AS RUAS têm por nome as datas das aparições, os hotéis chamam-se Verbo Divino, as tabacarias, Francisco, os mercados, Lúcia, há procissões das velas todas as noites, as lojas não fecham nem no dia do Senhor, algumas são especializadas em joelharia, pelo cimento do santuário arrastam-se de joelhos almas que prometem a Deus este mundo em troca disto ou do outro, um cartaz ameaça que vão muitas almas para o inferno se não rezarmos por elas, e nós perguntamos : O que é isto?!
mas não para rezar. Rezar?! Mas que ideia fazemos nós de Deus para o aproximarmos de nós a ponto de Ele encostar a orelha às nossas lamentações?
Reflectir, sim, já que estávamos em lugar sagrado. Lugar sagrado?! Um império do corpo despedaçado em bocados de cera, santaria a pontapé, topónimos e antropónimos santos, santos, santos, santos - pode haver tempo e lugar sagrados para este estendal de idolatria?
DEUS ENTRE NÓS
"Só o islamismo é estritamente monoteísta" - eis uma frase que correu durante a semana teológica organizada pelo Instituto S. Tomás de Aquino, oriunda das investigações filológicas de Frei Francolino, em Israel. Que o cristianismo é um politeísmo todos o sabemos, sempre foi essa uma das acusações que lhe fizeram judeus e muçulmanos. E que sabemos nós de Deus para o julgarmos singular em vez de plural ou masculino em vez de neutro ou feminino? O que dizemos de Deus é o que emerge à tona das palavras, é o Deus como fenómeno de linguagem, o Deus criado pelo homem. Não Aquele de quem nada sabemos.
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Uma loja como tantas vende melões, quinquilharia e outras bugigangas como imagens de santos |
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A atracção da vitrina na loja de santos não é um santo
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De joelhos, atravessam a porta num muro que não separa o ocidente do oriente nem o outro deste mundo das lamentações |
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Ao lado da capela das aparições, podia ser a churrasqueira, mas não : é o lugar onde se queimam as promessas de velas, como se Deus precisasse, gostasse, estivesse à espera |
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Em Fátima também apareceram anjos, sempre debaixo da azinheira (Quercus ilex) abundante no local |
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Precisará Deus que lhe peçam, s.f.f.?
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Parece que não vai haver lugar para Lúcia, a protagonista, a menos que venha a substituir Fátima |
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Um ou muitos não faz diferença para Deus, porém já faz diferença para os homens a banalização, a ordem profana do que devia manter-se num registo de distanciamento e de oportunidade. Não é sagrado o tempo contínuo nem o espaço tão pródigo em marcas que anulam a possibilidade de vivermos a ruptura que instaura no lençol do quotidiano esse fenómeno a que Mircea Eliade dava o nome de mysterium tremendum.
Há no cristianismo uma humanidade, uma capacidade de perdão e bondade que lhe vêm da sua própria essência - Cristo é fruto do casamento entre o humano e o divino - que não encontramos numa religião ferozmente depurada e estilizada como o islamismo, que não consente qualquer intermediário entre Deus e os homens, muito menos a iconografia com tal função. A imagem faz falta, cobre uma distância que pode ser tão grande que torna a religião perfeitamente abstracta e codifica os rituais até os congelar em actos mecânicos. Porém a excessiva aproximação tem riscos : quanto mais a distância é curta, mais o radicalmente diferente deixa de o ser, mais Deus é supostamente achável no rosto dos outros, mais outros oferecem o rosto, mais Lúcias, mais Franciscos, e mais o rosto que beijamos ou nos recusamos a beijar cheira a cera, não sendo mais do que estearina.
Do latim fide, confiar, dar crédito, ter como verdadeiro. Por conseguinte, fé será um sinónimo de crença.
No caso de Fátima, e mesmo noutros, qual o objecto da fé e da crença? Não há registo intelectual nem emocional que suporte a ideia de que Deus ou um seu emissário venha à Terra para declarar que "muitas almas vão para o inferno por não haver quem reze por elas". Rezas são palavras, palavras são a frase informativa. Descarrega-se na linguagem uma responsabilidade de transmitir verdades que ela não tem, a linguagem não é responsável por as almas irem ou não para aqui ou para ali, a linguagem não tem poder para salvar, a menos que tudo se passe ao rés da terra, inter pares, como n"As mil e uma noites", em que Xerazade se salva da morte por saber contar histórias.
Como poderia a linguagem ser moeda de troca com o divino, e porquê? Porque não temos nada de mais elevado, certamente. Na relação com o Desconhecido, usamos o que temos de mais alto, o verbo que nos religa uns aos outros, criador de cultura e religião. Mas isto é um ponto de vista humano. A título de que revelação, por tão bela como a de Gabriel a Muhammad, Abençoado seja o seu nome, havia Deus de ter na palavra tanta fé como os humanos? Pois se Deus, para comunicar connosco, e isto sempre do nosso ponto de vista, tem de recorrer a intermediários! Se recorre, é porque os seus meios de comunicação não coincidem com os nossos. Não há memória de que algum Enviado tenha vindo buscar os nossos Camões, Dante ou S. João, só há memória de querer orações, na maior parte elogiosas. Precisará o Sublime que os seus servos lhe reconheçam o esplendor? O elogio aceita-se de quem sabe e por saber está ao nosso nível ou acima dele, não de quem não sabe. O elogio de quem não sabe o que diz agasta, não envaidece nem estimula. E precisaria Deus de ser estimulado como criança a quem não apetece muito fazer os trabalhos de casa?
Acreditar em quê? No que Lúcia disse que viu e ouviu? E só ela, pelos vistos, ouviu e viu?
De cinco dias em Fátima ficaram duas revelações, não divinas, e comezinhas até, próprias de quem chega depois de já todos as terem tido : a Igreja não sabe o que é a ressurreição nem a vida eterna, e outro veio afim, nascido sem grandes filosofias num grupo de trabalho que reflectia sobre a essência dos textos messiânicos, e a essência é essa, a vida eterna após a ressurreição, e esta após o fim dos tempos. Que a vida melhor que hoje levamos, em relação por exemplo a 1917, época das aparições, em parte se deve ao contributo da ciência e da tecnologia, mas não chega. Por muito que os bens materiais nos sejam berço e mesmo de ouro, a matéria não chega. Falta algo de definitivamente diverso. Ora o grupo não exprimiu essa falta com os esperados termos de fé e crença. Nem fé nem crença, esperança, sim. A esperança voga, sem leme, numa pedra esmeralda. A nenhum compromisso se obriga, é apenas uma porta aberta ao tremendamente Estrangeiro. Porém mais graálica do que a palavra smaragdínea, foi uma outra, normal numa oração de Freud ou Lacan, mas não para os meus ouvidos distanciados dos problemas comuns da comunidade cristã: Desejo.
O que falta é Deus, é de Deus que a comunidade sente desejo.
O desejo e a esperança são inteligíveis, partilháveis, religantes. É esse o lugar de onde falo, já que fé e crença são palavras esvaziadas no nosso tempo. Falemos de desejo de Deus e escreveremos certamente obra assinalável. Com a fé e crença que em Fátima fazem promessas deixando rastos de sangue no lajedo, apetece pedir ao Outlook que mostre aquela frase bendita às vezes: "Não existem novas mensagens".
Pai Nosso, não permitas que Lúcia mande mais mensagens em Teu nome.
Ociosa prece, Fátima é santuário do futuro, no turismo e fanfarras do religioso está a semente, não deste lado, dos que desejam um Messias absoluto ou do Absoluto não desejam absolutamente nada.
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