King Solomon's Mines (1885) - The novel was inspired by Robert Louis Stevenson's Treasure Island. Sir Henry Curtis, Captain John Good and Allan Quatermain, accompanied by Umbopa, their native servant, set off to reveal the fate of Curtis's missing brother - he has gone to look for the treasure of King Solomon in the land of Kukuanas. They cross terrifying deserts, nearly freeze in the mountains, and after a long journey they reach their destination. Umbopa turns out to be a king, and he wins the villainous King Twala, who dies in the combat with Curtis. The adventurers find Solomon's mines, but are left to die in an underground vault by Gagool, the horrific witch-doctor. After an escape they find Curtis's brother and return to the civilization.
Em linha em: http://www.kirjasto.sci.fi/haggard.htm


NUMEROLOGIA N' AS MINAS DE SALOMÃO

A tradução portuguesa de "As Minas de Salomão" foi revista por Eça de Queiroz1. Empreendi a leitura na expectativa de matéria enriquecedora de quanto já tenho escrito sobre naturalistas-exploradores em África, em particular Francisco Newton. E consciente de que a fronteira entre literatura científica e Literatura não é tanto de meios como de fins. A questa das Minas de Salomão decorre algures no interior do sul de África, e tem como ponto de partida o facto de o primeiro explorador a penetrar nelas ter sido um português, D. Pedro da Silveira, no século XVI. Esse conhecimento transitou para um parente, José da Silveira, fazendeiro de Lourenço Marques, sob a forma de um mapa riscado num pano de linho com o próprio sangue do seu antepassado.

Graças ao mapa, foi possível aos ingleses alcançar, três séculos mais tarde, as fabulosas minas de diamantes que permitiram decerto a Salomão construir o Templo. Delas sobrariam construções em pedra, como a Estrada de Salomão que a elas conduzia, e uma caverna cheia de tesouros, que os ingleses redescobem com o íntimo gáudio de terem assim passado à frente dos portugueses.

Iniciada a leitura, comecei a verificar que uma das bases arquitectónicas d'"As Minas de Salomão" é a aritmética, o que porventura lhe confere carácter científico :-). A tal ponto os números se apresentam em quantidade e qualidade, que dei por mim, sempre que surgiam à tona das letras, a surpreender-me: "Então e o 7, não aparece?"

Ora, não sendo a matemática uma das minhas sequer mínimas aptidões, não vou envolver-me em cálculos, ainda que passíveis de conduzir aos diamantes salomónicos. E também não pretendo mergulhar nas volubilidades mercuriais da exegese cabalística. Apenas mostrar, a quantos fecham os olhos a esta capacidade de um texto acumular várias linguagens, entre elas um código secreto, como se ele não existisse, quando é os alicerces da criação, que ele está lá, e não só está como constitui o principal vector de sentido da obra - o login para aceder à informação. Por conseguinte, vamos acompanhar alguns passos do livro e ficar pelo sentido literal deles, se tal é possível - sim, o sentido literal, essa miragem dos racionalistas.

O TRÊS, CORRELATOS & OUTROS ALGARISMOS

Por correlatos do 3 entendam-se o 6, o 9, o 12, o 18, o 30, o 300, etc., e também o triângulo, a pirâmide, o trio e a tripeça. Vejamos como se comportam eles ao longo da narrativa.

D. Pedro da Silveira alcançara as Minas de Salomão 300 anos antes dos protagonistas desta história, que o narrador diz serem 3, apesar de nunca serem só 3, pois vão acompanhados por outros caçadores do tesouro, como o zulu que virá a tornar-se rei do país dos kakouanas, região onde se localizam as Minas de Salomão. Não vejo na circunstância nenhuma exclusão racial, essa exclusão tem o mesmo valor que a do 14, 25 ou qualquer um entre infinitos números. Quando se trata de referir numericamente os elementos da equipa, o narrador diz "três": ele mesmo, Allan Quatermain, que na tradução portuguesa é Quatermar, o barão Henry Curtis e um marinheiro, o capitão John Good. São três porque o três é por si uma pessoa, a Trindade.

Quando os 3 tomam conhecimento da existência das minas, o informador declara que ouvira falar delas pela primeira vez 30 anos antes. Justificando a sua vontade de partir à descoberta apesar dos perigos da viagem, Quartelmar afirma: "...estou velho, já vivi três vezes mais do que costuma viver na Africa um caçador de elephantes" (p. 41). Logo no primeiro troço de viagem: "sahimos de Durban no fim de janeiro, e andadas quasi as trezentas leguas que vão d'aqui ao sitio em que se juntam os rios Lukanga e Kalukue..." (p. 51). Nessa jornada, dos vinte bois que puxavam o carrão "só doze restavam" (p. 51).

Quando as horas não são certas, apesar de terem relógio, diz-se "quase nove" (p. 57). Quando se trata de dezena imprecisa de factos ou objectos, escreve-se "dez ou doze", ou um "rebanho todo, vinte a trinta elephantes", dos quais matam 9, passando dois dias a serrar-lhes os dentes (p. 58).

O que os viajantes levam na bagagem traduz-se em quantidades: três revólveres, cinco mantas, etc., e algo mais extraordinário: um compasso e uma enxó. Para quê uma enxó, instrumento de carpinteiro que serve para desbastar madeira? O compasso, sim, serve ao risco de mapas. O que serve para cortar madeira é o machado, a enxó, o mais que podia, era ser útil ao afeiçoamento da madeira de mimosa, árvore que ficamos a saber faz parte da flora do reino dos zulus, introduzida talvez por D. Pedro da Silveira. A enxó deve ser um instrumento que está para a madeira como a trolha para a pedra, e só por isso faz parte da bagagem de exploradores que vão atravessar o deserto.

Para persuadir três negros a segui-los, os 3 aventureiros têm de lhes dar três facas de mato e uma manta (p. 74). Quando a lua nasce, é pelas 9 horas (p. 75). Após uma pausa de 30 minutos (p. 79), seguem caminho, sonhando acordados com o paraíso de quem tem sede: água. E pelas 6, "já o sol ardia" (p. 79). Novo descanso, porém às 3 horas acordam (p.79). Já quase morto, Quartelmar cai no chão e cerra os olhos. Mas Umbopa desperta-o: "à distancia de oito ou nove milhas" via-se um outeiro que devia ser um dos Seios de Sabá (p. 83). Chegam então ao pé de um cômoro estranho, "especie de duna d'areia, escura, lisa, atarracada, da altura d'uns trinta metros..." (p.84). "De sorte que, descobrindo a umas trezentas jardas..." (p. 93) algo que não interessa à matemática, perguntemos: e então o número 7, que todos sabemos ser o número da Criação, não aparece?

Algo começa agora a ganhar volume na mente do leitor: entre mil e um números que anunciam sofrimento ou presidem à torturante travessia do deserto, o 3 e correlatos anunciam a água, isto é, a porta para sair do lance dramático, que pode ser água mesmo, ou qualquer outro facto ou elemento que lhes possibilita a sobrevivência e o avanço no percurso. É assim que os trinta metros do cômoro na página 93 anunciam a descoberta de quantidade imensa de melões na página 95. Os moribundos dessedentam-se e tornam à vida, depois de terem comido/bebido quantos melões? Trinta, exactamente.

Bem, seria maçador dar mais exemplos, por isso avancemos sobre os três mil homens que viviam na povoação kakouana, dos quais "Nenhum media menos de seis pés de altura" "e todos veteranos de quarenta anos" (p. 135), guerreiros munidos de azagaia e "três facas (uma no cinto, duas em presilhas no escudo)" (p.136). Estes guerreiros saudavam o chefe com três gritos "krum! krum! krum!" (p. 136). Sim, avancemos sobre a circunstância de a maior festividade kakouana ser em Junho, como o S. João, sobre as cubatas cobertas com ervas aromáticas, que reencontraremos mais longe, avancemos sobre este facto singular: John, cujo nome se traduz por João, de santo não tem nada, mas lembra Jano, o deus das portas, o que abre o ano pela janela de Janeiro. O capitão John andava sempre de colarinho engomado, dentes postiços e monóculo, todo aperaltado, nestas aventuras. Certa vez o grupo foi surpreendido pelos kakouanas junto de um regato onde John se banhava, lavava os colarinhos engomados, mais as calças. Tentava barbear-se mas ainda só rapara a cara de um lado. Surpreendidos, foram obrigados a acompanhar os kakouanas. O capitão John assim seguiu, sem calças, de cara rapada só de um lado, tal como Jano, o deus das duas caras.

Saltando tudo isto, chegamos à cidade de Lú (sob o signo da Lua, numa colina em forma de ferradura ou meia lua, aquática como a Atlântida, apesar de situada no interior africano e a dois passos do deserto) - "Para cidade d'Africa era enorme, - com seis milhas talvez de circumferencia, toda ella defendida por estacadas, e rodeada de pomares e de vastas aringas onde se aquartelavam tropas. Pelo centro corria um largo e claro rio, vadeado por pontes. Para o norte, a duas milhas, erguia-se uma collina, que offerecia a fórma singular d'uma ferradura; e, mais longe, a umas sessenta milhas, surgiam bruscamente da planicie, em triangulo, tres serras isoladas, escarpadas, todas cobertas de neve." (p. 141-142). Os heróis são muito bem recebidos na cidade, com direito cada um a sua cubata, feitos os leitos de peles estendidas sobre colchões de ervas aromáticas. "Tripeças pintadas alternavam com frescas vasilhas de água" (p. 144).

Eles hão-de chegar às Minas de Salomão, e aí John revela-se um homem de têmpera ao recusar diamantes, porque um inglês não se vende por isso, e vê-los-emos nós enfrentar ainda enormes perigos, um deles a 3 de Julho, quase 4 e por um triz não era o 14, porém a 3 de Julho é necessário demonstrar que os três são homens das estrelas, fazendo qualquer milagre. Ora não se é marinheiro em vão: John traz com ele um almanaque marítimo que anuncia um eclipse total do Sol a 4 de Julho, data tão memorável como o 14 de Julho, de modo que se valem da ciência para enganar os negros, o que aliás não parece próprio dos ingleses. Datas memoráveis porque em qualquer delas a História ergueu ao alto um conjunto de princípios democráticos que os três implantarão no reino dos kakouanas, a saber "a nobre instituição do jury" (p. 185), os Direitos do Homem. Estes factos de linguagem ficcional têm um espelho na passagem do diário de Padre Duparquet (veja Viagens na Cimbebásia, no TriploV) relativa à morte do explorador Anderson nas margens do Rio Cunene: os dados biográficos estão errados apenas para em vez deles aparecerem as datas das revoluções americana e francesa: 4 e 14 de Julho.

Por isso a garantia do novo rei dos kakouanas, convertido ao republicanismo, de que sob a sua legislatura nunca mais haveria: "matanças de festa nem execuções sem julgamento". Essas matanças de festa rematavam cerimónias com danças durante as quais as donzelas agitavam nas mãos "uma palma verde e um lírio branco" (p. 187). Por falar em "branco", é extraordinário como nesses confins africanos um rei negro que poucos brancos devia ter visto injurie os ingleses à castelhana, a menos que se trate de uma forma queiroziana de ironia: "E quem és tu, perro branco, para vir latir contra o leão na sua caverna?" (p. 193).

Entretanto afastámo-nos algum tanto dos números, mas anote-se em como o 3 prenunciou de facto uma saída airosa para o que parece um rol de provas misteriosas que os três precisam de passar antes de amadurecerem o bastante para entenderem a moral da história. E de passagem diga-se que os kakouanas usam em combate a táctica do quadrado de três lados, o que não deixa de ser vanguarda, e que uma das suas armas é o machado de guerra. O machado lembra a enxó, apesar de esta pertencer às artes da paz : "Meia hora depois os regimentos (a flôr do exercito dos Kakouanas) estavam em formatura nos tres lados d'um immenso quadrado"(p. 200); "Ignosi então recuou um passo erguendo no ar o seu formidavel machado de guerra" (p. 202). Já numa evocação do regimento dos Pardos da revolução baiana, escreve-se, a pp. 209: "Este regimento tinha por nome os Pardos, porque usava plumas pardas na cabeça. Era composto por tres mil praças", e outro algarismo não seria de esperar, pelo que o capítulo IX remata com esta consideração de alto teor estratégico: "- Bom, murmurou Infandós, vamos ser atacados por tres lados" (p. 210).

Neste ponto do meu ensaio, já o leitor certamente se interrogou: "Então e o 7, esse número mágico entre todos os números mágicos, não aparece?" O que aparece, logo à boca do capítulo X é o 3: "Devagar, em perfeita ordem, as tres columnas avançaram." (p. 211). Estamos num cenário de guerra, os ingleses suspiram por uma metralhadora e eis que: "O pobre commandante de pelle de leopardo avançára das fileiras uns trinta passos" (p. 212). Menos do que isso só podiam ser três e mais de trezentos ficava fora do alcance das carabinas.

No capítulo da descida aos infernos, isto é, da entrada na caverna do tesouro, deparam com "tres pequenas torres ou tres marcos colossaes". E é nesse momento que Quartelmar desvela o mistério do três, ao analisar o que poderiam ser aqueles ídolos ocultos no país dos zulus: Eu por mim, das minhas reminiscencias da Biblia, colligia que deviam ser talvez os falsos Deuses que adorou Salomão - "Asthoreth deusa dos Sidonios, Chemosh deus dos Moabitas, e Milcolm deus dos filhos de Amnon". Assim diz o Livro Santo (p. 241).

Os antepassados de Indiana Jones encontram os diamantes de Salomão, o problema é sair da caverna e levá-los para o mundo civilizado. Antes de isso acontecer, morrerão de fome e sede. E essa é a moral da história, a lição que aprendem e a velha feiticeira Gagula lhes ensina: os diamantes não se comem nem se bebem. Mas encontram os diamantes, sim, guardados em três cofres de pedra, dois selados e um aberto (p. 258).

Algo de registar ainda, embora em princípio não se relacione com a matemática, é a pedreira ou amontoado de pedras ainda não afeiçoadas que encontram nos labirintos da gruta: "E com effeito havia alli como umas obras interrompidas - pedras serradas e esquadradas, um monte de cimento, e uma picareta e uma trolha, semelhantes ás que ainda hoje usam os pedreiros. Contemplei com reverencia estas antiquissimas ferramentas" (p. 256-257). As aventuras na caverna são perigosas e envolvem mais números, entre eles o das terríveis trinta toneladas da porta de pedra que de repente baixa, deixando-os presos lá dentro (p. 262). Vão morrer de fome e frio os heróis, nas entranhas da terra, e nem palavras mágicas como "Sésamo" ou "Vitriol" dali os poderão arrancar. Não, não há milagres em tal agonia. Porém eis que à morrente luz da candeia o barão Curtis se lembra das horas e pergunta por elas, ao que Quartelmar responde que "Eram seis horas" (p. 266). Com uma tal palavra de passe, a seguir só poderiam aparecer trinta melões ou algo melhor ainda que os salvasse da morte certa, mas não. Não, vão sofrer muito nas entranhas da terra até que finalmente, por misericórdia dos deuses, no capítulo XV, "Nas entranhas da terra", Quartelmar se lembra de olhar para o relógio e pasme-se: "Eram sete horas!".

O desaparecido número da tabuada chega com a sua grinalda e plumas de pavão, imponente e orgulhoso, pronto a rematar a história com um formidável happy end. E assim foi. Um fio de ar guiou-os através das galerias da velha mina até ao exterior da montanha, e justamente lá fora Infandós interpretou correctamente o lance: "-Oh meus senhores! Sois vós! Sois vós! Voltaes do fundo dos mortos!... Voltaes do fundo dos mortos!..."
Concluindo, não será talvez correcto afirmar-se que a interferência de Eça de Queiroz neste livro o tornou melhor do que o original. Os fragmentos que lemos não são da ordem do retoque verbal, trata-se de algo essencial à narrativa em que um tradutor não pode interferir. E também não parece correcto apoucar a obra como sendo fruto de inspiração recebida de Stevenson. "As Minas de Salomão" são uma utopia que pertence à linhagem de "A Nova Atlântida" de Francis Bacon ou de "Erewon" de Samuel Butler, com forte componente esotérica e maçónica, integrada num género de grande sucesso como é o romance de aventuras. Com a vantagem de o esoterismo se revestir de ironia, quando nos apercebemos da máscara de comédia que vela a face da numerologia.

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1. Primeira edição em 1891. Usei a oitava, Livraria Chardron, de Lello & Irmãos, L.da, Porto, 1928.