OFÍCIO DAS TREVAS / Última cena
Maria Estela Guedes
03-12-2004
www.triplov.org

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CENA 9

O Tenebrário acende as velas do tenebrário.
Repete a cena do círio,

distribuindo luz a todos

Invisivel - Hasbunal láhu wa nimal wakil. Alalláhi tawakkalna

Lucy - Queres que seja Livro como tu? Queres que recite e viva o sentido literal? Assim, morta de medo como estou? Literalmente: o Novo Testamento em meu sangue... Mas eu nem sequer acredito e sinto terror de mim! (recita): Hic est enim calix sanguinis mei novi et aeterni testamenti... O Novo Testamento em meu sangue, meu Deus, acho que vou desmaiar, e nem estou a ler tudo o que devia... A Palavra é rubrica no meu próprio sangue... Sanguinis mei, sanguinis mei... E qual é a Palavra inscrita no meu sangue?

Coro - O Sol da meia-noite, reparai! Além, na irrevocável distância! Oh, olhai, olhai! O cavaleiro branco vestiu luto carregado!

Lucy - E o sol se tornou negro como um saco de crina... Sol negro, bebo-te cegamente na boca...

Coro - O Sol da meia-noite, reparai! Além, na irrevocável distância! Oh, olhai, olhai! O cavaleiro branco vestiu luto carregado!

Lucy - É como ser louco, não haver espelhos à frente e cair desamparadamente na profundidade de si mesmo... Mas eu não quero cair em mim, não sei o que posso encontrar! 

Yoruba - Pelo Benfeitor e Misericordioso! Se caires na cisterna de ti mesma, o que hás-de tu encontrar? Nenhum dragão, só a água dos rios que correm no Jardim do Éden, a tua soberana formosura!

Lucy - Não, o pavor não é dos dragões, venham que eu salto sobre essa fogueira!

Yoruba - Oh, ardente coisinha... Acreditas que o anjo da guarda te vai apagar? Se é ele o que gosta de fósforos... Repara: por muito sagrado que seja, não passa de uma obra de arte... A única coisa que sabe fazer é pôr-se à escuta, de cabeça inclinada para a terra... Quando os olhos se afundam nos teus, o que sentes é uma punhalada... A mim, não vês tu, e no entanto sou humano, teu próximo, tenho sede e para mim não sabes ser-me água! O que se passa contigo, por Allah? 

Lucy - Tenho medo de cair em mim e enlouquecer... Enlouquecer por não encontrar nada... Nada, nem logos nem mito, nem ciência nem politécnica, nem saber nem nada ter feito... Nenhuma certeza, nenhuma crença, nenhuma verdade, palavra nenhuma, só a pior das mortes, esta de estar falando de nada, esta de ser um morto que só sente...

Coro - O Sol da meia-noite, reparai! Além, na irrevocável distância! Oh, olhai, olhai! O cavaleiro branco vestiu luto carregado!

Lucy - E o sol se tornou negro como um saco de crina... Sol negro, bebo-te archotes na boca... (lê): Hic est enim calix sanguinis mei novi et aeterni testamenti... Se digo o que realmente leio e sinto, morro mesmo... Ai!, está-me a fugir o sangue todo das veias, preciso de um copo de água... (Yoruba dá-lhe água). 

Invisível - Hoc est corpus tuum...

Yoruba - Ensina-me, tu que luz também transportas: qual é a Palavra inscrita a rubro no teu sangue? Criação?

Lucy - Amor... Apetece-me gritar por socorro... Tenebrário, meu Tenebrário!

Yoruba (dá-lhe o tassbi) - Ó minha delícia, tens um rio ao pé de ti e preferes a fogueira! Reza, fala com Deus directamente, diz: Subhanallah! Subhanallah! Deus Todo Poderoso!

Coro - O Sol da meia-noite, reparai! Além, na irrevocável distância! Oh, olhai, olhai! O cavaleiro branco vestiu luto carregado! 

Lucy - E o sol se tornou negro como um saco de crina... Sol negro, bebo-te sangue na boca... (desmaia). 

Invisível - Hoc est corpus tuum... 

Yoruba (levanta-se, começa a oração completa, segundo a disciplina das posturas) - Inna lil láhi wa inna iláihi rájiun! (a seguir ao Al-Fathia).

Tenebrário (embala-a) - Máliqui yâumi' ddin! Que te fará entender o que é o astro nocturno? É o astro que irradia. Toda a alma tem um guardião junto de si! 

Invisível - Máliqui yâumi' ddin! Que te fará entender o que é o astro nocturno? É o astro que irradia. Toda a alma tem um guardião junto de si!

Lucy (recupera, soergue-se; o Tenebrário vai para o altar) - Tenebrário, volta os olhos para mim... Tenho medo... Ó tu que te manifestas como pássaro de beleza irradiante, sabe que não roubei... Ó tu, cujos olhos ferem como diamantes, sabe que não menti... O meu maior crime é não acreditar em nada... Mea culpa, mea maxima culpa, o meu maior pecado é não acreditar em nada, excepto na divina beleza das palavras que repeti... Prostro-me a teus pés, príncipe dos candelabros, senhor da minha luz... Agora que esta rubrica pronunciei segundo o ritual, põe o teu pão e a tua bebida de comungar em minha boca, e deixa-me atravessar-te... 

Tenebrário (está no altar) - O teu Senhor não te abandonou nem te detesta. De que tens medo? Esta é a mesa da nossa comunhão, o pão, o vinho e a memória que cada um transporta. Esta é a mesa do nosso conhecimento, as bodas do nosso advir e da nossa páscoa: o corpo de Deus ao nosso corpo dado (aponta a mesa). Esta é a mesa do teu nosso afecto, comunga: eis aqui o meu corpo... E calo o resto, o amor é silencioso e invisível. 

Lucy - Não, invisível não é, basta ler a tua cara, mesmo quando olhas muito sério para mim... Até quando me atravessas com a tua cólera... Invejo-te, mas estou a morrer de medo... Se eu soubesse como deitar-me fora para me ires depois buscar ao caixote do lixo... (abandona-se, fica deitada).

Yoruba - Allahu Akbar, do caixote do lixo desta tua cultura do Deus morto estou eu a tentar tirar-te! Reza, diz Subhanallah!

Invisível - Subhanallah!

Tenebrário - Não mexas no teu Tenebrário... Não invejes... Não vês que os membros do meu corpo estão sob custódia? Partiste para a longa viagem, eis que a tua mão alcança o objecto dos teus desejos: o horizonte do céu e os lugares sagrados...

Yoruba - Que loucura, Lucy, eu posso dar-te o pão e água reais que desejares, volta os olhos para mim!

Tenebrário - Quero ver...

Dangbé - Sentado na Barca dos milhões de anos, eu sou o Senhor da Lei escrita. Eu sou Thoth, o Hierogramático perfeito, de mãos puras, que tem o dom da Palavra... Volta os olhos para mim... 

Invisível - Eu sou Thoth, o Hierogramático perfeito, de mãos puras, que tem o dom da Palavra...

Sylvia - Eu extermino o Mal, eu sou o Escriba da Verdade e tenho aversão ao Pecado... Volta os olhos para mim... Em nome de Aquele-Que-É-Sublime e Príncipe da Eternidade, que o teu espírito seja purificado... 

Invisível - Em nome de Aquele-Que-É-Sublime e Príncipe da Eternidade, que o teu espírito seja purificado...

Yoruba - Oh, mas o que é isto do Livro dos Mortos?! Livros escritos por humanos!... Lucy, Allah é o único deus vivo, acorda, diz Subhanallah!

Sylvia - Eis que recolhi e reuni todos os membros dispersos do Grande Deus... Agora, depois de ter criado um caminho celeste, avança por ele...

Yoruba - Avança para onde?! Mais deuses mortos, não!

Tenebrário - Eis que te levo até aos Campos da Paz... As oferendas funerárias estão diante de ti... O teu espírito é poderoso, a tua alma abre passagens à força e guarda o poder da Palavra... Vou-te deixar avançar... As Portas estão abertas, atravessa...

Invisível - Eis que te levo até aos Campos da Paz... As oferendas funerárias estão diante de ti... O teu espírito é poderoso, a tua alma abre passagens à força e guarda o poder da Palavra...

Lucy (acorda estonteada, fala com rispidez) - Tu queres é levar-me para o outro mundo! Mas onde é que eu estou metida?! (Tenebrário inclina-se a procurar-lhe os olhos, vai-a levantando com os dele até ela acalmar e ficar sentada). 

Yoruba - Ó minha delícia, levanta-te! Tens o amor inscrito no teu sangue, mas afinal que rubrica te matou de medo da morte?

Lucy - Realmente, não disse... Mas digo agora... Se tiver de morrer, morro mesmo e depois logo se vê... É o testamento, meu Deus! O testamento em meu sangue, vou desmaiar outra vez, isto é uma vergonha! Preciso de um copo de água... (Tenebrário dá-lhe de beber). E a quem hei-de eu deixar as minhas tartarugas? Tenebrário...

Tenebrário - Sim...

Lucy - Preciso de criar o meu testamento... Arranja-me papel e caneta, por favor... Tenho as mãos a tremer, que horror! Vai-me sair pavorosa a caligrafia... Escreve tu que eu assino... É só uma alínea, escreve aí, não custa nada... Nada, não tenho nada de especial a deixar, só o Tarejo e a Urraca... Deixo-te a minha criação...

Tenebrário - Pelo Tarejo e pela Urraca!...

Lucy - É o meu testamento... 

Tenebrário - Não, porque de tartarugas não percebo nada!

Lucy (pega no tassbi, desfia umas contas) - Subhanallah, Subhanallah, Subhanallah, Subhanallah... 

Invisível - Laa Ilaa he Ilalaahu Muhammad rasul Allah... Laa Ilaa he Ilalaahu Muhammad rasul Allah...

Tenebrário - Pelo teu Nosso, arde até às cinzas... Depois serás mais Phoenicopterus que o flamingo ruber roseus...

Lucy (levanta-se de rompante, vira a capa para o lado vermelho) - Subhanallah! Eu preciso é de água, eu já estou farta de arder, mas se ainda queres mais, tem a bondade! (dá-lhe a caixa de fósforos). Oh, eu vou é converter-me ao islamismo!... Laa Ilaa he Ilalaahu Muhammad rasul Allah! (recorda): Mactub! Mactub! Pelo destino!, esqueci-me completamente do objectivo, da nossa estética missão! (trepa pelo mastro acima). Então? Não temos de ir à Expo Matéria Espiritual? Vens connosco ou sempre ficas no Benim?

Tenebrário (sacode a caixa de fósforos) - Vou contigo, também tenho a minha criação para exibir... A verdade porém é que as viagens não me interessam nadinha...

Lucy - As viagens não te interessam?!

Tenebrário - Só para o novo mundo, claro... O da criação única... O mundo de Deus!

Lucy - E para onde julgas tu que vamos a seguir? Direitinhos para o Além! Oh, eu acabo já com o dilema, eu fico é com os dois! Yoruba e Tenebrário, qual a diferença? Tudo é a mesma criação! E pronto! Acima, acima, muezzin! Acima, flamingo real! É já tardíssimo, vamos chegar atrasados à inauguração! Largar as amarras, ala! Upa, upa! Subhanallah!, toca a zarpar! 

Invisível - Upa, upa! Cruz, credo! Subhanallah! Toca a zarpar!

Yoruba e Tebrário também sobem.

Yoruba canta a chamada para a oração,

Tenebrário toca o sino para a missa.

Ouve-se ao longe o estrépito de fogos de artifício.