No espaço de um mês, "Fernando Pessoa e os mundos esotéricos", último livro de Janes, ou José Manuel Anes, é lançado em segunda edição. Porquê um tal fenómeno, coincidente com o de "O código Da Vinci"? Naturalmente, porque as pessoas têm sede de espírito, fome do que lhes proporcione algo mais do que uma trajectória de vida material, sem apelos de elevação que não sejam os de salário e posto na carreira. Voltam-se para os mundos esotéricos de preferência aos das três religiões modernas, porque, em primeiro lugar, eles se complementam e não se excluem, em segundo lugar porque algo parece faltar às religiões, talvez a dimensão viva e patémica do símbolo, e finalmente porque existe em nós uma atracção irresistível pelo que mete medo - o mysterium tremendum, como chama ao sagrado Mircea Eliade.
Os simbolos abalam o seu recipiendário dos pés à cabeça. Quem lhes toca sente o fogo, é desperto da modorra das suas rotinas, saltando para um espaço inquietante, regido por forças desconhecidas. A pessoa sente-se chamada, sacudida por invisíveis que lhe tocassem no ombro, e isto implica um não estar só no teatro da vida, mesmo que o seu papel seja o mais solitário de todos, como esse "Caminho da Serpente" seguido por Fernando Pessoa, em cuja descrição se demora Joannes - Anes é uma antiga forma do nome João.
Este "Caminho" é um tema iniciático tratado em capítulo final do livro, "Reflexões pessoanas sobre a iniciação". José Anes considera o conjunto de textos "O Caminho da Serpente - o Livro que o não é", a obra maior do esoterismo pessoano, portanto mais significativa do que a "Mensagem". Para exprimir esse caminho que o não é, Janes socorre-se de algumas linhas de força traçadas pelo próprio Fernando Pessoa. A primeira é a de que a vida é sonho, ilusão, sombra projectada na parede de uma caverna. A iniciação é o dissipar gradual e parcial dessa ilusão, para aceder, se entendi o sentido do caminho da serpente, a um além-Deus, ponto em que o caminhante deixa ele mesmo de pertencer ao reino das sombras e ilusões, para tomar posse do Ser, da sua Identidade - vê a sua identidade divina.
E com isto já entrámos no reino dele, João ou Jano, o deus bifronte, cujas chaves abrem as portas de Janes - ou Janeiro. O símbolo é qualquer coisa como um ready made - duas chaves, ponhamos como exemplo, para continuarmos no caminho de Janus. Para agirem como símbolo, e serem então percebidas como tal, precisam de estar deslocadas do seu espaço profano. O receptor olha para elas e descobre que não servem para abrir e fechar portas de casa. Então o que abrem elas? Os nossos olhos, para já. Quando Júlio Henriques, no ensaio sobre São Tomé, diz que para fazer estudos de meteorologia não são precisos grandes instrumentos, basta um pluviómetro, um anemómetro, um psicómetro e pouco mais, e que a casa Negreti e Zambra vende o conjunto a preço acessível (1), está a deslocar um dos instrumentos da sua funcionalidade normal e a introduzi-lo noutra a que não pertence, a da meteorologia. Por irradiação contaminante da chave psicómetro, tudo o que naquele texto diz respeito à meteorologia se torna também simbólico - ou psíquico -, e o leitor é acordado, chamado para caminhos que o conduzem do texto para o contexto histórico, e deste para o terreno referencial - a ilha.
Se Fernando Pessoa, vamos imaginar, pega em duas velhas chaves, as cola num quadro e pendura este na parede, as chaves ficam deslocadas do seu espaço funcional e adquirem um qualquer outro valor - sentimental, histórico ou artístico. Mas não há nada aqui de inquietante, porque estas chaves são inanimadas, não tocam no ombro de ninguém. Se, em vez de penduradas na parede, tiverem sido deixadas subrepticiamente na gaveta da cómoda de Fernando Pessoa, sem este saber quem foi, já pode ser abalado da cabeça aos pés, entrando assim num processo de transmutação interior. Entre a primeira reacção, de pânico, e a última, um sorriso ao espelho, define-se um período de questa, em que vários instrumentos são convocados para solucionar o enigma: Instinto, Desejo, Inteligência, Arte/Ciência, Magia, Imaginação, Alquimia, Magna Magia, Intuição, Alta Alquimia e Identidade, de acordo com o esquema do Caminho da Serpente fernandino, que levarão à identidade de quem doou as chaves e à identidade delas como símbolos: o que são estas chaves, uma prateada e outra dourada? No processo de transmutação, se o iniciando muda de nome consoante as etapas do caminho, é porque isso reflecte as alterações do sujeito que caminha para a identidade final.
Em qualquer das fases da questa há um ícone a representar um estado de ser, e esse estado tem de ser vivido para se passar ao mais elevado. Fernando Pessoa, ao ver as desconhecidas chaves na sua gaveta, teve como primeira reacção, vinda do instinto - uma zona ínfera do conhecimento - um acesso de cólera. A Serpente representa o Mal, o Diabo, e o Mal existe em nós. Se não formos o Diabo, e não conseguirmos dominar essa força, não passaremos para os graus superiores do Caminho. Citemos Pessoa, na página 145 de JMAnes: É preciso, quando se é Serpente, passar em Satan, para chegar a Deus.
Em suma, um indivíduo bom, que nunca tenha cometido nenhum acto condenável, ao menos um deslize com os outros, não tem qualidades para se erguer às alturas do espírito, faltam-lhe degraus no caminho, ou falta-lhe a própria escada.
Ficou claro destes exemplos que para ler certo tipo de mensagens é preciso ter instrução. Ela passa por muitas matérias em geral não leccionadas no ensino oficial, como o espiritismo, a astrologia, o ocultismo, etc.. O ocultismo, como vem escrito no livro de Janes, não é saber aquilo que outros ignoram, sim conhecer o modo oculto de fazer certas coisas e interpretar certos sinais. É para essa escola que aponta o livro. José Manuel Anes é um Venerável Mestre, aliás mais do que isso, e uma das suas actividades é docente, em dois níveis distintos: o convencional, como professor na Universidade Nova, e o não convencional, como mestre dessas estranhas matérias a que dá o nome de "mundos esotéricos".
O autor visa averiguar se Fernando Pessoa era maçon ou não, analisando poemas e outros textos do espólio. E, sendo-o, a que ordem pertencia. Daí o plural do título, "mundos esotéricos", pois há muitas possiblilidades, algumas das quais se discute se são maçónicas ou não. Por mim, (ainda) não sei mover-me nesse labirinto, mas Fernando Pessoa sabia. Supondo que estivéssemos a lidar com um naturalista e não com um poeta, com espécies animais e não com entidades como a alquimia, o martinismo, a gnose, o Rosacrucianismo, a Maçonaria Florestal, o GOLU, a Nobre Ordem dos Cavaleiros da Santa Cruz, a Ordem de Heredon de Kilwinning, o Real Arco Inglês - o Real Arco de Zerobabel, não o de Enoch... Supondo que Fernando Pessoa fosse um herpetologista e não um poeta, ele saberia que os lagartos de Cabo Verde eram os Euprepes de Cocteau de Duméril e Bibron, mas não os Euprepes de Cocteau, pertencentes ao grupo Sauria, mas não à família Lacertidae, e que actualmente não têm esse nome, pois houve revisões sistemáticas que lançaram a designação Euprepes na sinonímia de outros géneros, quase todos eles Mabuya, salvo uma ou outra excepção, como é justamente o caso dos lagartos caboverdianos, em aparência extintos, como a Maçonaria Florestal portuguesa, que passaram para o género Macroscincus.
Quero eu dizer com isto que, quer no caso dos lagartos, quer no das categorias do esoterismo e formas de associação que tomam, há pelo menos dois modos de os conhecer: o selvagem, que não tem escola nem instrução organizada, limitando-se a reconhecer a presença dos lagartos num texto ou no terreno, sem nada saber de Sauria, Reptilia, Scincidae, Euprepes nem Macroscincus, e um modo de conhecer domesticado e domesticador, que usa um sistema de classificação, hierarquizado em categorias, dotadas estas de um rol de caracteres discriminantes, para identificar as inúmeras salas e por isso se orientar no complicado palácio desse Minotauro. Ora Fernando Pessoa, como demonstra JMA, sabe orientar-se no labirinto, por isso tem instrução e escola idênticas às de José Manuel Anes, para o qual não há dificuldade nenhuma em identificar a A.'.A.'., à qual pertenceu Fernando Pessoa, e em distingui-la correctamente da Golden Dawn. A A.'. A.'. (Ordem Argenteum Astrum) tinha sido fundada por Aleister Crowley, também chamado Besta 666, o mago que veio a Lisboa visitar o poeta e depois simulou um suicídio na Boca do Inferno, em Cascais. O lema desta ordem era "Faz o que queres, essa é toda a Lei" (Do what thou wilt shall be the whole of the Law). No espólio de Pessoa existe uma circular da A.'. A.'. a provar a sua filiação, pois só eram enviadas aos membros. A ordem é maçónica ou não usaria a tripontuação para se auto-identificar. É do conhecimento dos jornais que o grafema deu até lugar à amistosa designação da Maçonaria como "Sociedade dos Três Pontinhos".
De outra parte, Fernando Pessoa, que muito escreveu penetrado de esoterismos, mesmo em ensaio, mesmo arriscando a pele, como ao criticar o projecto de lei de 1935, destinado a eliminar as lojas maçónicas e outras sociedades secretas (2), sabe calar-se no momento próprio, deixando claro qual é o momento próprio para se calar. Alguém que não tenha a instrução devida, que não tenha frequentado a escola onde se aprende a reconhecer a fronteira além da qual reina o segredo, não sabe em que momento pisa a fronteira. Qualquer profano pode chegar aos segredos, e divulgá-los. Mas não sabe que é segredo aquilo que sabe, ignora que o conhecimento alcançado à sua própria custa é ocultado por outros. Este paisano (3), suspeito de divulgar segredos maçónicos, seria no máximo um isqueiro (4). Uma vez chamado à atenção, argumenta que:
Primo: Só divulgo o que está publicado, logo não é secreto.
Irmão: Só revelo o que descobri pelos meus próprios meios, batendo com a cabeça nas paredes, e isso não é segredo alheio, é propriedade particular minha.
Fernando Pessoa era um iniciado, como demonstra José Manuel Anes. Conseguia distinguir a Sociedade dos Jardineiros da Sociedade dos Chícaras, e não falava de mais. E é bem possível que outros artistas da geração da revista Orpheu também o fossem, pois há elementos na obra de Mário Sá-Carneiro e de Almada Negreiros, para citar os mais óbvios, que permitem seguir esse caminho de investigação. Já o título da revista que lhes foi casa é bastante apelativo dos mistérios.
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