Chalcides simonyi (1) é das Canárias, mas hoje não temos nenhum mapa das Baleares com alguma ilha chamada Tenerife, nem nenhum mapa da Maiorca com legenda a dizer Fuerteventura, e nem sequer vamos comentar gralhas do texto em cima como "Fuerventura", "Boscà", e nomes de autor em itálico na sequência genética do nome da espécie, como se fossem parte dela, e são. São os pais e padrinhos de baptizado. Bedriaga não é um criacionista, sim um evolucionista. Um evolucionista criador de novas espécies, como aliás publicamente o declarou no II Congresso Internacional de Zoologia, em Moscovo, ao confessar ter introduzido uma em França, mas sobretudo ao chamar a atenção para a hibridação de répteis e anfíbios, praticada em larga escala (2). Vamos repetir? Diz ele que está muito bem guardar segredo sobre essas práticas, para proteger os animais dos comerciantes e coleccionadores até constituirem populações estáveis, mas que ao fim de dez anos as introduções e cruzamentos deviam ser tornados públicos. O texto figura no dossier sobre a mamba de S. Tomé, com tradução em inglês - e alguns termos não traduzidos, que a direcção do TriploV entendeu deixar ficar assim, para que se saiba que o macarronés (3) é propositado. Também não vamos falar desses animais, que pertencem à família Scincidae - sim, são lindíssimos, luminosos, têm escamas muito pequenas, e sobretudo por isso e pelas patas curtas se distinguem dos lagartos e lagartixas. Qual é o nome vulgar deles?! Ora aí está um ponto que podemos comentar hoje, pois no texto de Bedriaga encontra-se um exemplo de como se criam geneticamente os nomes vulgares das espécies hibridadas e introduzidas. Repare: estas espécies aparecem de repente em dado local, sem história nem literatura, por isso o povo não as conhece. Não as conhecendo, não sabe qual o seu nome. Por isso não figuram nos dicionários. Figuram, às vezes, nas enciclopédias, porque são dois distintos instrumentos de consulta - enquanto a autoria dos dicionários pertence a gente das Letras, como é o caso do Dicionário de Moraes ou do Dicionário Etimológico de Pedro Machado, as enciclopédias coligem milhares de verbetes, cada qual de seu autor, consoante a especialização do assunto. Acontece assim que é às vezes o autor da espécie que fornece o verbete dela à enciclopédia. Fora estes casos, certos nomes ditos vulgares das espécies só se encontram nos textos de zoologia, como neste de Bedriaga, em que há dois : Molge e Salamandra. Os nomes vulgares não se escrevem em itálico. Em itálico só se escreve o binómio latino, e disso não temos nenhum exemplo correcto no texto em cima, porque está deliberadamente gralhado nesse domínio.
Os cientistas precisam dos nomes vulgares, por vários motivos, de que só um nos interessa : a existência de nome vulgar garante que a espécie é antiga, desviando assim a suspeita de que possa ser uma espécie de formação recente. Salamandras sempre existiram em Portugal, o termo ocorre em textos antigos e está consignado nos dicionários. Mas nem todas as salamandras são "quioglossas", este termo híbrido (nem latim, nem grego nem português, constituído embora por elementos das três línguas) é de criação tão recente como a espécie.
"Salamandra" é um nome vulgar autêntico, como "perdiz", "minhoca", "javali", e talvez esse fantástico "vidriol" transmitido por Boscá como nome popular na Catalunha de uns lagartos que também não são lagartos (Anguis fragilis), noutros lados chamados cobras de vidro. Até que ponto sabe o povo que V.I.T.R.I.O.L. é a sigla de uma frase em latim cuja tradução é, mais ou menos : "Desce às entranhas da terra, e corrigindo-te descobrirás a oculta Pedra"? Ora esses animais de que estamos a falar, os vidriols, são répteis de hábitos subterrâneos.
"Molge" não é um nome vulgar, sim erudito, criado por Bedriaga. À falta de nome não latino que nos agrade para os Chalcides, vamos passar a chamá-los "calcides". Como se sabe, a formação de vocábulos por via erudita é a que inflige menos alteração aos caracteres. Por via popular, a transmutação pode ser tal que se perde a noção do seu étimo. Na história de Newton chamamos a atenção para um caso curioso, o do cágado. O termo latino originário nem está muito longe da imaginação, cacattus. Isso daria "cagado", mas por pudor a acentuação recuou. Ora nos textos científicos portugueses encontramos variantes incompatíveis com o português, até por falta de um carácter no nosso alfabeto, o K : "kagado". Na altura em que o termo se publica, as esdrúxulas não se acentuavam, por isso essa palavra, tal como "cagado", escrevia-se sem acento mas pronunciava-se "cágado". Newton escreve "cagádo", o que nunca foi consentido por nenhuma reforma ortográfica do português, língua com base no latim (sem acentos gráficos), de tendência para uma maioria de palavras graves, que nunca se acentuaram.
Os nomes supostamente vulgares das duas espécies de calcides que existem em Portugal, além de macarrónicos, são mais falsos do que Judas. A partir de dada altura, já muito depois de Lineu, os autores começam a incluir nos textos, como sendo vulgares (conhecidos do vulgo, populares), nomes às vezes ridículos, porque contrariam em absoluto os princípios da reforma lineana e não têm nenhuma justificação linguística em português. Um dos méritos do binómio lineano foi o de acabar com as designações pré-lineanas de espécies, que consistiam numa descrição (4). Eram nomes que nunca mais acabavam, do estilo : "Calcides estriado longitudinalmente por uma faixa azul, com três dedos nos membros anteriores, 333 escamas à roda do tronco e narinas um pouco abaixo da pré-ocular", isto escrito em latim. Com Lineu, em geral aproveitaram-se as duas primeiras palavras para nome da espécie - Chalcides striatus -, e o resto passou a constitiur a descrição propriamente dita, que até aos nossos dias ainda havia quem escrevesse, ao menos parcialmente, em latim, por ser a lingua internacional da ciência. Outro mérito do binómio latino foi acabar com as dezenas de nomes de dada espécie quantas vezes numa só região, permitindo assim que os naturalistas de todo o mundo soubessem de que animais estava a falar Lineu, ao descrever, supondo, a espécie Canis lupus. Obrigatoriamente, referindo-se a essa espécie de lobo, todos adoptavam o binómio Canis lupus. Em suma, a nomenclatura lineana teve por fim pôr cobro a uma tal confusão que ninguém sabia de que espécies estavam os naturalistas pré-lineanos a falar, já que cada um usava os seus nomes. Mas a ciência gosta da confusão.
Foi assim que se começou a criar, a partir talvez de meados do século XIX, uma nomenclatura híbrida, nem latina nem vulgar, em certos casos irónica, para designar taxa superiores à espécie - hemípteros (Hemiptera), discoglossídeos (Discoglossidae), arvicolas (Arvicola), cheiropteros (Chiroptera), quioglossídeos (Chioglossidae, e este termo nem sequer é válido). Para que serve este terceiro código, intermediário, é difícil saber. Certamente só para assinalar a existência de um código III, com caracteres intermediários, os próprios dos híbridos.
Outra invenção recente, que nos aparece já no século XX, é tão anacrónica que vai buscar aquela forma pré-lineana de designar a espécie, mas para a aplicar aos supostos nomes vulgares, os conhecidos do povo. Trata-se assim de descrições, com a particularidade de o último carácter de uma palavra se ligar por hífen ao primeiro carácter da segunda. Isto é o cúmulo da ironia, porque faz coincidir o nome com a coisa, isto é, não há demarcação entre signo e referente; os traços de união têm por fim segurar os caracteres dos animais, pois já se sabe que o grande problema dos híbridos é a volubilidade dos caracteres -- agora os animais têm três dedos, mas daqui a várias gerações, os descendentes podem ter cinco. E chegámos finalmente ao nome vulgar dos calcides portugueses : Chalcides bedriagai (Boscá, 1880) é a cobra-de-pernas-pentadáctila, fura-panasco, losma e fura-mato ("losma" não figura nos dicionários), e os nomes ditos vulgares de Chalcides chalcides striatus (Cuvier, 1829) são cobra-de-pernas-tridáctila, fura-panascos, losma e fura-mato. Ao Macroscincus coctei, desta família também (Scincidae), Fernando Frade dá o nome de lagarto-herbívoro-de-cabo-verde.
Não, que eu saiba estes animais não são híbridos de cobra e de lagarto, são mesmo assim, têm patas curtas. A hibridação, como diz Bedriaga, verifica-se entre animais da mesma família, mas pertencentes a géneros diferentes, que habitam regiões afastadas: "Um exame superficial deste urodelo demonstrou-me que a espécie Luschani difere tanto dos Molge como das Salamandras e que ela pertence provavelmente a um género europeu e americano". Só um híbrido, porque é fruto de cruzamento, tem caracteres de um género da América e caracteres de um género da Europa.
Podíamos ficar na dúvida sobre o processo de cruzar, porque a frase também quer dizer que a salamandra nem Molge nem Salamandra pertenceria a um género comum à América e à Europa. Mas o que vem a seguir elimina a ambiguidade da informação: "espero saber em breve, pelo Sr. Boulenger e pelo Sr. Steindachner, se os caracteres diferenciais que enumerei são estáveis nos exemplares conservados no British Museum e no K.K. Naturhistorisches Hofmuseum em Viena."
São tão volúveis os caracteres dos híbridos que nem o álcool os consegue fixar, depois de mortos os animais.
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