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Estela Guedes:

Diário de Lilith

 

 

 

PRIMEIRO DIA - Pala

Pala deve ser aquela terra abaixo do nível da linha de comboio,
numa baía em que se ergue uma igreja.
Tanta água junta aos pés,
tanta água que se mete, céus!, sabendo e sem saber,
como conhecer os outros?
E que outros? Rodeiam-nos muitas categorias de outros,
vivemos com muitas categorias de outros,
entre elas, só uma é constituída por humanos.
Outra categoria é constituída por animais,
e nem todos os animais são percebidos pelos humanos
da mesma maneira.
Por exemplo, os touros de lide.
Não são o mesmo que cães, gatos, galinhas, nem baleias.
Há animais que não são animais no inconsciente.
Mexer neles, mesmo com luvas, pinças, bata branca,
desencadeia repulsa, agressão, e a criatura,
por eles ensandecida, ou foge
ou mata.
Para quê informar que os animais são inofensivos,
úteis à sanidade do ambiente
e bons cooperadores na agricultura,
se lagartos e cobras são impulsos irracionais
para muitas pessoas?
Não são animais, são pavores.
Pesadelos de que se acorda aos gritos.
Porquê? Porquê?
Talvez por serem animais terrestres de sangue frio.
E não por te representarem na Bíblia.
Tanta água em baixo, Lilith das calças frouxas.
Vais morrer pelos pés, a foice a trepar devagarinho
por ti acima, a mão da morte a agarrar-te o coração,
a apertá-lo até ficar do tamanho de uma avelã.
O túnel.
Uma vergastada de vento
entra pela janela, com ela outrora entravam faúlhas e fumo,
agora entram cheiros a óleo queimado,
pensar que uma cobrita de centímetros
faz erguer uma enxada contra ela, deve ser Diesel.
Pala, tiro-te o boné, és uma jóia
ao pescoço do rio, digna de ser lembrada!
 
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