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MADALENA FÉRIN E O PRÍNCIPE DAS TREVAS - MARIA ESTELA GUEDES |
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"Um escorpião coroado de açucenas" não traz à obra de Madalena Férin nada de radicalmente inesperado, pelo menos do ponto de vista da classificação em géneros. Nascida na modernidade, a autora beneficia da liberdade conquistada pela arte nesse espaço de transgressão. Mas há algo de diferente e muito pessoal neste livro do ponto de vista temático, apesar de a temática mergulhar as raízes nas origens da cultura. Alguns pontos significativos dela na literatura são Rabelais, Gil Vicente, o Marquês de Sade, e próximo de Sade um surrealista, Gengenbach, cuja conferência, “Satã em Paris”, apresentada por André Breton numa sociedade teosófica, escandalizou toda a assistência. Deste ex-seminarista jesuíta foi publicada em Portugal a obra intitulada “A experiência demoníaca” (1). Extraio do primeiro volume um fragmento de publicidade a uma revista surrealista dirigida por Benjamin Péret, para melhor ambientar a minha apresentação de Satã na Casa dos Açores: Se você é, de qualquer modo, inimigo das soluções positivas, se os métodos actuais de introspecção lhe parecem inadequados aos seus objectivos, se está prestes a penetrar no horizonte inexplorado do Sonho, leia “A Revolução Surrealista.” Agora que temos aberta diante de nós a porta do sonho, e não outra mais difícil de transpor por mim, direi que uma das relações estabelecidas por “Um escorpião coroado de açucenas” com as obras mencionadas é o desnudamento. Um desnudamento do desejo, com tudo o que ele implica de coragem, especialmente numa mulher, apesar de vivermos em tempos de liberdade sexual. Algumas imagens mais marcantes do livro, passíveis de múltiplas leituras, como toda a linguagem poética, ou como todo o discurso do imaginário, são aquelas que sugerem a impossibilidade de tirar a roupa, e por conseguinte revelam um Eros agrilhoado pelas censuras e tabus. São imagens estatuárias, paralisadas como a mulher cuja visão retroactiva percebeu a destruição de Sodoma e Gomorra. Em vez do desnudamento, há uma petrificação da roupa: “dançando sempre em roda/ do vestido fizemos as paredes”. Ou então: “a liquidez do abismo/ num vestido de pedra”. Entre poderes antagónicos, o discurso de Madalena Férin é em geral apocalíptico, e lembro outro título seu, “Bem-vindos ao caos”. Se a autora usufrui dos benefícios da liberdade de expressão, outras forças a acorrentam. No livro de que agora me ocupo, os tópicos satânicos participam do domínio do símbolo, portanto detêm uma função universalizante própria do psiquismo humano, e não apenas da pessoa biográfica que assina a obra e eventualmente enuncia. Isto pressupõe que a autora escreve cegamente, sob um impulso que a domina, o que aliás está de acordo com os princípios surrealistas de libertação do inconsciente através da escrita não vigiada pela razão. De outra parte, o universo apocalíptico aparece neste livro no seu sentido próprio e de forma explícita, isto é, “Um escorpião coroado de açucenas” estabelece anáforas variadas com o Apocalipse segundo São João, e é dessa fonte que jorra boa parte da imagética luciferina. Recordo que a palavra “apocalipse” quer dizer “iluminação”, antes de informar que as citações mais importantes que a autora faz desse livro integrante da Bíblia, que por sinal é uma das Luzes maçónicas, provêm do II capítulo, “Revelação do sentido da História”, parte 9. Refresquemos a memória com alguns fragmentos: 9. Quinta e sexta trombetas – Quando o quinto anjo tocou a trombeta, vi uma estrela do céu cair sobre a terra e foi-lhe entregue a chave do poço do Abismo. Abriu o poço do Abismo e subiu dele uma fumarada semelhante à de uma grande fornalha. O Sol e o ar escureceram-se com a fumarada do poço. E, do fumo, saíram gafanhotos que se espalharam pela terra; foi-lhes dado um poder semelhante ao dos escorpiões da terra. Foi-lhes dito que não danificassem a erva da terra, toda a verdura e todas as árvores mas tão somente os homens que não tivessem o selo de Deus na sua fronte. Não Ihes foi permitido matá-Ios mas unicamente atormentá-los durante cinco meses. E o seu tormento era semelhante à picada de um escorpião. Nesses dias, os homens procurarão a morte, mas não a encontrarão; desejarão morrer, mas a morte fugirá deles. Os gafanhotos tinham a aparência de cavalos aparelhados para o combate; tinham na cabeça algo semelhante a coroas douradas e a sua fisionomia era semelhante à dos homens; tinham cabelo semelhante ao cabelo das mulheres e os seus dentes eram semelhantes aos dos leões. O seu tórax era parecido a uma couraça de ferro e o rumor das suas asas era semelhante ao estrépito de carros de muitos cavalos a correr para a batalha. Tinham também caudas munidas de aguilhões semelhantes às do escorpião e, nas caudas, tinham o veneno para danificar os homens durante cinco meses. Sobre eles reina o anjo do Abismo cujo nome, em hebraico, é «Abadon» e em grego «Apolion» (...) (2). “Um escorpião coroado de açucenas” já no título propõe então as suas principais figuras de imaginário, que são três: uma infernal, oriunda do Apocalipse – o escorpião; a segunda, das zonas de passagem - a coroa; e uma terceira, inesperada no contexto diabólico - as açucenas. A açucena, Lilium candidum, é outro nome do lírio branco. Como declara o seu nome científico, é insígnia de candura, pureza, virgindade. Se o escorpião se vincula ao satanismo, as açucenas provêm em linha directa da santidade das igrejas. O valor da coroa depende da cabeça em que está pousada, e em geral as cabeças mudam, ficam os anéis, por isso digo que ela é uma figura das zonas de passagem, um anel que liga hierarquias, ou um instrumento de transmutação, se preferirem. No Apocalipse abundam as coroas, de metal e de cornos, postas até na cabeça de cidades como Babilónia, e já vimos os gafanhotos também coroados. Quando Madalena Férin troca os chifres do diabo pela coroa de açucenas das santas, tanto diaboliza as santas como santifica o Príncipe das Trevas. Mas esse é sobretudo um gesto pessoal que torna pueril o significado dos cornos, é um gesto que arreda o falo do centro em que a nossa cultura o mantém ainda, remetendo-o para a esfera do deus-menino, Eros. O livro contém três partes, a saber: “O bosque de vidro”, com 15 poemas, “A montanha suspensa”, com 18, e “A porta do esplendor”, com 10, perfazendo 43 no total, o que dá 5 em resultado numerológico, porque me enganei nas contas. Sem ciência nenhuma de números, como se nota, logo vemos que cinco são os dedos da mão que escreve, ou dedos da mão que tece uma teia de palavras que oscila entre o logos e o mito, como vem expresso logo no segundo poema: “a teia oscila/ entre o logos e o mito// é na teia que habito”. Ora quem faz teias é Aracne, a tecedeira que desafiou Atena e esta transmutou em aranha. A teia é imagem habitual do poeta como agente cosmificador, ordenador do caos, ou desejoso disso, tema bem próprio de Madalena Férin, como já referi. N' O bosque de vidro, que lembra o “mar de vidro, transparente como o cristal ”, do Apocalipse, predominam cenários druídicos e de rito satânico – “ardem os círios/ na mesa de veludo”, por exemplo. Alude-se a uma “dança de possessos”, aparece um “altar portátil” e declara-se que a orgia é presidida pelo diabo . Várias situações de rito sexual surgem ao longo do livro, em que não faltam as danças, as máscaras de animais, nem os animais típicos da demonologia. Um deles, a serpente, é beijada num dos poemas finais, o que nos remete para os cultos ofitas. Outras alusões ao Sabat são o sangue bebido, o selo ou marca do diabo, a frase bem óbvia “celebram uma missa no meu corpo”, os filtros, os encantamentos do anagrama, escrita invertida que representa toda a inversão de valores do satanismo, e necessariamente os actos sexuais praticados como rito: “à meia-noite/ o orgasmo// o ritual”. No conjunto de poemas do meio, “A montanha suspensa”, predomina o paganismo, com as divindades e personagens homéricas, revivendo-se a dor causada às mulheres pela morte dos heróis. Se no primeiro conjunto tínhamos o ritual, o que pressupõe algo paralelo a uma prece, no segundo há gemidos. O logos diria que o objectivo do ritual é obter cura para o sofrimento causador dos gemidos. Mas o gemido é o que há de mais ambivalente; no Apocalipse ouvimos muitos “ais” de dor, porém no livro de Madalena Férin, em que nunca o Príncipe das Trevas se dissocia de Eros, é caso para perguntar se os gemidos não serão também manifestação de prazer. Nesta ambivalência se situa o que se pretende com o contrato implícito no ritual: o dom do sono , e leio um poema: tu que habitas a montanha suspensa Para quem sofre ou tem insónias, o sono é um filtro do esquecimento, por isso apazigua. Mas quem dedica um livro ao Príncipe das Trevas desejará o sono para dormir em sossego? E merecerá esse descanso nocturno o nome de dom ? Há interpretações diversas do sabat, desde a historicista, que o limita aos factos ocorridos e que sobretudo ocorrem hoje em dia, até à psicologista, que o reduz, bem como ao demónio, a uma projecção mental, simples expressão do sonho, passando pela hipótese de indução por drogas nesse mesmo delírio erótico. Umas explicações não excluem outras, marcam apenas os pontos de vista. Segundo Lyons, os sabats tinham lugar na montanha, no alto das colinas, a meio da floresta, onde os participantes se entregavam a orgias e a banquetes abomináveis. Realizavam-se em datas certas, e em geral nas noites de sábado. O próprio Diabo – escreve o autor – presidia invariavelmente aos Sabás importantes, na pessoa do Grão-mestre da região. Surgindo na figura de um carneiro preto, tinha um aspecto repulsivo, com cascos e muitas vezes provido de garras, usando uma grande máscara de bode, com uma vela consagrada brilhando entre os chifres (3). Situando-se numa linha mais suave, ao explicar o significado do sabat e das missas negras, a partir de testemunhos da Inquisição, revela Julius Evola: Qualquer que tenha sido o plano sobre o qual se desenvolveu a experiência dos adeptos, devemos notar que os participantes da cerimónia, real ou vivida num transe lúcido, fizeram confissões espontâneas, sem tortura – morriam sem medo e sem remorso, convencidos de terem assegurado a vida eterna. As jovens declaravam ter assistido à cerimónia por êxtase para com o deus, sentido no seu coração e na sua vontade, diziam que o Sabbat era a “religião suprema”, que se tratava do verdadeiro paraíso, fonte de prazeres extáticos de tal ordem que seria impossível descrevê-los (4). Na última parte do livro de Madalena Férin, “A porta do esplendor”, identifica-se pelo nome a entidade a quem se dedicam os rituais, sabemos que existe uma porta nas dunas, no luar , uma porta no fundo do poço , que para alguém regressar do fundo do oceano certamente atravessou essa porta – e que esplendor é esse a que dá acesso a porta do abismo? Penso que Julius Evola já nos ajudou a compreender que a porta do abismo é a do paraíso experimentado pelas jovens sacrificadas pela Inquisição por terem participado nos sabats. É esse paraíso que representa também a coroa de açucenas, a santificar o escorpião. Nesta linha de leitura que associa o Príncipe das Trevas a Eros, o que se santifica ou torna pueril é o sexo, fonte de vida e de felicidade. O satanismo em sentido próprio, o culto a Satanás, só se concebe como reacção contra a Igreja, a grande repressora da sexualidade. Por mim, que conheço a autora, ponho as mãos no fogo em como nunca participou em nenhuma missa negra, e que do culto a Satã felizmente saberá tão pouco como eu. Nas horas de grande sofrimento, recorremos a tudo o que nos possa salvar, e a poesia é um espaço de liberdade em que o inconsciente fala sem tabus. Na igreja, suplicamos a Deus o que desejamos, e Deus é livre de nos conceder ou não as suas graças. Na magia negra, estabelecem-se contratos, executam-se planos segundo receitas que visam dominar as forças da natureza. Há uma ordem e não uma súplica, um comando e não a esperança de realização de uma promessa. Se o plano falha, é por incompetência do mago ou erro na receita, como declara Lyons. Ora a autora não procedeu de uma forma nem de outra, não se trata de participar em missas negras nem brancas, sim de escrever um livro de poemas, o que é algo bem diverso, por muito que as imagens poéticas estabeleçam contacto com as ciências ocultas ou nasçam até da mesma fonte. Quanto ao nome do Príncipe das Trevas, esse cujo reino é a noite, e por isso se deseja o dom do sono, pois é só no reino do sonho que nós, humanos em falta, podemos encontrar príncipes, paraísos e portas do esplendor, esse nome já o ouvimos na passagem do Apocalipse – é Abadon, o Anjo do Abismo. O que ele representa no livro de Madalena Férin é a ilusão, como tudo o que nos povoa o sonho, e mais não digo, além do poema final: Abadon é o anjo do abismo, leva-me ao mar de cobre, |
NOTAS |
(1) Ernest de Gengenbach, “A experiência demoníaca”. Editorial Vega, Lisboa, 1976, 2 vols. |