Várias razões justificam o privilégio atribuído à medicina, entre elas o facto de ser uma técnica que lida directamente com as pessoas, fala com elas (ou falava) e essa prática constituir uma grande narrativa popular, que ocupa lugar central na conversação, sobretudo a partir da maior idade. As experiências mais felizes e mais lancinantes da nossa vida, por consequência aquelas que permanecem na memória, com ou sem registo escrito, relacionam-se com a prática médica: nascimento e morte, em contextos que divergem tanto como os protagonistas, integrando-se no primeiro caso em estruturas literárias como a do mistério da identidade, ou em grandes temas como o messianismo, no segundo em géneros como o policial. A medicina não trabalha com a abstracção distanciadora da espécie, sim com os indivíduos humanos. Uma boa parte do cientismo adstrito à literatura e pintura naturalistas vem da medicina, ou de uma das ciências que lhe servem de alicerce, a anatomia. Essa anatomia com carga de pathos imensa, pois não é fácil entregar corpos a exames profanos. O corpo é sagrado, daí a resistência que as sociedades sempre têm levantado ao uso dos cadáveres humanos para fins científicos. O físico foi personagem principal no teatro de Gil Vicente, de Molière, etc.. Muitos ficcionistas são médicos, assunto e motivos inspiradores não lhes faltam, a sua experiência humana é muito rica - situam-se no extremo da lírica, em geral solitária e alterífuga. A medicina vincula-se aos outros, às suas maiores tragédias e dramas, e bem sabemos como a dor é mediática. Cada doente é um caso, dizem os médicos, cada doente é potencial protagonista de uma história susceptível de sensibilizar grandes audiências. A medicina escreve uma história completa, movida pela dor ou pela alegria, que envolve um diagnóstico, e deste modo o desvendar de um segredo inicial, um desenvolvimento para epílogos tão drásticos como a morte ou a sobrevivência, e convoca uma série de personagens secundárias para adjuvantes: enfermeiros, paciente e familiares, analistas, etc.. De entre as centenas ou milhares de doenças que se conhecem, uma é figura central na literatura mundial, por ter ceifado muitas vidas, sim, mas sobretudo por ter ceifado os próprios artistas, autores dessa literatura. A morte pela tísica cobre todo o século XIX, apagando poetas na juventude, como António Nobre e Cesário Verde, em Portugal, entre centenas de outros em todo o mundo, pois era ela então a primeira responsável pela taxa de mortalidade. Ora é justamente da tuberculose que se ocupa a investigadora da Casa de Oswaldo Cruz, em Manguinhos, no Rio de Janeiro, Dilene do Nascimento. Centrando-se embora na história de uma instituição, a Fundação Ataulpho de Paiva, cuja recriação, com o nome de Liga Brasileira contra a Tuberculose, remonta a 1900, e na figura do seu promotor, Ataulpho de Paiva, o móbil do ensaio é de facto a doença. É ela a protagonista que ceifa sem olhar a alto e baixo, mas cujo braço atinge de preferência as zonas urbanas degradadas, sem habitações condignas, falhas de saneamento básico e as pessoas de alimentação bastante e sadia. Nos bairros pobres, propagava-se com rapidez. É ela o inimigo a vencer, o que não se revela fácil, pois a dimensão que assume é a de problema social e político, e a narrativa subjacente ao ensaio mais não faz do que evidenciar as estratégias e batalhas que levaram ao seu aniquilamento, os aliados convocados para a luta, entre eles o Estado, até à sua identificação como doença infecto-contagiosa, e descoberta de cura. Antes, por matar familiares que viviam na mesma casa, era tomada por hereditária. Dilene do Nascimento começa logo por nos dar um desgosto, ao despoetizar a morte de amor do romantismo como tuberculose: "No início do século XIX, quando se construiu uma concepção romântica da doença, a tísica representava a expressão física dos sentimentos, reconhecida no campo artístico e literário como a doença da paixão". Tal como a ida à Lua não retirou a esse espelho da noite a magia que sempre terá, assim continuarão a comover-nos os jovens que nos romances morrem de tanto sofrer, até porque sim, é de sofrimento que morrem. No desespero da altíssima taxa de mortalidade - por exemplo, em 1912, registavam-se mais de 10 óbitos por dia no Rio de Janeiro causados pela tuberculose - , surge uma instituição filantrópica, a Liga Brasileira Contra a Tuberculose, que exige à autora uma explanação do que seja a filantropia, por oposição à caridade. Eis um assunto que interessa a todos, e não apenas aos que fazem História e Filosofia das ciências, por isso citemos:
A Liga começa por atacar as condições sociais em que vivia a maior parte das vítimas, fazendo desinfecção das casas, desenvolvendo várias iniciativas, entre elas a propaganda, que dá lugar a um projecto de educação sanitária da população através do que hoje é utilizável como corpus científico e também artístico - o panfleto, a imagem publicitária. Porém nenhuma medida foi eficaz contra a doença, apesar de eventualmente ter melhorado a vida de algumas pessoas. A tuberculose só foi erradicada, e não definitivamente, pela BCG, ainda hoje obrigatória, a partir de 1925, quando se começou a vacinar os recém-nascidos e a produzir a própria vacina nos laboratórios brasileiros. É um exemplo de óptimo trabalho de investigação em História das instituições científicas este livro de Dilene do Nascimento, bem documentado e desenvolvido, com a aliciante do acervo fotográfico, que nos deixa por vezes a sonhar, à distância da tragédia oculta sob a graciosidade da belle époque.
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