OFÍCIO DAS TREVAS /Segunda cena
Maria Estela Guedes
03-12-2004
www.triplov.org

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CENA 2

Uma luz que se vinha aproximando está na cena escura
e é um homem alto com fato negro brilhante
que transporta um círio.
Pousa uma caixa de fósforos no altar.

Lucy - Tu quem és, ó lampadário? E que fazes na Costa dos Escravos? És o invisível companheiro que esperava? (apaga a 13ª vela).

Tenebrário (acende a vela que Lucy tinha apagado; esta apaga-a) - Quando se apagam todas as estrelas, eu sou a luz que resta. Por isso me dão o nome de Tenebrário. Trouxe-te um punhado dela, para que me distribuas como espécie... (Lucy apaga o resto das velas; fica só a luz do Tenebrário) Mau... Mau, mau... Porque estás tu a apagá-la?

Lucy - É melhor assim, não? Para acabar com o ofício das trevas... (com o círio, o Tenebrário acende-lhe uma vela).

Tenebrário - Não é com artifícios de teatro que passas das trevas para a luz, mas está bem, a vigília é tua, reza-a como quiseres. Diz: para onde vai este transporte colectivo?

Lucy (começa a acender velas aos elementos do coro, que se aproximam um a um e depois regressam ao seu lugar) - O objectivo da excursão organizada é a Expo Matéria Espiritual, em Lisboa. Vamos lá exibir a nossa criação. Agora o Destino da que não foi planeada... Uma coisa é certa, meu amigo: estou muito farta de expedições turísticas, de guias que só debitam a materiazinha da aula. Apeteceu-me outra espécie de viagem, mas estou com medo...

Tenebrário - Medo de quê? Falta-te a prática do lugar?

Lucy - Não há prática do lugar desconhecido... Nem mapas, nem referências objectivas. Só entradas pagas com o risco de não haver saída...

Tenebrário - Pois... Uma questa...

Lucy - Uma questa?! Se ninguém sabe responder ao que demando... Questionários já eu fiz muitos, e até só pergunto as simplicidades de catecismo de que já estou muito esquecida. Qual quê? Fingem que não ouviram, respondem ao que não perguntei, ou dizem que disso não percebem nada... (acende outra vela). E o invisível passageiro, que já está tão atrasado... Tu para onde queres ir, ó Tenebrário?

Tenebrário - Eu já cheguei ao destino (aponta o tenebrário). E amanhã, para variar, apetecia-me comer o cordeiro pascal no Benim... Fica na tua rota, ainda por cima... Deixavas-me em Ajudá. Esta África anda impossível. Todo o orbe, de resto, está intransitável. Morte de Deus, morte da História, a ciência que não tem provas de nada, fome, guerras, racismo, vírus...

Lucy - E essas bactérias do âmbar e da resina do copal, que dizem chegar fresquinhas de muito antes do Plistocénico? (acende outra vela).

Tenebrário - Acreditas que ressuscitam no espectro de um lagarto do âmbar?!... Acreditas que um ser vivo acorde, como a Bela Adormecida, ao fim de um sono de alguns cem milhões de anos? Bem, isto pela cronologia longa, porque, se for pela curta, é só metade. Em todo o caso, olha que é muito milhão de anos...

Lucy - Contem-me histórias de fadas e varinhas mágicas e eu desmaio de beleza narrativa só de ouvir falar em dormir cem anos... É uma forma de acreditar... A ciência tem maneiras de recontar os nossos sonhos, atribuindo-lhes fachada realista... Diz-se muito objectiva e é o que basta, toda a gente acredita que para alcançar a verdade é precisa uma enorme distância... 

Tenebrário - A verdade!... Vi-a com estes olhos no telejornal... Vi a bactéria ressurrecta, entenda-se...

Lucy - Oh, a televerdade! A verdade é que ancorámos nas trevas (acende outra vela), não sabemos nada de nada... Pergunta primeiro: é certo que a bactéria é aquela que eles dizem? Nem a nomenclaram. Nos alicerces de quanto é falso ou verdadeiro reside a sistemática. Ora a técnica de identificar é o que há de mais transitório e de falível. Não tem limites, coordenadas fixas, não se rege por nenhuma ética. As espécies dependem, dizem os especialistas, da sensibilidade de cada um... O único modo válido de classificar é estudando a biologia da reprodução. Se dois animais procriam bichinhos férteis, pertencem à mesma espécie. Se não, paciência, nada há a classificar. A sistemática é um obstáculo ao conhecimento da criação. Olha as aves, que agora querem que sejam répteis... Olha a antropologia: para uns há trinta e tal raças, para outros, graças a Deus!, não há nenhuma... Isso que hoje dizem ser a bactéria Y, amanhã, para outros mais sensíveis, passa a ser o vírus 33. O que para estes é o vírus 33, pode para outros ser um híbrido, ou uma fase metamórfica (acende outra vela). Se isto acontece com homens, lagartos e rãs que, enfim, sempre são seres de certa grandeza vertebrada, imagina a confusão que não reinará na taxonomia das criaturas mais pequenas...

Tenebrário - Louvado seja o teu Nosso, tudo é criação! A ciência apropria-se dos relatos sagrados, atribuindo a essas bactérias o poder da ressurreição!.. Oh, o Homo pseudo-sapiens é que à imortalidade aspira, tem é vergonha de confessar o medo da morte... 

Lucy - Estás absolutamente certo do que dizes? Eu tenho é medo da vida, a vida é uma contínua exposição... Deita os olhos aí para baixo, para Angola... Levanta-os só para a Praia, em Santiago, onde oitenta corpos diários vão parar ao prado do repouso durante as grandes fomes... Repara na Europa, tão civilizada, quanto holocausto mesmo agora... (acende outra vela). Será preciso ainda mais sacrifício? Ó anjo da guarda, tem piedade de nós! 

Coro - Tem piedade de nós!

Lucy - Só me pergunto como é possível. Sim, como é que se faz? Com que energia se ressuscita?

Coro - Ex Deo nascimur, in Jesu morimur, per Spiritum reviviscimus.

Tenebrário - Com a do espírito.

Lucy - Olha, pousou ali uma pomba, naquele mastro... Se não for a Columba livia, só pode ser a Streptopelia turtur... E não, nem uma nem outra, que engraçado... Mas que espécie será aquela?! É desconhecida da ciência, com toda a certeza... Olha, olha, agora pousou outra... (acende outra vela). Deve ser um casal, e de uma boa espécie, não há dúvida nenhuma... (fica especada, a olhar; o que ela vê é invisível).

Tenebrário - Bird watchers, até nas trevas identificam à légua os passarinhos... Pelo seu Nosso!, não será a Sylvia atricapilla, mais conhecida por toutinegra? Eh!, Lucy! Largas as amarras ou não?

Lucy - Calma, pela Urraca! Falta gente, inda é preciso esperar pelo invisível...

Tenebrário - Credo!... Então a nave não tem horário de partida? Toca o sino, ou chega-te aí à amurada e dá um berro... Vá, chama-os, diz que temos pressa, eles que embarquem a criação...

Lucy (toca o sino, como se chamasse para a missa; depois vai até à amurada) - Ehhh!... Acorrei, ó passageiros, temos pressa de largar!... 

Coro (corridinho) -

Somos nós os companheiros,
Santiago nos vê bailar.
Temos fato peregrino,
para nos compostelar.
Água de Zemzem queremos,
para o coração abrir.
E a fogueira do futuro,
por cima dela deitar.
Somos nós os companheiros,
bailemos, sonho derviche.
Para este fogo apagar,
veio do céu Jibraíl. 

Lucy (acende a última vela; elementos do coro acendem a luz uns dos outros; só agora se vê bem o coro) - Vem, invisível companheiro que já estás tão demorado!... Não ouve, eis que se arrisca a falta injustificada!

Coro - Eis que se arrisca a falta injustificada! Muito bem, apoiado!

Tenebrário - Se é invisível o passageiro, podes sem dar conta tê-lo já a teu lado...

Coro (declamado) -

Põe-te à escuta: tremula um signo moreno
ao acaso de dois versículos...
De Deus o braço comprido, é uma custódia de aço...

(cantado:)

Sylvia atricapilla,
Sylvia cantillans,
Sylvia hortensis,
Sylvia melanocephala,
que ofertório ao toutinegro sagrado?

(falado) - Olha, Lucy, aproxima-se o invisível e vem carregado de criação...

Lucy (espreitando da amurada) - Esse que chega não é invisível. Nem a carga, aliás bem excessiva. Dizeis vós que é a sua criação?! Inclina a cabeça de Phoenicopterus ruber roseus, a ouvir-nos. Quando ergue os olhos, é um sobressalto de seda fria... Eis que entra na almadia novo peregrino, mas com todo o ar de se dirigir a Meca e a Medina...