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Safo sem pecado |
In: Revista Incomunidade, nº 26,
setembro de 2014:
http://www.incomunidade.com/v26/art.php?art=14 |
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Acusado de corromper a juventude, Sócrates foi
condenado a suicidar-se tomando um cálice de cicuta. Esta pena de morte em
nada se relaciona com o seu amado, o belo e jovem Alcibíades que, segundo
Platão, na Apologia de Sócrates, assistiu à morte do seu erasta. Nessa noite em
que o vemos ir morrendo aos poucos, é com ternura que o filósofo perde os
dedos nos cabelos anelados do
adolescente.
A questão homossexual era pacífica em tempos
antigos, o passado da nossa cultura ocidental, nessa matéria, é bissexual:
mulheres no gineceu e homens na ágora entendiam-se sem levantar as
questões de pecado, de crime e de demência dos tempos modernos. Sócrates,
na opinião dos atenienses, corrompia os jovens, não por os amar, sim por
os dissuadir de venerarem os deuses da cidade. Muitos adultos, e não
apenas os ricos, deviam ter os seus efebos. Os erastas despendiam muito
dinheiro com os adolescentes, parte dele em banquetes, o que denota a
aceitação social, a normalidade da pederastia. Não temos conhecimento de
nada relativo a pedofilia, pelo contrário; salvo erro no texto
Do Amor, de Platão, surge um comentário tendente a regularizar a
idade em que estes jovens podiam tornar-se erómanos, para justamente
excluir as crianças.
O erotismo é questão social, a distinguir da função
reprodutora, e neste ponto faço uma pausa para atentar no que se passa com
os animais: nem tudo o que neles é sexo reverte a favor da procriação.
Muito parece apenas fruição, e até passatempo. Graças ao contributo da
tecnologia audiovisual, já muitos viram esses documentários sobre a vida
selvagem em que o grande fator de socialização é o ato sexual, praticado
sem discriminação de sexo nem idade: os animais de certas espécies
(muitas, começam a aparecer números em torno das quinhentas, significando
isto que hão-de ser milhares quando se conhecer melhor o tema), em
particular primatas, parece resolverem com a cópula todos os problemas
pessoais, sociais e educativos. O facto devia fazer-nos refletir sobre o
que é natural e o que é artificial no comportamento humano, pois vigoram
preconceitos perniciosos, como o de acreditar que a homossexualidade é uma
opção. Opção é a de declarar ao mundo: «Eu sou heterossexual, eu sou
homossexual, eu sou trans- ou assexuado». Escolhemos, por qualquer razão,
tornar público o que bem podia ser privado. Agora não escolhemos a
orientação sexual, tal como não escolhemos o tipo de dentição nem o
bipedismo. Se nós pudéssemos optar, meus amigos, eu teria preferido a
oviparidade, para a fecundação ser externa, como
acontece com peixes, rãs, etc., espécies em que não existe cópula,
e deixar por aí uns milhões de girinos.
Ora no século VII antes de Cristo, bem mais antiga
do que Sócrates, aquela que se diz ter sido a criadora da poesia lírica,
Safo, dedicava poemas às suas amadas, e não deve ter sido por esse motivo
que da sua obra só chegaram fragmentos até nós:
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A uma mulher amada
Parece-me igual aos deuses aquele que, docemente sentado ao pé de ti,
bebe as tuas encantadoras palavras e recebe o teu sorriso; eis algo que me
perturba até ao fundo da alma.
Mal te vejo, as palavras morrem-me na boca, a língua fica acorrentada,
uma chama subtil corre-me nas veias, oiço tilintar nos ouvidos, inundam-me
suores frios, todo o meu corpo se arrepia; fico sem respiração,
mais pálida que a erva murcha, e até parece que estou
prestes a expirar.
Os fragmentos de Safo são idílicos, de cenário quase
sempre bucólico. Alguns temas chamam a atenção mais do que outros, como o
da virgindade, que é inesperado ver valorizada no contexto homossexual. É
preciso fazer um esforço para afastar a nuvem da moral católica,
entranhada em nós, mesmo sem darmos conta dela, e reparar que, quando Safo
gaba a coroa de flores da amada, não a tolda a ela nenhum preconceito
moral, sim o deslumbramento pela juventude, tanta que ainda a flor não
chegou à fase de dar fruto:
Com que posso comparar-te, doce amante? Para ser exata, devo
comparar-te com uma árvore esbelta. E tu, Dica, entrança com as delgadas
mãos feixes de anis e cinge com uma coroa os teus maravilhosos cabelos;
pois a Deusa e as Graças, felizes, preferem as virgens floridas e
afastam-se das cabeças sem coroa.
Muitos poetas traduziram Safo e verteram os fragmentos para as suas
línguas, sabendo grego ou não.
Os deste artigo são versões nossas de textos franceses e espanhóis. Em
Portugal, são bem conhecidas as de Eugénio de Andrade, pela primeira vez
publicadas no Porto, em 1974, com o título de
Poemas e fragmentos de Safo.
Safo escreve poemas delicados, modelos da beleza
clássica, com a sua exigência de equilíbrio e simplicidade,
características que deviam ser dela, já que Safo está na origem da poesia
que conhecemos. Não diria que são poemas eróticos, por muito que o Amor
neles dispare as suas setas. É um Amor menino, de encantadora ingenuidade.
Ocorre-me o que Herberto Helder diz da escultura clássica, em
A morte sem mestre, tão fria que é boa publicidade às peças de carne
penduradas nos talhos. Não será aplicável a apreciação aos poemas sáficos,
mas não deixa de ser fria esta poesia amorosa, que vive sobretudo das
palavras que captam a pureza dos sentidos e instituem algo que,
posteriormente, será fruto de leitura dela, portanto academismo:
A tua
voz é mais doce ainda Que a da lira…
Por tanta beleza são dignos os fragmentos de ser
lembrados. É caso no entanto para perguntar se a fama de que ainda gozam
se deve ao seu valor intrínseco, ou se não teriam recolhido já ao
esquecimento histórico, como tantos poetas da Antiguidade, caso não os
condimentasse a biografia da autora, em particular nesse detalhe da
homossexualidade. Mais conhecidos do que os versos são expressões como
«amores sáficos» e «lésbica», originados no seu nome e na localidade de
nascimento, na ilha de Lesbos:
Tenho uma jovem e graciosa amiga cuja beleza é tão radiante como a das
flores purpúreas; por ela desprezo a Lídia inteira e até a amável Lesbos.
Safo era lésbica, votada aos amores sáficos. Hoje,
apesar da nossa abertura de espírito e liberdade em que vivemos, frutos de
progresso civilizacional e
evolução da espécie, ela não teria podido fruir os seus amores na rústica
paz e felicidade (salvo a morte de amor, que não desaparecerá da
literatura nem depois do Romantismo) patenteadas na obra, porque a
homossexualidade é mal aceite e mal compreendida. Com o advento do
cristianismo passou a ser considerada pecado; em séculos já próximos de
nós, sem ter desaparecido o peso do pecado, a Lei aplicou-lhe o rótulo de
crime, o que implica condenações e cumprimento de penas; já no século XX,
não tendo desaparecido ainda os labéus de pecado e crime, passou a acumular a
diagnose de doença mental.
Em tempo e lugar cristãos, século IV, mais
precisamente em 342, escreve Paulo Drumond Braga, em
Filhas de Safo – Uma história da
homossexualidade feminina em Portugal, que “saiu a primeira lei a
proibir os casamentos entre pessoas do mesmo sexo e em 533 a pena de morte
foi pela primeira vez prescrita no Ocidente, pelo imperador cristão
Justiniano, para contactos homossexuais masculinos”.
É interessante essa primeira lei, em 342, pois nos
põe a pensar nas circunstâncias em que o Poder legisla sobre dada matéria.
Decerto não se lembraria hoje de proibir o casamento com marcianos, pois
não existe conhecimento de que algum se tenha verificado, nem ninguém
sente a voz de grupos de pressão para se acabar com tão enorme indecência.
Só se legisla sobre o que é prática habitual e se pode tornar uma ameaça,
donde é legítimo concluir que, nas cercanias do século IV, acontecia haver
casamento, ou vida marital, entre pessoas do mesmo sexo.
Na verdade, de acordo com Freud e autores mais
recentes, não somente não temos opção em matéria sexual – não escolhemos o
nosso género – como a predisposição maioritária da espécie
Homo sapiens, a nossa, é
bissexual. Parece então que vivemos hoje muito mais constrangidos do que
os nossos antepassados, para não voltar a falar de chimpanzés e babuínos,
de cuja natureza também faz parte cumprimentarem-se com sexo, sem
discriminação de pares.
Que camponesa, com seu rústico traje,
conseguiu cativar-te o coração?
Nem sequer sabe erguer o manto
sobre os tornozelos.
Todo o passado, querida Átis,
Esqueceste de verdade?
Voltaste, tudo ficou bem. Sem ti,
Definhava, e agora inflamaste o meu coração
e puseste-o a arder de amor. Bendita sejas.
Três vezes te bendigo e por todo o tempo
em que estivemos separadas.
Pecado,
crime, doença mental – o que fazemos recair sobre a cabeça dos gays não
manifesta nada disso no seu comportamento, no nosso é que revela extrema
ignorância, prepotência (não toleramos o que se afasta do nosso próprio
modelo, o desvio enfraquece o poder instituído) e extrema crueldade. Não
me esqueci de que agora a Lei permite o casamento entre pessoas do mesmo
sexo, mas uma coisa é a Lei e outra a moral que nos rege.
Depois de morta, não sobrará de ti
Memória nenhuma, não haverá futuro, já
que não entesouras as rosas das Musas;
a tua alma errante vagueará por entre as sombras,
sem luz.
Maria Estela Guedes .
Casa dos Banhos . 29 de agosto de 2014
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Maria Estela Guedes
(1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov
Membro da Associação Portuguesa de Escritores,
da Sociedade Portuguesa de Autores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV.
LIVROS
“Herberto Helder,
Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979; “SO2” .
Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler
Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”,
Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial
Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa,
1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria
Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À
Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de
Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu
Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários :
Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em
colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora,
1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”.
Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas
Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis
Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007;
“Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na
Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”.
Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Geisers”. Bembibre, Ed.
Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas
modernos em Portugal”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010.
“Tango Sebastião”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2010. «A obra ao
rubro de Herberto Helder», São Paulo, Editora Escrituras, 1010;
"Arboreto». São Paulo, Arte-Livros, 2011; "Risco da terra", Lisboa,
Apenas Livros, 2011; "Brasil", São Paulo, Arte-Livros, 2012; "Um
bilhete para o Teatro do Céu", Lisboa, Apenas Livros, 2013.
ALGUNS COLECTIVOS
"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de
Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom
homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte.
“O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual.
Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”.
Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009.
Entrada sobre a Carbonária no Dicionário Histórico das Ordens e
Instituições Afins em Portugal, Lisboa, Gradiva Editora, 2010; «A
minha vida vista do papel», in Ana Maria Haddad Baptista & Rosemary
Roggero, Tempo-Memória na Educação. São Paulo, 2014.
TEATRO
Multimedia “O
Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação
Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação
de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de
Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de
Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando
Alvarez e interpretação de Maria Vieira.
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