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Estela Guedes:

Diário de Lilith

 

 

 

SEGUNDO DIA - O barco rabelo

A bordo de um barco rabelo transformado em barco de turismo,
aguardo.
A bordo de mim, aguardo.
Aguardamos um grupo maior que o nosso - tu e eu, Lilith -, segundo
o comissário
de bordo, ou como se possa melhor designar, um rapaz
louro com ar inglês - ou gay, sei lá.
Em suma, aguardamos um grupo de 13 pessoas.
Nem mais, nem menos, nem aproximadamente: 13 pessoas,
certas, exactas, menos no cumprimento do horário.
A água está sulcada por cardumes carnívoros de peixes
que até podem ser fitófagos,
não me atrevo a dizer que pertencem à família Cyprinidae,
só lhes vejo a boca aberta à tona de água, como se viessem
tomar ar.
Parecem achatados, nada têm que ver com Barbus.
E as 13 pessoas exactas?
Já passa imenso da hora de partir e estamos sós, Lilith,
sozinhas num rabelo gay com ar de turista inglês,
ou vice-versa, o rapaz, de tão português, não se deve
ralar nada com os teus pensamentos.
Incomodam-me tantos peixes, são toneladas deles, não resisto
e chamo para eles a atenção do inglês com ar de comissário,
a camisinha branca, gravata, uma âncora bordada algures,
e os inevitáveis galões dourados.
- Toneladas é dizer pouco! - reage o boy com ar de barco
rabelo, - são uma praga, estas tainhas, e no Porto, então, nem se fala!
Ainda  por cima, não servem para comer!
- Tainhas?! Não servem para comer?
Ficas entregue às tuas dúvidas, Lilith, sabes lá
a que tubarão
chama ele tainha!
Nomes científicos, que te diriam?
Liza parmata: Tainha-de-boca-grande...
Pode ser uma espécie da Malásia...

"Temporal and Spatial Variations in Fish Catches
in the
Fly River System in Papua New Guinea and the…"
Isso, é um link, vai ver...

Treze pessoas atrasadas num grupo maior que o nosso, já
o comandante veio pedir-te desculpa, Lilith...
Desculpemos, são portugueses
atrasados...
Nem para um passeio de barco, um cruzeiro no Douro...
As tainhas, se não forem bogas ou bagres, parecem
querer comer
o navio... Aquelas bocas devem estar cheias de dentes...
Cuidado, Lilith, não te debruces da amurada, há piores
monstros que o
Adamastor. Ainda te devoravam, com mala, sapatos, esse boné
argentino a dizer “Iguazu”, mais os pensamentos alquímicos.
O que serão estes peixes vorazes? Dou o meu
reino pela identificação.
Identidade, nada de mais crítico nos tempos que correm.
A crise do sujeito ataca de imediato a identidade.
Garantir que a obra de arte não tem autor
é uma agressão directa ao sujeito
e à identidade deste mesmo sujeito de escrita.
Não é verdade, Lilith?
Será apenas teórica a questão?
Chateia os autores, chateia quem diz eu e tu, Lilith,
chateia imenso quem escreve, quem pinta, compõe
música,
e já a chateação profunda nega que o problema seja
só teórico.
As invenções teóricas chateiam.
Estou muito chateada, Lilith.
Tenho andado amargurada, neura, e agora os 13
indivíduos que
constituem o grupo maior que o nosso não
aparecem.
Terão tido algum acidente?
Onze e vinte e cinco, o barco devia ter largado às
onze.
Eis que o atrasado grupo se prepara para embarcar.
Tudo pessoas com identidade diferente,
uns, gordos, outros, magros,
etc., avancemos. Todos eles idosos,
excepto uma rapariguinha vestida de branco,
que erguem agora nos braços
para a meter no barco
depois lhe terem transportado em braços
a cadeira de rodas.

 
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