MARIA ESTELA GUEDES
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Uma chave para Antonioni |
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"Acreditas nas coincidências?" - pergunta alguém, neste filme de Michelangelo Antonioni, escondido há mais de trinta anos, e que agora se relança como objecto de misterioso culto. A mais evidente das coincidências é a de ambas as personagens masculinas - repórter e sujeito de cuja identidade o repórter se apropria - se chamarem David. Chamam-se David e não avanço nem um milímetro no terreno da Bíblia, embora o pudesse fazer. O Golias político com o qual travam combate, porém, não é vencível com uma pedra numa funda. De resto, vence os dois David, um deles negociante de armas, destinadas a obscuras guerrilhas em África. Esta parte do drama aparece sobretudo em referências de tele-jornais, chamando a atenção para o medium televisivo dentro do medium cinematográfico. A segunda coincidência é a sugestão feita no último plano, sete minutos sem cortes, quase todos vistos por detrás das grades da janela de um pindérico Hotel de la Gloire (glória que espera quem?), de que também morre o segundo David, o repórter, uma vez que surge na mesma posição de corpo inanimado em cima da cama do hotel em que aparecera o traficante de armas. O tema do filme é a paisagem, uma paisagem já conhecida em outros filmes de Antonioni, bela na sua escassez de elementos: a areia e as dunas do deserto sahariano, a areia e as cores quentes da zona mediterrânica de Espanha, e, pelo meio da paisagem urbana, La Pedrera, em Barcelona, com as suas chaminés antropomórficas. Outra coincidência de nomes, ambos os autores se chamam António: Antoni Gaudí e Antonioni. A paisagem como tema, sim, mas a paisagem não é virgem de presença humana, e por isso não goza de liberdade. Daí que o fugitivo David que agora, em vez de liberto da antiga identidade, sofre o peso de duas identidades, não consiga sentir-se livre ao fugir de carro por dentro da paisagem; quer o inexaurível areal do Sahara quer a claustrofobia das cidades, com a sua confusão de imagens, são prisões. Por muito que Jack Nicholson, num desempenho de uma sobriedade pouco vulgar nele, e Maria Schneider, abram os braços na natureza, como se respirassem no verde seio de Gaia, realmente abrem os braços nela de crucificados. Todos, mesmo os que assim se não sentem, são perseguidos. Pela Polícia, pela família, enfim, por pessoas identificadas. Porém e sobretudo as personagens são perseguidas pela opressão, pelo Inominável, o não identificado. E então na paisagem temática a principal personagem é o Nome, a Identidade, o poder de domínio que à pessoa confere um cartão que a identifica. O nome que David Locke deseja perder, tal como quase perdido se antevera num Sahara onde tal não foi possível, por haver olhos a espreitá-lo por detrás de cada rocha, turbante ou paliçada mimeticamente oculta na areia. David chama-se Locke (lock), ele está fechado no corpo, não pode fugir da paisagem corporal, do passaporte falso com retrato da verdadeira cara, ele foge na paisagem e foge dela, fugindo de facto de si mesmo. "Fujo de tudo!", diz à jovem estudante de arquitectura, sem nome, representada por Maria Schneider. E também esta o segue, se não persegue, mas quem segue, persegue, não é verdade? Naqueles sete minutos finais, não sucede nada de mais estranho ainda que na parte anterior do filme? Parece que ela o perseguia e denunciou, parece que a esposa de David o não quer sob verdadeira identidade, por isso afirma à Polícia que não reconhece aquele corpo. Podemos concluir daqui que só na morte perdemos a identidade? Porque deixamos de nos sentir? São sete minutos a filmar uma rua por detrás das janelas do quarto onde só está o morto, como se o morto visse. Depois, por um passe de mágica, a máquina de filmar ganha asas e as grades desaparecem, a máquina passou por entre elas e nós sentimo-nos em liberdade. |
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Setembro 2006 | ||
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