O que perturba algumas pessoas e leva os autores, quer do romance quer do ensaio, a julgar facto capaz de fazer ruir a Igreja, é o de Madalena ter sido companheira sexual de Jesus, ou mesmo casada com ele. É a possibilidade de ter havido descendentes desse casamento.
Bom, de Jesus sabe-se pouco em concreto e o mais natural era ter sido casado. "Homens, perdoai-Lhe, pois Ele não sabe o que fez!", implora Jesus, lamentando a crueldade do Pai, o grande culpado, no remate da peça "O Evangelho segundo Jesus Cristo", que uma companhia brasileira trouxe ao teatro S. Luis, a Lisboa. No romance de José Saramago, no qual se baseia a peça de teatro, também encontramos a ligação sexual de Madalena e Jesus. E mais: Maria concebe de José, tem relações sexuais com o marido e só depois delas nasce o Filho.
Nada disto é novo, para muitos de nós. A Igreja não vai cair com revelações conhecidas decerto desde o tempo de Madalena, Maria e Jesus. O problema é outro: é o de certas pessoas sentirem que há nestes livros uma grande revelação, donde, não sabiam. Então como é possível não saber, se a informação tem estado à vista? Como é possível não saber que a personagem da imagem de baixo, na Última Ceia de Leonardo da Vinci, é uma mulher, e não S. João, como parece ser conhecida? Não teremos já olhado mil vezes para o quadro? No entanto, se ninguém tivesse apontado para ela, para o M que se diz formar com Cristo, ou para o punhal ameaçador que também aparece nessa secção do quadro, não teríamos visto. E o facto de vermos agora é irrelevante: daqui a nada já teremos esquecido o que vimos, e passaremos a ver de novo S. João, até porque é ele e não Madalena o grande rival de Jesus que esta literatura traz à boca de cena. E quem não sabe ainda que S. João é um dos pilares simbólicos da maçonaria?
Na realidade, só vemos o que queremos ver. Os factos disponíveis, em geral poucos e cegos, são dispostos como edifício; construímos com eles modelos de leitura que nos servem para interpretar o mundo de certa maneira. Dessa maneira e não de outra. O conhecimento não é um conjunto de dados verdadeiros, sim um aparelho de ideias preparado para nos permitir sobreviver dentro de um grupo. Se a questão é de sobrevivência do grupo, é ocioso falar a um cristão dos filhos de Jesus e de Madalena, que até podiam ter sido os antepassados dos reis merovíngios. O cristão vive da sua fé e não são esses elementos narrativos que perturbam a solidez da sua própria fábula.
Do outro lado, é terrível querer a verdade e saber que nunca se alcançará, porque antes dela há que preservar o sossego de um paradigma, isso que permite ter emprego, salário, férias pagas, fazer vista numa cátedra como num púlpito, etc.. Só quando existir outro paradigma o antigo se desfará no pó das bibliotecas, e entretanto já bem antes disso em pó se terá tornado o nosso esqueleto.
Há em todo o caso algo notável neste confronto entre papel e batina, e que não será o M, pois onde os autores vêem um M podem outros ver um V, ou mesmo um triplo V, sim na presença da mulher. Madalena teria sido uma alta sacerdotiza, o Priorado de Sião venera a Deusa, a Mulher, Ísis, Diana ou Cibele.
Também não há nada de novo nesta veneração, como o demonstram as associações da Deusa com Cibele, Ísis ou Diana. Pelo contrário, o problema é velho como o mundo, e por isso já devia ter sido ultrapassado. Mas não, não foi ultrapassado e não o será tão cedo, apesar dos esforços desenvolvidos ao longo dos séculos por sociedades secretas e Estados: há países em que a mulher não tem direito a voto, em que é tratada como besta de carga, e há países em que se negam à mulher os direitos mais básicos, como o de receber as ordens como um padre, ou ser membro de uma associação maçónica, como qualquer homem.
É inacreditável que no século XXI ainda haja sociedades que persistem em viver mais atrasadas que as de babuínos, mas esta, sim, é uma das tais verdadeiras situações tão à vista de todos como a Mulher da Última Ceia de Da Vinci, mas que só vê quem quer ver. |