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MARIA ESTELA GUEDES
TEATRO NO CIBERESPAÇO

Comunicação apresentada no I Encontro de Autoras de Teatro
Sociedade Portuguesa de Autores, Lisboa, 21-23 de Janeiro de 2005

Agradeço à Escola de Mulheres, organizadora do I Encontro Nacional de Autoras de Teatro, o convite para participar nestes três dias de actividades. Fiquei contente por se terem lembrado de mim, pois o meu contributo para o teatro é pequeno. Como autora de textos originais, cinge-se aos guiões de teatro e vídeo do multimédia O lagarto do âmbar, exibido no ACARTE - Fundação Calouste Gulbenkian - em 1987. O espectáculo teve direcção e música de Alberto Lopes, realização de vídeo de Rui Castello Lopes, cenário de Xana, figurinos de Eduarda Abbondanza, e representações ao vivo de João Grosso, Ângela Pinto, Lucinda Loureiro, Maria José Camecelha e João Anjos. Como era um multimédia, recorria a vários meios tecnológicos, e por isso estava inserido no programa interdisciplinar "Arte e Tecnologia".

Vou recordar alguns aspectos para estabelecer uma conexão entre a tecnologia relatada e utilizada n' O lagarto do âmbar e a que trouxe agora em título, a informática. O teatro na Internet, vamos dar-lhe o nome de neteatro, a ser viável, e eu creio que sim, pelo menos no plano experimental, assenta nas tecnologias do ciberespaço, maioritariamente informáticas. Se há alguma evidência para mim no destino do teatro é a de que ele deve utilizar os recursos que em todas as épocas lhe vão oferecendo as novas tecnologias. Por consequência, uma das respostas que dou à pergunta deste painel, "Que teatro para o século XXI?", é Ciberteatro , um teatro que já existe no ciberespaço, mas eu não cultivo. Em Portugal, é Pedro Barbosa quem trabalha com textos de teatro gerados por computador. Outra resposta será então Neteatro , um teatro para Internet, que não sei se existe, mas me interessaria contribuir para que existisse. Vejo-o como espectáculo de câmara, em miniatura, usando as tecnologias informáticas, mas sem substituir o dramaturgo pelo computador. Terceira e última resposta à pergunta "Que teatro para o século XXI?" é aquela em que de facto tenho informações úteis para divulgar, mas que não carecem de um grande discurso. Dizem respeito aos textos de teatro que estão em linha na Internet, à espera de serem representados ao vivo nos palcos.

Não me esqueci de que o potencial crítico do teatro depende do curso dos acontecimentos na vida, sociais e políticos. Simplesmente, o teatro do século XXI, levado à cena em campanhas eleitorais ou antes disso, não precisa que nos preocupemos com o seu destino. Basta assistir aos telejornais para verificarmos que os actores são incansáveis, não há semana em que não nos presenteiem com mais um espectáculo.

O lagarto do âmbar mostrava o que ia acontecendo em dado canal de televisão, num planeta distante da Terra. Recorreu-se à tecnologia do vídeo para representar as imagens de televisão. Parte do vídeo provinha de outra tecnologia, diapositivos feitos por mim com elementos dos Três Reinos: ervas, penas, areias, etc.. Os slides eram projectados e depois filmados em vídeo. Como as sementes e as areias estavam entre dois quadradinhos de plástico, o calor da máquina de projectar tendia a derreter o slide, de maneira que as matérias contidas nele começavam a agitar-se, o que proporcionou uma filmagem de slides animados. O acaso costuma ser bom companheiro dos criadores.

Além dessas tecnologias, houve outras certamente, as habituais na montagem de um espectáculo, desde o design de luz até ao carrinho que atravessava a cena, guiado por João Grosso, a simular o computador-electrodoméstico que ele era como personagem. Saliento ainda a música de Alberto Lopes, gerada em sintetizador.

Em suma, havia uma forte componente tecnológica, vinda não só das máquinas em cena, como também de artes geradas com o auxílio delas. As máquinas contracenavam com uma dimensão naturalística no espectáculo, já evidente no título, O lagarto do âmbar : o âmbar é uma matéria de origem orgânica, parecida com a resina, no interior do qual às vezes aparecem fósseis - formigas, borboletas, plantas, lagartos, etc. - que se podem ver à transparência. O filme de Spielberg, "Parque Jurássico", também faz referência aos fósseis do âmbar. A beleza e o significado destes objectos agem fortemente sobre a imaginação. Dando a mão à História Natural, caminhava assim a tecnologia, e com ela o drama da personagem principal, um aspirador que se transmutava em ser humano, à força de muito sofrer.

A minha forma habitual de estar na arte continua mediada pelas máquinas, e neste momento mais do que nunca, pois sou webmaster do TriploV, um servidor em que há colaborações muito variadas: da ciência à literatura, passando pela música e artes visuais, e também teatro. E era aqui que eu queria chegar, à tecnologia do século XXI, passível de proporcionar ciberteatro, neteatro, ou, ao menos, textos para teatro em linha na Internet.

Pesquisando no Google, encontramos meia dúzia de sítios que exibem o rótulo "ciberteatro". Entrando neles, deparamos com propostas diversas, desde representação em parlatórios até às sugestões eróticas. E encontramos o ciberteatro em sentido próprio, como é exemplo a peça "Alletsator - XPTO.Kosmos.2001", ópera electrónica de Pedro Barbosa (1). "Alletsator" é um trabalho provocatório, "Para actores, músicos e outros animais". A provocação não está nos animais, sim no facto de o dramaturgo ter sido substuído por pc gerador de textos, de os actores terem sido substituídos pelos textos gerados pelo computador, e pelo facto de a ópera ser muda. O que se vê no monitor são segmentos de discurso escrito. Isso, em termos de efeito visual, não será muito diverso do dialógo corrido num chat, nem dos textos para teatro apresentados como tal na Internet. Diferente, e por isso mais perto do teatro como o concebemos geralmente - pessoas a falar e a fazer alguma coisa - é o espectáculo erótico, e estou a pensar na webcam.

A webcam, que ainda não conheço, é a máquina de filmar que envia as nossas imagens para o interlocutor, quando usamos a Internet para telefonar. Aparece muito na publicidade de sítios eróticos. As possibilidades que se adivinham no sistema são tentadoras, concebe-se nele a semente do neteatro - teatro na Internet, teatro pobre, como o é grande parte da arte contemporânea, mas que convém experimentar.

No TriploV, criei um directório intitulado "Teatro". Não é ciberteatro à maneira do que faz Pedro Barbosa, nem é esse neteatro que não sei se já existe ou ainda não. É algo muito mais modesto - textos para teatro a que dei um visual agradável, dentro de web photo galleries. Alguns têm som, fornecido em ficheiros de extensão .midi, com distribuição gratuita na Internet. Só por acaso o som se relaciona com os textos. Tecnologia pobre, como se nota, mas com a classe de bons autores, bons textos e bons programas. Um deles, inédito em papel e em palco, Ofício das trevas, assinado por mim (2). Uma cena terá leitura encenada por Fernanda Lapa no atelier de teatro deste encontro. Será certamente algo mais parecido com teatro do que aquilo que fiz. De qualquer modo, não me desagrada o que podem apreciar no ciberespaço: os textos, a música lindíssima de Mário Montaut, um jovem compositor brasileiro cujas canções podem ouvir no TriploV, e galeria de imagens que tiveram supervisão de Magno Urbano, um óptimo cyberdesigner, com vários CDs e livros publicados.

Precisamos de rentabilizar esteticamente a escassez de recursos, é necessário investir na falta de meios. Porque a verdade é esta: se o que está exposto, embora tenha música, texto dramático e um visual cénico, não é teatro, nem concerto, nem exposição de artes visuais, ficando mais próximo de uma instalação, já a dificuldade de o catalogar em género revela a sua novidade.

Desta mesma originalidade beneficia Cunha de Leiradella, consagrado autor luso-brasileiro. O autor integra-se a si mesmo na genealogia do teatro do absurdo. Estão quatro peças dele em linha: a tragédia Laio ou o Poder, a mini-obra Entendimento, a peça em um acto O homem calado, e As Pulgas, uma divertida comédia.

Fico à espera de quem se interesse em levar à cena estas obras, ou em dar-lhes melhor tratamento como neteatro. Enquanto não aparecem propostas, termino a minha intervenção de forma teatral, representando na totalidade uma das peças de que falei, Entendimento, de Cunha de Leiradella (3).

Com apenas duas falas, "Entendimento" mostra o drama de um homem que a mulher troca por companheiro mais apetecível, uma árvore. A peça é concebida a partir de uma panorâmica de abertura, grandes planos de mãos e rosto intercalados, e um fade in final. Muito fácil então de encenar para neteatro. E só com três actores e uma webcam, fica muito barata. No TriploV, resolvi todos os problemas de produção fazendo nu integral da nossa situação como autores e autoras: eliminei os actores, a webcam e a banda sonora. Fiquei só com o texto e com a palmeira.

 

ENTENDIMENTO

CUNHA DE LEIRADELLA

Dois amantes, idade a critério da produção. A mulher, imóvel, encostada no tronco de uma palmeira imperial, olha a sombra projetada no chão.

São 16:00 horas, acabadas de badalar .

HOMEM - Eu te amo, tu não me amas, logo nós não nos amamos.

A mulher continua imóvel, sem responder. Em detalhe, vêem-se os dedos afagando a casca rugosa da palmeira.

HOMEM - Tu não escutaste.

A mulher continua na mesma posição. Apenas os lábios se abrem num ligeiro sorriso. Que o homem não nota, ocupado em se perguntar por quê que ela não tinha escutado, se ambos falavam a mesma língua e nenhum deles era surdo.

FADE IN

 
(1) http://www.pedrobarbosa.net/alletsator-web/alletsator-web-molduraf.htm

(2) http://triplov.com/estela_guedes/oficio_das_trevas

(3) http://triplov.com/leiradella/entendimento/index.htm