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"ÁFRICA ANNES", DE MADALENA FÉRIN - MARIA ESTELA GUEDES |
Madalena Férin
África Annes Edições Salamandra Lisboa, 2001 Publicação patrocinada pela Direcção Regional da Cultura, Açores |
Mais uma vez, Madalena Férin regressa a casa, as Ilhas Flamengas ou dos Açores, para alimentar o espírito e a literatura com um saboroso pão de mistura, que vai desde o facto histórico ao lendário, passando por tudo o que as ilhas têm conhecido desde os primeiros donatários e seus esforços de povoamento - de um lado a ameaça à vida, com terramotos, erupções vulcânicas, pestes, naufrágios, de outro o ouro que permitiu sobreviver e povoar, com o fabrico do pastel ou a colheita da urzela. Entre sepultura e berço, cada criança que nasce é uma bênção dos céus, como é benção dos céus a fertilidade da terra, desde que não sucumba em tenra idade, como a maior parte - o que constitui o pólo oposto na inquietação das gentes, o de pesar sobre elas constantemente a iminência de uma catástrofe, fruto de maldição dos céus.Uma dessa crianças que sobreviveu foi África Annes.Suporte de narrativas a que o termo desusado e a citação emprestam cor epocal, África Annes, na sua alegria, beleza e juventude, reflecte as contradições das ilhas em que nasceu. Vinda ao mundo em momento singular, na fronteira entre o quotidiano e o sobrenatural, ela estava destinada a grandes feitos. E é sempre entre dois registos muito diversos que Madelena Férin vai desenvolvendo a sua teia encantatória, de um lado fascinada pelos relatos dos antigos cronistas, de outro seleccionando neles o que mais longe parece do verídico, como o homem que amamentava os filhos, com isso ensombrando a imaginação da menina, a quem tinham dito que fora amamentada por uma burra. O que interessa à autora não é tanto assim a História, no seu inventário realista de acontecimentos e objectos, sim o que nela é tão extraordinário que perturba a avaliação da sua veracidade. Não se trata então de romance histórico, nem de reconstituição verosímil do passado, antes de uma aventura poética pelo que na História, se não é ficção, com ela rivaliza - o maravilhoso popular que povoa os relatos dos cronistas. A aventura é também da linguagem, ao regressar a modulações por vezes tão estranhas que já não sentimos a língua como materna, sobretudo porque nos seus conteúdos começou a agir um elemento destruidor da ligação do homem à terra, a ciência. Se na arte o vínculo perdura, tão espesso como o leite que todos os dias bebemos, o discurso científico em que hoje se descreve uma erupção vulcânica, um terramoto, já não consente o antropomorfismo da metáfora intestinal ou gástrica, em que tão nítidas chegaram até nós as primeiras descrições. A humanização da Terra, que fornece momentos de leitura tão espantada aos que nos nossos dias folheiam fontes primárias para elaboração de algum ensaio de História e Filosofia das ciências, é também uma das fontes de atracção da autora pela História das suas ilhas, e em "África Annes" constitui os laços mais fortes com a verdade e a realidade histórica.Não sendo então um romance histórico, nem preocupado com verismos, antes inclinado para o maravilhoso, o livro é um documento poético muito forte e emocionado do drama insular, em dois campos diversos: o da antropologia do imaginário e o da instabilidade geológica dessas ilhas açorianas, nascidas no que ao tempo de África Annes se chamava o Mar Ocidental. |