisquem, acompanhados pela prudência, pelo conselho, mas vão em frente. Sem arriscar, sabem o que acontece a um jovem? Envelhece! Vai para a reforma aos 20 anos! Um jovem envelhece e também a Igreja envelhece. Digo isto com sofrimento. Quantas vezes eu encontro comunidades cristãs, até de jovens, mas velhas. Envelheceram porque tiveram medo. Medo de quê? De sair, de ir rumo às periferias existenciais da vida, de ir onde se joga o futuro. Uma coisa é a prudência, que é uma virtude, mas outra é o medo. Precisamos de jovens, pedras vivas de uma Igreja com o rosto jovem, mas não maquilhado, como disse: não rejuvenescido artificialmente, mas reavivado a partir de dentro. Vocês provocam-nos a sair da lógica do: sempre foi assim. Essa lógica é um veneno. É um veneno doce, porque te tranquiliza a alma e te deixa como que anestesiado e te impede de caminhar.

Sair da lógica do sempre se fez assim, para viver de maneira criativa no sulco da autêntica tradição cristã. De modo criativo. Eu, aos cristãos, recomendo que leiam o Livro dos Actos dos Apóstolos: a criatividade daqueles homens. Aqueles homens sabiam ir em frente com uma criatividade que se nós fizermos a tradução para o que significa hoje, ficávamos assustados! Vocês criam uma cultura nova, mas estejam atentos: esta cultura não pode ser “desenraizada”. Um passo em frente, mas preservar as raízes! Não voltar às raízes, porque se acaba por ficar enterrado: dá um passo em frente, mas sempre com as raízes. As raízes — isto, desculpem, é do coração — são os velhos, são os idosos bons. As raízes são os avós. As raízes são aqueles que viveram a vida e que são afastados por esta cultura do descartar, já não servem, rua! Os idosos têm este carisma de conservar as raízes. Falem com eles. Mas o que hei-de dizer? Tenta!

Recordo-me de uma vez, em Buenos Aires, a falar com os jovens, disse: “Porque não vão a uma casa de repouso tocar viola para os velhinhos que lá estão?” Mas, padre… Vão só uma hora. Ficaram mais de duas! Não queriam sair, porque os velhinhos estavam assim, um pouco adormecidos, ouviram tocar viola, acordaram todos e começaram a falar. Os jovens ouviram coisas que os comoveram.

O profeta Joel diz isto muito bem. Para mim esta é uma profecia de hoje: «Os idosos vão sonhar e os jovens profetizar». Nós precisamos de jovens profetas, mas estejam atentos: nunca serão profetas se não tiverem em conta os sonhos dos mais velhos e se não forem fazer sonhar um velhinho que está ali triste, porque ninguém o ouve. Fazei sonhar os mais velhos e estes sonhos vão-vos ajudar a ir sempre mais longe[iv]. Lê isto, far-te-á bem. Deixai-vos interpelar por eles.

A Páscoa ainda não acabou e os sonhos também não.

in Público 08.04.2018


[i] Cf. Paulo Fernando de Oliveira Fontes, Elites católicas em Portugal: O papel da Acção católica (1940-1941),Fundação Calouste Gulbenkian, 2011

[ii]  Uma Igreja que não arrisca envilhece,L’ Osservatore Romano, 22.03.2018

[iii] “Estado Islâmico”

[iv] Joel 3, 1.