Do Jardim Zoológico, ou Sete Rios, como prefiras.
Em Lisboa. pt.
A 13 de Julho de 2006, pela manhã.
Deixei para trás a minha cave quente,
Levo na bagagem quase nada,
O nada deve ser toda a bagagem,
Quando queremos estar sempre aptos
Para partir.
Aqui, também o ar é caldo.
A sopa que me levou a D. Soledade, tão boa -
São tão boas as sopas que ela faz, cremosas de cenoura,
Lombarda
E feijão branco -
Azedou.
Deixei para trás uma biblioteca
Deixei para trás uma anacrónica
E pequena discoteca
Deixei-me para trás.
Vais-te deixando para trás, Lilith.
Às vezes fico tão distante de mim que já não me vejo,
Ponto obscuro
Recuado na paisagem da memória
E agora sais de ti para uma viagem secreta de dois dias
Ao de ouro rio.
Mas vejamos, Lilith:
A ideia não é sair de mim e entrar em ti, ou
Vice-versa, à maneira de um filme de terror,
Deixar-me possuir pela Demónia,
A ideia central
Que move a carripana
É subir do raso ao alto.
A ideia é aprender a superar contrariedades,
A ideia é aprender a lidar com o Demónio,
A ideia, Lilith, é aprender a lidar contigo.
Manter intactos os desejos
E com eles intactos
Ser capaz de ignorar a dor
Ser capaz de a vencer.
A vida é um campo de batalha.
Quanto mais amadurecemos e entramos na idade,
Mais se apresentam inimigos, agressões e guerras.
Quanto mais envelhecemos,
Mais os inimigos, as batalhas e as agressões
Se confinam ao perímetro da família,
À circunferência da casa.
O fulcro da acção – casa que não sentes tua,
por isso em carne-viva.
Mesmo estando quieta, mesmo não fazendo nada
Hordas de berberes e hunos
Assestam miras, desfecham tiros
Que esburacam e enegrecem de pólvora
Essas tuas folclóricas frouxas calças,
Como classificou o Floriano Martins,
Tecidas nos teares do seu Ceará.
Compraste-as um dia, não nas securas cearenses,
Sim na pluviosa e europeia Porto Alegre,
Numa feira de artesanato
Em que almoçaste – com a Catarina Oliveira, tão boa
Companheira de viagem! –
Anchovas assadas na taquara
- no côncavo de um bambu -
Bem no sul do Rio Grande do Sul.
Porém aqui, na Rodoviária, o espaço
Está delimitado, nos dois lados mais curtos do rectângulo,
Pelos WC; nas alas, pelas fileiras de autocarros.
A paisagem recamada de veículos
E algumas pessoas sentadas,
Umas a ler o “Metro”,
Outras a conversar ao telemóvel,
E tu vais correndo os olhos por essa outra literatura:
"Rede Expressos", "Isidoro Duarte",
"Eva", “Joalto”, "NBI", “Empresa Guedes”.
Este vai para Fátima, Porto, 50 – deve ser o meu
Mas faltam 25 minutos ainda.
Tempo para driblar bancos e bagagens
E avançar na paisagem de pés, pernas e sacos
Em direcção ao sector feminino do WC.
Devem ser três horas e meia de viagem, melhor prevenir.
Se houvesse expresso para a linha do Douro,
Aventuravas-te, Lilith.
Não, não há. Só o comboio.
Esta noite vais dormir com a gorda mãe aquática,
A flúmina, a Douro, como la Seine,
A grande rio do ouro, vou dormir com ela ao peito.
Fiz especial questão, na reserva por telefone, em ter quarto
Com vista para o rio
Na residencial Dom Quixote.
Um quarto de frente para o plano de água.
Fiz um plano de água para saires de mim.
Podes sair como quiseres: em vómito, em esconjuro,
Em pranto.
Sair pela porta líquida, neste calor tropical,
38 graus à sombra, pelo menos.
Vou levantar-me e caminhar na direcção do WC.
Não se pode partir sem estes importantes preparativos. |