É fácil detectar as subversões nos textos científicos, sobretudo quando já estamos alertados para elas (1), mas muito difícil interiorizá-las como tal, aceitar até a existência de subversão premeditada, ainda que se exiba à nossa frente como um cartaz publicitário. Difícil entender qual o seu objectivo último, e que Senhor servem os naturalistas, sobretudo dando-se o caso de uma radical diferença entre a sua metodologia e a dos serviços secretos ou agentes de subversão de Estado - na literatura dos naturalistas não existe segredo acerca das práticas e autorias da subversão, sim, quando muito, discurso velado. Não existindo segredo, parece que tudo fica mais simples, mas não : complica-se ainda mais, porque a perversidade é maior, basta a confidencialidade ser pública - o naturalista confessa as subversões, por saber que o seu texto se destina à posteridade (trabalhos subsequentes sobre a distribuição geográfica do mesmo grupo de animais ou plantas exigem referência aos anteriores, uma vez que se trata de actualizações; descrições de novas espécies exigem leitura de tudo o que se publicou sobre o grupo taxonómico e comparação com os exemplares conservados nos museus, para prova de que a descrição da espécie ainda não tinha sido publicada). Duas perversidades maiores : esconder pondo à vista; criar nos outros a convicção de que existe um segredo, para obrigar a uma infinita questa em busca da chave para o descobrir, não existindo segredo nenhum. Mas quem pode provar que é oculto o que se mostra e que não existe segredo quando nos garantem que sim?
Por paradoxal então que seja, lidar com a ciência não é uma tarefa apenas do domínio da frieza de raciocínio, ela lança o investigador no terreno emocional, partindo dela todos os estímulos para o pathos - como em qualquer romance, como em qualquer tragédia.
Tomemos um exemplo entre mil (2) : num artigo sobre a distribuição geográfica dos moluscos em Portugal, Augusto Nobre situa Coimbra ora na região do Douro ora na Estremadura (3). Coimbra no Douro é uma subversão que se repete, a outra só figura uma vez no texto; ocorrem quando é preciso dizer qual o habitat em Portugal desta e daquela espécie. O espião não assinaria os delitos, não os divulgaria nem à posteridade nem aos colegas do seu tempo. Mas não é isto o que nos perturba o raciocínio, o grande bloqueio, psicológico, é o de aceitar este facto : milhares de subversões geográficas e outras exibem-se com o maior desplante na literatura científica. Vou pôr dois segmentos diante dos olhos dos leitores, não para os convencer, mas para que sintam a inutilidade do meu esforço : por muito que a subversão seja óbvia, o leitor não acredita no que lê. E não acredita porque não quer, porque já tem uma crença, diversa desta, não lhe interessa sair de um credo, de um paradigma institucionalizado, não conhecendo outro onde se possa abrigar. |
(que nunca lhe passaria rasteiras destas - a ciência educa, não deseduca), mas vamos dar um passo em frente e admitir que sim.
Acredita que a ciência lhe ensina que Coimbra é uma cidade localizada na região do Douro, e como o leitor sabe - do fado, uma valiosa fonte de conhecimento - que o rio coimbrão é o Mondego e não o Douro, põe-se a pensar e tira as suas conclusões. O que o leitor agora pensa já não é facto, é interpretação. Pensa que Augusto Nobre (irmão do poeta António Nobre) não sabia em que ponto de Portugal fica Coimbra.
Por amor aos vírus, permitam-me que faça agora o sermão a uma criatura que obstinadamente quer penetrar no TriploV e não consegue. Essa interpretação, meu caro Nimda, por na base pôr a hipótese de que a ciência não sabe (estas coisinhas), é inaceitável:
1. Coimbra é a terceira mais importante cidade de Portugal, conhecida por "cidade dos doutores", dada a sua antiga e famosa Universidade.
2. O artigo em causa é de zoogeografia, o que exige saber mais geografia do que aquela que o está a incomodar agora, meu caro Nimda! Augusto Nobre era doutor, estudou na Universidade de Coimbra, é um dos mais importantes zoólogos portugueses de finais do século XIX, princípios do século XX. Foi ministro da Instrução Pública - sim, claro, há ministros da Educação que não sabem onde fica Coimbra, mas esses são os ministros da Educação de Coimbrolândia, na República de Banterbari.
Caiu em si? Vamos admitir que sim e dar outro passo em frente : agora o leitor analisa de novo a imagem e formula outra interpretação : aquilo são gralhas!
Concordo infinitamente, o meu caro Nimda acertou em cheio na língua das aves, escrita híbrida, língua diplomática, código de espião, como prefira chamar-lhe. É isso mesmo: língua das gralhas!
Não era essa a sua interpretação? O quê?! Acha que aquilo é um desmazelo de escrita? Lapso dos tipógrafos??! O meu caro Vírus Nimda não sabe, mas eu informo : não há errata, para Augusto Nobre o texto saiu perfeito... Para a posteridade, os textos de Augusto Nobre são uma valiosíssima referência, não conheço nenhum trabalho em que algum naturalista se queixe da sua geografia, e olhe que estamos só com um exemplo, só o de Coimbra na Régua! Se o meu caro Vírus Nimda soubesse a carradinha de gralhas como estas que há nos textos de Augusto Nobre acerca de espécies de Angola e de São Tomé e Príncipe!... Olhe que os rios de São Tomé até foram parar ao Congo!... Quando ler a história de Francisco Newton, esse valente naturalista que fez a escalada de todas as altas montanhas de África estando em Timor, logo verá. Além disso, o meu caro Nimda esqueceu-se de uns insignificantes pormenores relativos ao inócuo e solitário exemplo de Coimbra é uma lição, com a sua Torre dos Clérigos espelhada no Tejo... |
Estas subversões, que incidem sobre conhecimentos de cultura geral, são factos testáveis por qualquer leitor, não necessitam de nenhum saber especializado, figurando embora em textos especializados, nos mais directamente ligados à investigação científica, aqueles que em princípio só lêem os oficiais do mesmo ofício. Catálogos, descrições de espécies e material similar, que são os resultados do trabalho de campo e de laboratório dos naturalistas, não costumam despertar o entusiasmo de quem faz História e Filosofia das ciências.
As subversões são factos reais. O que além delas se possa aventar como explicação situa-se na área da interpretação ou hermenêutica, termo fundado sobre a palavra Hermes, nome do pai da alquimia. No meu caso, a hermenêutica fez apelo ao seu pai natural - a língua de Hermes, hermética -, e configura uma tese que alguns leitores já conhecem - as subversões são marcas de identificação de iniciado (quando incidem em dados biográficos), de espécie e de lugar, fazem parte de um código (língua das aves), e destinam-se a identificar espécies introduzidas, fruto de experimentação ou de selecção artificial. O termo "artificial" perturba as pessoas, porque as leva a pensar em laboratórios, substâncias esquisitas como o plástico, etc.. Parece extraordinário que seja possível ao homem criar espécies novas, mas isso é mais fácil do que escrever este artigo e não exige operações complicadas como a clonagem. Basta pegar em alguns casais de animais, como fez Noé, levá-los para um lugar onde não exista essa espécie (as ilhas são óptimas para isso) e esperar que a prole constitua uma população e transmita hereditariamente certos caracteres - grande tamanho, cores muito garridas, se foram escolhidas por Noé as maiores e mais garridas aves de certa espécie, por exemplo. Ou basta esperar que o sol os bronzeie, como acontece com as lagartixas das Baleares - passam a vida na praia, não é? Por isso são melânicas, muito escuras. Mas já Boscá dizia que, levadas para o continente, ficavam claras. Eis uma pena que todos sentimos no fim das férias do Verão, e não só as lagartixas... O Professor Fernando Catarino, director do Jardim Botânico de Lisboa, numa visita guiada em que tive o prazer de estar presente, dizia que o mais natural era a maior parte das plantas do jardim já serem espécies novas... Fora do seu meio, levados para outro continente, plantas e animais sofrem alteração dos caracteres tipográficos - emendo, dos caracteres morfológicos -, e podem às vezes transmitir esses caracteres tipográficos adquiridos à descendência, que assim se torna espécie nova, de acordo com a teoria - não, não é a de Darwin, pois o drama é esse, justamente! - a teoria da transmissão hereditária dos caracteres linguísticos adquiridos, perdão, queria dizer "biológicos", à descendência, pertence a Lamarck. Uma guerra entre lamarckistas e darwinistas é tão subversiva como entre judeus e árabes.
É excessivamente imaginativa esta explicação? Um dos conselhos do Capitão Miguel Garcia foi este : deixar voar a imaginação, não ter medo da hermenêutica - e ter medo, sofrê-lo todo, para o dominar. É que os espiões usam até truques de magia, caso de dinheiro e passaportes falsos que desse modo passam nas alfândegas. Um conselho destes a uma escritora parece imprudente. E no entanto... Não será um passe de mágica aquele Coimbra na Régua ou lá onde era?
Lendo este livro sobre a Mossad, uma conclusão se retira de imediato : a imaginação dos agentes subversivos está para além de tudo o que possa imaginar um artista, por isso, quando abateram as Torres Gémeas em Nova Iorque, um dos comentários que mais persistente se tornou foi o de que nenhum filme com esse tipo de temática tinha dado imagem sequer aproximada da catástrofe. Ora a questão não é qualitativa, os espiões e terroristas não têm melhor imaginação que os artistas - se usam a mágica, é com os artistas que aprendem -, a questão é quantitativa : impossível fazer um romance ou um filme com toda a informação contida em "Mossad", isso colidiria com a economia narrativa, que exige número limitado de personagens, acções, lugares e objectos. Uma operação como a de destruir a fábrica de armamento nuclear no Iraque começou em Paris com um grupo da Mossad a cercar Halim, um iraquiano, que é levado a passear pela França e por fora dela. Só esse núcleo narrativo preliminar, algumas 6 páginas das 416 do livro, dava uma telenovela, e muito confusa, pois as personagens mudam continuamente de nome, para cada nome têm códigos de letras e/ou algarismos, os códigos de algarismos têm duas chaves que seguem para Israel em dois distintos documentos cifrados, quem decifra um código não decifra o outro, e realmente nenhum escritor teria paciência nem memória para tanta miudeza, que visa proteger os agentes subversivos. O escritor resolveria o caso de forma muito menos enrodilhada, dispensando os preliminares, com a sua panóplia de arrombamentos, gazuas, papéis de contacto, contactos, escutas, mulheres bonitas a servirem de isco, cabeleireiros para entreter a mulher legítima, atropelamentos mortais, gargantas cortadas, etc.. Chamaria Halim, o iraquiano, para lhe dizer de caras: "Oiça lá, temos aqui uma pasta com uma fortuna em dólares e ali uma pequena jeitosa com a qual pode dar umas voltas. Eles serão seus se nos desenhar o mapa da fábrica de armamento nuclear do Iraque" - note-se como é fundamental a geografia, e como não poderia aparecer aqui um mapa com a fábrica do Iraque na ilha de Santa Helena, aquela onde morreu Napoleão, nas Caraíbas... E não só a geografia é um conjunto de caracteres adquiridos, a linguística também : o espião é ensinado, tal como o naturalista, a dar a máxima atenção às palavras, a criticá-las, a perguntar o seu porquê. De uma palavra mal dita pode depender a sua vida, a sobrevivência de uma espécie: declarar publicamente que se introduziu a Pupa immutabilis na propriedade de Rosa de Carvalho, era convidar todos os naturalistas, comerciantes e coleccionadores a irem apanhar exemplares à Quinta do Espinheiro, em Coimbra. Apanhados os exemplares, não haveria possibilidade de estudar as alterações dos caracteres susceptíveis de gerar espécie nova. Assim diz-se que a Pupa existe em Coimbra, na foz do Douro, e pelo menos metade dos interessados fica a pensar em que Coimbra será essa o tempo suficiente para os animaizinhos se irem reproduzindo até se transmutarem em Pupa mutabilis. A outra metade quer mesmo esperar para ver os resultados da experiência, por isso não colecciona e protege os animais perpetuando a semi-ocultação do ponto geográfico em que vivem.
Há um abismo de diferenças entre aquilo que o escritor imagina e considera absurdo e aquilo que para os serviços de espionagem seria impensável : aquela economia de meios do artista. Para quê tanto desbarato, e porquê absurdo o recurso aos meios directos? Este é um eixo axiológico a merecer um tratado, porque o homem é frágil, cede às seduções do Demónio, mas é preciso seduzir para atravessar o escudo das convenções. Halim, o iraquiano, traiu o seu país, mas ele não é excepcionalmente mau, nem excepcionalmente bom, pelo contrário : é apenas um homem fácil como tantos outros. E de outra parte : a fidelidade, a reserva, o secretismo, a desconfiança, não são inatos nem espontâneos - qualquer cidadão pode ser vítima dos agentes subversivos de outro país, pois qualquer cidadão pode em certo momento ter informações que lhes interessem. Como não cair em armadilhas embaladas em amizade, boas intenções, bons negócios, boas farras? Essa vulnerabilidade da inexistência de regulamentos duros e regras de conduta desconfiadas com o estranho são uma porta aberta para a subversão. Verifico apenas o facto, longe de mim sugerir que quando um funcionário público assina a carta de nomeação tenha de jurar que não pertence a associações secretas nem a partidos políticos diferentes do instituído e de garantir que nunca abrirá os ficheiros do arquivo em que trabalha a investigadores estrangeiros, nem lhes mostrará as estampas correspondentes a descrições originais de espécies. Limito-me a verificar que informação deste tipo, absolutamente inócua, pode em qualquer altura tornar-se um perigo para a segurança de governantes e de Estados. Ora no âmbito dos nossos trabalhos sobre o naturalismo verifica-se este explosivo fenómeno : o naturalista não é só um cientista, ele acumula frequentemente outros estatutos - o de militar de alta patente, de sacerdote, e de tão alto funcionário que pode ser ministro ou mesmo o rei, caso de D. Carlos I, que distribuía pela ornitologia e pela oceanografia grande parte do seu tempo estudioso. Halim, o traidor, não sei se o disse, era um cientista. Em França acompanhava a montagem do reactor nuclear que devia ir para a fábrica do Iraque. É claro que o reactor não foi para o Iraque, a Mossad destruiu-o ainda em França. Tal como depois bombardeou a fábrica no Iraque.
A ciência não vive isolada numa torre de marfim, entregue à pureza dos sais e dos cristais, é uma passadeira entre os poderes económicos e políticos internacionais. Ora se a Mossad consegue transformar em marionetas os governantes de que supostamente depende, mais corrediamente qualquer organismo subversivo manipula os naturalistas, e mais corrediamente os naturalistas manipulam os governantes, quando, por esse estranho fenómeno que é a acumulação de funções, o naturalista é um espião - como todos o foram no século XVIII, mais preocupados com a independência dos seus americanos países de origem do que com a salvaguarda das potências coloniais europeias - como tantos o foram no século XIX, mais preocupados com a implantação da República Portuguesa do que com a necessidade que o leitor sente de que a Ciência seja a Deusa a quem reza as suas orações.
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