Querido Pai Natal –
Agradeço muito as prendas que me tens dado em Britiande, agora que vivo cá a maior parte do ano: couves, diospiros, preço especial no Castiço, as saudações afectuosas dos meus conterrâneos, e muito mais. Fico-te grata pelo que me tens dado, mas, como estamos no Natal, quero que saibas o que me podes deixar na bota velha, e olha, aí está, para começar: tolerância com o que visto e calço, pois eu a ti não te aborreço por causa do teu fato vermelho e barbas de lã.
Quantas vezes, à tarde, me apetecia ir ao cinema, e não há cinema! Para ver um filme, o lugar mais próximo deve ficar a uns trinta quilómetros, em Vila Real. Em mais de um ano, fui lá uma vez. Imagina se só pudesse comer no dia de Natal!
De vez em quando sabe bem ouvir um concerto, uma conferência, ou fazê-la. Em Lamego, ainda vá, fui há dias a uma cerimónia em que se falou de A. de Almeida Fernandes, de outros assuntos de História, e se ouviu um recital de piano. Em Britiande, até agora, em matéria de actividades culturais, só assisti às festas de Santa Bárbara. Gostei muito, mas estávamos a falar de cultura erudita, e essa parece rara por aqui, pelo menos fora da Igreja. Tem paciência, Pai Natal, mas não podemos viver só da cultura cristã. Há mais mundos.
Bem sabes que eu escrevo para teatro e já tive um espectáculo em cena, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Eu vou mais ao teatro do que ao cinema, e agora, por exemplo, estou a escrever-te à pressa, porque sou um dos participantes no IV Encontro de Teatro Ibérico, a realizar de 1 a 9 de Dezembro no Teatro Garcia de Resende, em Évora. Mal acabe esta carta, largo para o Alentejo. Ah, queres o programa? Experimenta o endereço http://triplov.org.
Ora, desde que vim morar com a minha mãe, Preciosa, só uma vez fui ao teatro, aqui na região do Douro. Sabes até onde tive de viajar, para ver "Os Negros", de Jean Genet? Pois, até ao Porto, Teatro Nacional São João. Quando quiseres ir, avisa, dás-me boleia nesse atrelado puxado pelas renas, eu arranjo convites para vermos as peças de borla.
Tu achas aceitável que em Lamego, uma cidade, cabeça de concelho, não haja teatro nem cinema? Vá, vê lá se dás uma ajuda no restauro do Teatro Ribeiro da Conceição, para irmos lá depois apreciar os espectáculos.
Olha, Pai Natal: outra coisa de que preciso em Lamego, ou em Britiande, é de livros. Sou investigadora, como muito bem sabes. Membro do Instituto São Tomás de Aquino (ISTA) e do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL). Se não apresento trabalhos, se não faço currículo, o CICTSUL perde o dinheiro que a FCT paga por mim e eu não posso justificar pedidos de bolsa para participar em congressos ou fazer investigação no estrangeiro. Sim, por exemplo: quando andei a investigar a pedra de cobre nativo, que está no Museu de História Natural, boa parte da documentação que estudei foi no Arquivo Público da Bahia, e na biblioteca de Cachoeira, no Brasil.
Então, Pai Natal, não posso andar por aqui de braços cruzados, é preciso trabalhar, mas não posso trabalhar sem material. Livros! Fiz-me sócia da Biblioteca Municipal de Lamego, os funcionários são muito simpáticos e desejam satisfazer-me os pedidos. Já lá requisitei vários livros, mas há outros que eles não têm. Sim, também já fui à biblioteca de Tarouca, mas essa, de momento, está sem ficheiros disponíveis para pesquisa.
Há aqui um problemazito para resolver, porque eu tenho parte desses livros, e não posso trazê-los para casa da minha mãe. Quantos? Nem sei, nunca fiz catálogo, devem ser uns quatro mil volumes, entre livros e números de revista. Pai Natal, já viste a prenda que te dava?
Como vês, não te peço automóveis, casa com piscina, e nem sequer camionetas ao sábado e domingo, para ir a Lamego ou a Vila Real. Só peço que recebas o que te quero dar. Se me tratares bem, vais ver que tens a ganhar mais do que agora se pode dizer.
Maria Estela Guedes
(APE - Associação Portuguesa de Escritores) |