2007, 20 de Novembro...............................................Maria Estela Guedes
"A Senhora de Ofiúsa", de Gabriela Morais

Com "A Senhora de Ofiúsa", Gabriela Morais escreveu um romance de aventuras algo singular nas nossas Letras e provavelmente nas estrangeiras, porque entra num território científico que, ele mesmo, é novíssimo: a investigação das coisas antigas, em várias modalidades: paleontologia, genética, paleo-antropologia, paleo-botânica, arqueologia, etc.. Ela não escreve uma fantasia como a que vimos em cinema com o título de "Parque Jurássico", mas recua o suficiente na Pré-História de Portugal para chegar aos nossos mais remotos antepassados, os habitantes de Ofiúsa, ou Terra da Serpente. Os celtas, povo da Ibéria.

A singularidade não está no muito que recua, se bem que recue mais do que aos lusitanos, designação aliás sem conteúdo étnico, que dá apenas um nome aos habitantes da Lusitânia. A autora ocupa um espaço vazio na Literatura Portuguesa, o que já por si é importante. Esse espaço é o de uma ficção controlada pelos dados científicos, aliada às mais modernas hipóteses da História acerca dos Homo sapiens que primeiro que outros habitaram a Península Ibérica. Não se trata assim de ficção pura, de fantasia total, como nas séries de Harry Potter, com as quais algumas relações se poderiam estabelecer. A fantasia agarra-se à lenda e aos documentos, sejam eles orais, escritos, objectos como peças de cerâmica estudados nos museus, lugares como as grutas do Escoural ou recintos arqueológicos como o Cromeleque dos Almendres. O principal documento em cena é a bicha-de-sete-cabeças, a serpente que existe ainda (ver imagem da capa), mas vai desaparecer em breve se ninguém lhe deitar a mão, nas Casas Pintadas, em Évora. É aí, na hipotética casa de Vasco da Gama, que se inicia uma acção que levará dois adolescentes a percorrerem os sete caminhos da idade. Um alerta que Gabriela Morais lança neste romance é o do perigo de desaparecimento dos objectos, lugares e documentos históricos que escolheu para partipantes da narrativa.

Se a imaginação parte do documento, o lugar a onde chega é naturalmente a um possível que, neste livro, se espelha nas Idades: as Idades da História são espaços visitados pelos protagonistas; a essas viagens, que são sete, tal como as sete provas que devem passar, correspondem idades dos próprios indivíduos. Num plano mais reflexivo da narração, teremos assim uma viagem interior, em que a própria autora se revê, desde a infância à idade maior.

Mas como se realiza a viagem, e em que transporte se passa de uma época em que só se caçava e pescava, para aquela em que as mulheres já seleccionaram sementes, de modo a sendentarizarem-se as populações no meio de campos agrícolas?

Gabriela Morais sabe contar histórias, pois não é assim tão fácil prosseguir uma narração com as imposições de uma aula, já que há muito de educativo neste livro, como é de esperar de quem maneja dados da ciência. O dispositivo que parece solucionar os problemas de dois discursos tão díspares - a História e a arte de contar histórias - é a lenda. A lenda é um elemento híbrido, nem História nem Ficção, sim resultado do casamento de ambas. Tal como o livro de Gabriela Morais, gato que é escusado rotular, pois o rabo ficaria sempre de fora.

Nada que nos espante agora se virmos os protagonistas da aventura viajar no interior da bicha-de-sete-cabeças, pois a lenda ou o mito já nos apresentaram Jonas a viajar no ventre de uma baleia. Não agride assim a ciência, nem a ciência nos agride a nós, se verificarmos que a bicha-de-sete cabeças proporciona sete caminhos aos heróis, sete provas e sete lições que representam a sabedoria da idade. É o máximo conhecimento a que temos acesso: o de nós mesmos. Só a Grande Deusa, símbolo da Sabedoria, nos poderia proporcionar o acesso ao sétimo degrau da escada do conhecimento - a Serpente. "Ofiúsa" como "ofita" e "ofídeo". Pena que num país que já se chamou outrora Ofiúsa, o povo esteja tão esquecido da sua origem e tão alterado pela cultura cristã, que persiga e mate todas as serpentes que encontra, sem qualquer outro motivo racional que não seja o porque sim.

Eis uma obra que bem podia transmutar-se em série para filmes ou para televisão. Tem sobre os Harry Potter e Senhor dos Anéis a vantagem de beber na tradição oral e na nova História da Pré-história portuguesas.

http://www.apenas-livros.com
GABRIELA MORAIS
A Senhora de Ofiúsa
Lisboa, Apenas Livros Lda.
2007, 260 pp. il
email: apenaslivros@oninetspeed.pt
Página principal -Naturalismo - Apenas Livros/TriploV - Poesia - Letras - Estela Guedes - Ler à Luz