PLEURODELES WALTLI é uma salamandra cujo aparecimento na Catalunha Boscá explica por um violento tornado que teria levantado do chão centenas de "salamanquesas", para as levar pelos ares até quilómetros de distância. Passa muitas vezes um documentário na televisão a ilustrar esta hipótese zoogeográfica, uma entre outras igualmente afastadas da mais provável - O HOMEM INTRODUZIU ESSAS ESPÉCIES... -, mas o filme é o sempre o mesmo, sempre as mesmas melancias e as mesmas trutas a choverem na cidade, o que é interessante, cinematograficamente falando. Qual a hipótese mais provável para o aparecimento de Pleurodeles waltli na Catalunha, depois de Boscá dizer que um tornado as mudou de lugar? - BOSCÁ INTRODUZIU O PLEURODELES NA CATALUNHA... Mas não o afirma peremptoriamente, não é verdade? Se ele tivesse dito : "Eu introduzi esses bichos na Catalunha", a ciência ortodoxa mudava de atitude? NÃO! A ciência ortodoxa não quer saber dos factos reais, a sua única tarefa é reforçar o paradigma. Como é que eu sei que a ciência ortodoxa fingia não saber de nada? Porque outros herpetologistas o afirmaram sem a ambiguidade de Boscá, está publicado, o texto tem vindo a ser lido desde há 110 anos, nós vamos lê-lo pela terceira ou quarta vez no TriploV (http://www.triplov.com), mas o efeito da declaração frontal foi nulo. Por conseguinte, ler que essa salamandra é uma das espécies que desde eras geológicas remotas tem vivido no território que hoje é Portugal, mantendo fixos os caracteres desde então, num manifesto anti-darwinista, sem ao menos lhe terem nascido umas asas, para facilitar a dispersão pelo vento, é desconcertante. Depois disto, se aparecerem fósseis da Chyoglossa, como grafa Rosa de Carvalho (não, ainda não foram descobertos), passarei a acreditar em milagres, em extraterrestres, e sobretudo na hipótese zoogeográfica da chegada do Macroscincus coctei (Sauria) a Cabo Verde, vindo dos lados da Indonésia numa jangada natural, por sobre as águas do Índico e do Atlântico, num percurso de milhares de milhas náuticas, isto numa era geológica em que o homem ainda não existia na Terra, mas já tinham arrefecido as ilhas da Macar(r)onésia, ou os animais não conseguiriam desembarcar - esta hipótese da jangada de ramos é tão científica como a do tornado, ambas servem para explicar fenómenos estranhos como este : como é que animais que só existem na América, como as araras, supondo, também vivem em Portugal? Como é que chegaram cá? Como é que os cágados, animais de água doce, se deslocaram do continente para alcançarem S. Tomé, uma ilha vulcânica, surgida de uma labareda? Os cágados não sobreviveriam se atravessassem a nado o Atlântico. Só podem ter atravessado num monte de ramos ou então um tornado levou-os pelos ares. E deve ter sido tudo muito rápido ou morriam por desidratação. Ora esses cágados foram noticiados em meados do século XIX, depois nunca mais os cientistas deram sinal de os ter avistado, até à redescoberta oficial em finais do século XX. Que espécies são estas, com historial tão cinematográfico? Está no site (dossier sobre a mamba) o original da carta de J. von Bedriaga a Bogdanow, comunicada ao Congresso de Zoologia de Moscovo (1892), com tradução em inglês. Jacques de Bedriaga é um dos herpetologistas que se ocuparam dos répteis e anfíbios de Portugal, e um dos principais autores da história da mamba de S. Tomé. Vou traduzi-la agora em português, respeitando as gralhas, e depois submetê-la pela primeira vez a uma curta crítica literária. Contém uma declaração formal de Jacques von Bedriaga sobre a introdução do Pleurodeles waltli em Heidelberg. Há uma gralha impossível de verter para a nossa língua, que já não usa caracteres duplos, e nunca os usou no exemplo em causa, por isso recorro a um artifício tão inovador como o de J. de Bedriaga. Note-se que o francês, usado no texto original, é uma língua em cujo registo escrito há numerosos caracteres duplos, assim conservados há séculos. Por muito que alguns franceses desejem uma reforma ortográfica que elimine duplos caracteres e o desperdício de acentos gráficos, que chegam a ser três numa única palavra, a reforma ainda não se fez.
CARTTA Devo chamar a atenção do nosso Congresso para os inconvenientes que resultariam para os sistematas e corologistas da importação e cruzamento artificial dos répteis e anfíbios, que agora se praticam em bastante larga escala, e proponho que se aconselhe, através da imprensa, às pessoas que, seja por interesse científico, seja com qualquer outra finalidade, importam estes animais e os aclimatam em liberdade, ou que cruzam diferentes espécies para em seguida darem liberdade aos produtos destes cruzamentos, que nos informem disso, para que, ao menos desse lado, não haja dificuldades para os sábios que se esforçam por fixar os verdadeiros limites do habitat de cada espécie e procuram formular diagnoses segundo os caracteres produzidos pela selecção natural e não artificial. Para proteger uma espécie introduzida numa qualquer localidade do zelo inoportuno do coleccionador e para dar à espécie o tempo necessário para se propagar, seria sem dúvida útil manter segredo durante alguns anos acerca do lugar em que a espécie foi introduzida, e depois, ao fim de cinco ou dez anos, o segredo devia ser desvendado, tanto mais que há sempre meio de não referir ao certo a localidade que abriga a espécie importada. E para dar um bom exemplo aos meus confrades, vou confidenciar-lhes que em 1879 introduzi em Heidelberg o Pleurodelo (Molge Waltli). Em 1890 introduzi em Nice a Lacerta muralis var. coerulea; esta bela variedade aclimatou-se e reproduziu-se na sua nova pátria. Enfim, este ano (1892) introduzi em Nice a Lacerta perspicillata. Quanto aos híbridos obtidos artificialmente, aconselho a não lhes dar inteira liberdade. Em geral, não sou a favor da produção artificial de híbridos de répteis e anfíbios a torto e a direito, e estou longe de querer facilitar estas manipulações criando fórmulas para designar estes mestiços. Molge Blasiusi, para o qual não será fácil encontrar lugar no sistema, devia desencorajar-nos de criar novos entraves aos sistematas. D. J. de Bedriaga.
LA LETRE VOILÉEAs informações essenciais da carta de J. de Bedriaga são estas: 1. No século XIX, importavam-se répteis e anfíbios para se hibridarem em bastante larga escala. 2. Cruzavam-se animais importados (de outros continentes) com os europeus. A carta não o diz, mas outros textos, e até de Bedriaga, dão a entender que se cruzam animais a partir da categoria taxonómica de família (lagartos com lagartos, salamandras com tritões, mas não lagartos com salamandras nem cobras com lagartixas, sendo um dos progenitores estrangeiro e o outro indígena, para facilitar a aclimatação). 3. Os mulatos resultantes do cruzamento eram aclimatados em liberdade. 4. É importante saber qual o verdadeiro habitat de cada espécie. 5. A classificação assenta nos caracteres produzidos pela selecção natural e não nos resultantes da selecção artificial. 6. Os híbridos não são verdadeiras espécies, porque os seus caracteres são fruto de manipulação humana. 7. A principal protecção a dispensar a híbridos e espécies introduzidas é não dizer claramente onde foram introduzidos, para que os animais possam reproduzir-se, transmitir hereditariamente os caracteres à descendência e multiplicarem-se, de forma a constituirem populações estáveis. 8. O tempo que demoram as espécies ou híbridos introduzidos a constituir uma população não é inferior a cinco anos. 9. Em 1879, J. von Bedriaga introduziu em Heidelberg o Pleurodeles waltli. 10. Em 1890, J. de Bedriaga introduziu em Nice híbridos de lagartixa vulgar (eles distinguiam subespécie de variedade, variedade era o mesmo que raça ou mestiço, portanto um híbrido). 11. Em 1892 introduziu em Nice a Lacerta perspicillata. 12. Não se deve dar aos híbridos inteira liberdade, eles devem introduzir-se na Natureza em liberdade condicional (ilhas, de preferência, para terem isolamento reprodutor). Esta faceta da carta é a clara, de informação bruta e directa. Mas ela tem duas faces como Jano, a revelada e a irrevelada. Falta ver onde está o segredo e encontrar a chave dele. É muito simples, o segredo consiste em dizer que a carta contém um segredo e a chave dele. O código secreto funciona a partir de dois outros códigos que têm o mesmo léxico e comportamento comparável: a tipografia e a técnica de criar híbridos. Ambas usam os termos tipo e carácter. As gralhas são palavras com os caracteres alterados por deficiência dos tipos. Híbridos são seres com caracteres intermediários, nem brancos nem negros, sim café com leite, resultantes de cruzamento entre progenitores de cor diferente, neste caso em que a cor da pele é um carácter discriminante. Estes caracteres são instáveis, há tendência para a prole regressar aos caracteres de um progenitor e perder os do outro. A genética exprime estas alterações através de caracteres tipográficos : a, b, c, etc.. É preciso que os caracteres intermediários se fixem pois são os novos, são esses que asseguram a nova "espécie" para a ciência. Então uma espécie cujo nome patenteie gralhas é uma "espécie" de caracteres instáveis, ou seja, um híbrido. Os híbridos são também seres de identidade incerta, por isso levantam problemas aos sistematas, que não sabem como classificá-los : não pertencem ao género Salamandra nem ao género Pleurodeles, apesar de apresentarem caracteres de ambos. Exasperam os zoólogos, daí que um dos nomes do Pleurodeles seja Pleurodeles exasperatus. Porém, se olhar para a sinonímia, que está incompleta, o que chama a atenção é a instabilidade dos caracteres no nome específico : ora waltlii, ora waltli, ora waltl, ora waltelei. Neste texto não há gralhas na nomenclatura, mas há noutros de Bedriaga. Aqui ele fornece apenas a chave do código : palavra com caracteres tipográficos alterados indica 1. Espécie com caracteres alterados; 2. Pessoa que altera caracteres aos animais e plantas; 3. Lugar onde vivem híbridos. Nos ilhéus Branca e Rasa, em Cabo Verde, vivem híbridos - os ilhéus chamam-se Branco e Raso. Algures, na Caconda, em Angola, e no Rio Cacine, na Guiné-Bissau, há híbridos, porque uma localidade de colheita de Leonardo Fea na Guiné-Bissau é "Caconda no Rio Cacine", Caconda que noutros autores aparece como "Cacondo". Há só III gralhas na carta de Bedriaga: abre com uma e remata com outra, do mesmo modo que o soneto abre com chave de prata para fechar com chave de ouro. A primeira, "letre", em vez de "lettre", põe em questão toda a carta, solicitando hermenêutica. Por não ser claro o que diz? É claro o que diz, mas há nela elementos ocultos. A última gralha põe em questão a identidade do autor : quem é D.J. de Bedriaga? O "D" é um carácter supranumerário. Jacques von Bedriaga não só assinava de várias maneiras consoante a língua em que escrevia, como acrescentava caracteres ao seu próprio nome. Mas há outro segredo ainda na carta, e voltamos atrás, para perguntar : se alguém declarasse publicamente que tinha introduzido esta e aquela espécie ou que tinha lançado híbridos na Natureza, a ciência tomava a declaração em linha de conta e agia em conformidade? Esta declaração a um congresso internacional e a patente no livro de E.G. Crespo acerca da fixidez dos caracteres de Pleurodeles waltli provam que não. Se a ciência ortodoxa prefere a convenção da selecção natural aos factos da selecção artificial, para que esteve Bedriaga a perder o seu tempo? Bedriaga não perdeu o seu tempo. Ele não estava a aconselhar o auditório de Moscovo, todo ele largamente industriado na matéria, sim a avisar a posteridade e a passar-lhe a chave do código sobre as espécies introduzidas e hibridadas. Maria Estela Guedes __________ Texto publicado em Episteme, Revista do Grupo Interdisciplinar em História e Filosofia das Ciências, Porto Alegre, 15. |