MORRER DE AMOR OU DE TUBERCULOSE?


DILENE RAIMUNDO NASCIMENTO
FUNDAÇÃO ATAULPHO DE PAIVA
LIGA BRASILEIRA CONTRA A TUBERCULOSE
UM SÉCULO DE LUTA
Garamond, Rio de Janeiro, 2002, 154 pp.

No âmbito da História das ciências, a medicina goza de grande privilégio, porque desde sempre a literatura registou os seus sucessos e aperfeiçoamentos, o seu modo de agir, os sintomas das doenças, as mezinhas e remédios, criou tipos a partir do comportamento de médicos e doentes, e até espaços mágicos inspirados pelo ambiente dos sanatórios. Há fontes primárias e secundárias em abundância e muito trabalho publicado sobre a matéria, sendo desejável que a investigação use como corpus o romance e a poesia, ou a arte em geral, pois nenhuma outra fonte, nem nenhuma estatística, lhe darão o contexto afectivo nem a dimensão humana em que se inscreve o assunto em análise.

Várias razões justificam o privilégio atribuído à medicina, entre elas o facto de ser uma técnica que lida directamente com as pessoas, fala com elas (ou falava) e essa prática constituir uma grande narrativa popular, que ocupa lugar central na conversação, sobretudo a partir da maior idade. As experiências mais felizes e mais lancinantes da nossa vida, por consequência aquelas que permanecem na memória, com ou sem registo escrito, relacionam-se com a prática médica: nascimento e morte, em contextos que divergem tanto como os protagonistas, integrando-se no primeiro caso em estruturas literárias como a do mistério da identidade, ou em grandes temas como o messianismo, no segundo em géneros como o policial. A medicina não trabalha com a abstracção distanciadora da espécie, sim com os indivíduos humanos. Uma boa parte do cientismo adstrito à literatura e pintura naturalistas vem da medicina, ou de uma das ciências que lhe servem de alicerce, a anatomia. Essa anatomia com carga de pathos imensa, pois não é fácil entregar corpos a exames profanos. O corpo é sagrado, daí a resistência que as sociedades sempre têm levantado ao uso dos cadáveres humanos para fins científicos.

O físico foi personagem principal no teatro de Gil Vicente, de Molière, etc.. Muitos ficcionistas são médicos, assunto e motivos inspiradores não lhes faltam, a sua experiência humana é muito rica - situam-se no extremo da lírica, em geral solitária e alterífuga. A medicina vincula-se aos outros, às suas maiores tragédias e dramas, e bem sabemos como a dor é mediática. Cada doente é um caso, dizem os médicos, cada doente é potencial protagonista de uma história susceptível de sensibilizar grandes audiências. A medicina escreve uma história completa, movida pela dor ou pela alegria, que envolve um diagnóstico, e deste modo o desvendar de um segredo inicial, um desenvolvimento para epílogos tão drásticos como a morte ou a sobrevivência, e convoca uma série de personagens secundárias para adjuvantes: enfermeiros, paciente e familiares, analistas, etc..

De entre as centenas ou milhares de doenças que se conhecem, uma é figura central na literatura mundial, por ter ceifado muitas vidas, sim, mas sobretudo por ter ceifado os próprios artistas, autores dessa literatura. A morte pela tísica cobre todo o século XIX, apagando poetas na juventude, como António Nobre e Cesário Verde, em Portugal, entre centenas de outros em todo o mundo, pois era ela então a primeira responsável pela taxa de mortalidade.

Ora é justamente da tuberculose que se ocupa a investigadora da Casa de Oswaldo Cruz, em Manguinhos, no Rio de Janeiro, Dilene do Nascimento. Centrando-se embora na história de uma instituição, a Fundação Ataulpho de Paiva, cuja recriação, com o nome de Liga Brasileira contra a Tuberculose, remonta a 1900, e na figura do seu promotor, Ataulpho de Paiva, o móbil do ensaio é de facto a doença. É ela a protagonista que ceifa sem olhar a alto e baixo, mas cujo braço atinge de preferência as zonas urbanas degradadas, sem habitações condignas, falhas de saneamento básico e as pessoas de alimentação bastante e sadia. Nos bairros pobres, propagava-se com rapidez. É ela o inimigo a vencer, o que não se revela fácil, pois a dimensão que assume é a de problema social e político, e a narrativa subjacente ao ensaio mais não faz do que evidenciar as estratégias e batalhas que levaram ao seu aniquilamento, os aliados convocados para a luta, entre eles o Estado, até à sua identificação como doença infecto-contagiosa, e descoberta de cura. Antes, por matar familiares que viviam na mesma casa, era tomada por hereditária.

Dilene do Nascimento começa logo por nos dar um desgosto, ao despoetizar a morte de amor do romantismo como tuberculose: "No início do século XIX, quando se construiu uma concepção romântica da doença, a tísica representava a expressão física dos sentimentos, reconhecida no campo artístico e literário como a doença da paixão". Tal como a ida à Lua não retirou a esse espelho da noite a magia que sempre terá, assim continuarão a comover-nos os jovens que nos romances morrem de tanto sofrer, até porque sim, é de sofrimento que morrem.

No desespero da altíssima taxa de mortalidade - por exemplo, em 1912, registavam-se mais de 10 óbitos por dia no Rio de Janeiro causados pela tuberculose - , surge uma instituição filantrópica, a Liga Brasileira Contra a Tuberculose, que exige à autora uma explanação do que seja a filantropia, por oposição à caridade. Eis um assunto que interessa a todos, e não apenas aos que fazem História e Filosofia das ciências, por isso citemos:

É importante percebermos a concepção de filantropia na virada do século, pois a Liga Brasileira contra a Tuberculose se inscreve nesse campo. Os trabalhos que de alguma forma discutem a filantropia estabelecem uma distinção entre esta e a caridade, entendida como uma assistência desorganizada aos pobres, sem "cientificismo".
A prática caritativa, até o século XVIII, estava basicamente sob domínio da Igreja Católica, que estabelecia uma divisão moral da sociedade entre os que tinham o poder de perdoar e os que precisavam ser perdoados. Tinha por objetivo " aliviar a dor temporária para salvar os seus semelhantes e assegurar a felicidade eterna após a morte" . Propunha a tutela dos ricos sobre os pobres, o que conduziria os ricos ao reino dos céus.
Num momento em que a sociedade busca seu desenvolvimento econômico nos moldes capitalistas e o trabalho começa a ser visto como fonte de riqueza, a tutela dos ricos sobre os pobres passa a ser inadequada. Os homens precisam ser livres para vender sua força de trabalho e receber, por recompensa, o auto-sustento - isso deve ocorrer sob sua responsabilidade individual.
As diferenças no grau de apropriação dos meios necessários ao auto-sustento, quer dizer, a desigualdade das condições de subsistência, eram vistas como conseqiiência natural do crescimento populacional. Mas seus efeitos, nas grandes cidades, tinham que ser de alguma forma controlados para não se tornarem óbices ao desenvolvimento do sistema de economia livre.
No decorrer do século XIX, ficou evidente que as instituições caritativas privadas ou religiosas eram incapazes de lidar efetivamente com a questão da pobreza ou aspectos dela. A concepção de que o pobre tem direito a ser socorrido pelo rico ou poderoso e este, conseqiientemente, tem obrigação moral de socorrer os pobres foi combatida na Europa principalmente a partir da segunda metade do século XIX, segundo análise de Topalov.
Era preciso superar a assistência indiscriminada e distinguir o pobre "válido" do pobre "inválido" para o trabalho, isto é, "distinguir os pobres que são duravelmente pauperizados e os operários regulares, provisoriamente em dificuldades".
Tornou-se necessário operacionalizar essa distinção. O pauperismo, em seus diversos aspectos, passou a ser objeto de estudo de ciências como a medicina, o direito, a economia, a sociologia e outras, que dessa forma forneceram às elites sociais e políticas os instrumentos que possibilitaram a classificação das populações. Mas não só a classificação. Na verdade, as técnicas científicas foram incorporadas pela classe dominante visando a uma intervenção concreta no meio social e, com isso, ao controle de uma situação que as ameaçava sobremaneira e uma adequação da vida urbana às novas condições sociais e económicas vigentes.
Nesse momento surge a filantropia como modelo assistencial repousado no "cientificismo", que estaria capacitado a substituir o modelo caritativo. Utiliza ainda o discurso da moralidade não mais para alcançar o reino dos céus mas para distinguir da noção de direito social. Como argumenta Tocqueville, a assistência como dever moral e não como direito permite excluir o Estado da tarefa de organizar a felicidade pública".
A idéia da responsabilidade do Estado nas questões sociais torna-se o debate predominante em vista dos prejuízos causados pela industrialização a requererem reparação social. Enquanto uns consideravam que todo dever social era um dever da sociedade e, afinal do Estado, outros, economistas e liberais, defendiam o dever social como um dever do homem em sociedade e não da própria sociedade.
Esse debate remete à discussão da assistência pública e privada como práticas complementares para o enfrentamento das questões sociais advindas da desigualdade. Passa a predominar cada vez mais a opinião de que a assistência aos indigentes era uma obrigação da sociedade a ser cumprida pelo Estado.
No contexto da discussão, sobretudo européia, sobre o combate aos problemas sociais para minimizar suas conseqiiências, as elites sociais brasileiras também discutem e assumem papéis reformadores.

A Liga começa por atacar as condições sociais em que vivia a maior parte das vítimas, fazendo desinfecção das casas, desenvolvendo várias iniciativas, entre elas a propaganda, que dá lugar a um projecto de educação sanitária da população através do que hoje é utilizável como corpus científico e também artístico - o panfleto, a imagem publicitária. Porém nenhuma medida foi eficaz contra a doença, apesar de eventualmente ter melhorado a vida de algumas pessoas. A tuberculose só foi erradicada, e não definitivamente, pela BCG, ainda hoje obrigatória, a partir de 1925, quando se começou a vacinar os recém-nascidos e a produzir a própria vacina nos laboratórios brasileiros.

É um exemplo de óptimo trabalho de investigação em História das instituições científicas este livro de Dilene do Nascimento, bem documentado e desenvolvido, com a aliciante do acervo fotográfico, que nos deixa por vezes a sonhar, à distância da tragédia oculta sob a graciosidade da belle époque.
Maria Estela Guedes

Propaganda anti-tuberculose