MARIA ESTELA GUEDES
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Darwin: Subversão ao mais alto nível |
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Em memória de Maria Policarpo Madeira |
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Morreram já duas das pessoas evocadas na primeira edição importante, em Portugal, de "The Origin of Species", de Charles Darwin: Lyon de Castro, pai de Tito Lyon de Castro, actual proprietário das Publicações Europa-América, e G.F. Sacarrão, um dos autores da casa, a quem estava encomendada a tradução da obra de Darwin, e que, segundo a "Nota do Editor", não cumpriu a promessa de a traduzir. Em todo o caso, a tradução desta obra, cerca de cento e cinquenta anos após a edição primitiva, é uma homenagem, ainda nas palavras do Editor, aos sessenta anos de existência da Europa-América, ao seu fundador, e à "grande figura que foi o Professor Germano da Fonseca Sacarrão". Morreu também, em Maio passado, e estamos em 2006, uma pessoa que trabalhou muitos anos com o Prof. Sacarrão, como secretária e preparadora, isto no Museu Bocage (Museu Nacional de História Natural da Universidade de Lisboa). Se o Prof. Sacarrão, a esposa, Manuela Sacarrão, ou ambos, tivessem traduzido "The Origin of Species", certamente Maria Policarpo teria dactilografado os manuscritos, cuidado das imagens, pois também desenhou, e participado na correcção das provas. Falo como quem conhece familiarmente, o que é verdade, mas o conhecimento, mesmo pessoal, é sempre insuficiente. Sou autora de um pequeno livro sobre G.F.Sacarrão, em linha no TriploV (1), no directório que abri para o autor (2). Nele ou noutros lugares hei-de ter dito que aprendi muito com ele, o que continua a ser verdade, mas é preciso ter em mente que, o que pode aprender de Ciências Naturais uma pessoa das Letras, não é o mesmo que aprenderia uma pessoa com a formação biológica de G.F.Sacarrão. Sinto-me na necessidade, hoje, de deixar claro, mais uma vez, que sou escritora, e não uma zoóloga, que me aposentei do serviço no Museu Nacional de História Natural com a categoria de assessor principal, e que nunca pertenci ao quadro docente da Universidade. Os dados biográficos que sobre mim correm, diversos dos que acima anotei, correspondem, alguns, a efabulação deliberada. Outros, a confusão, própria de quem me lê a apresentar problemas e livros na área da História Natural. Porquê esta nota? Porque a falsificação de dados biográficos é uma das categorias de subversão de que costumo falar, ao apresentar ao público o código clandestino da ciência, como se pode ler, por exemplo, em "O gaio método" (3). Não sou zoóloga, por conseguinte. Digamos que sou testemunha. Por vezes bastante atemorizada, e essa foi uma das razões que me levaram a buscar refúgio na Floresta Negra de Curitiba: uma Carbonária não é, não pode ser, um prato de esparguete.'. O Prof. Sacarrão por várias vezes me falou do compromisso de traduzir "The Origin of Species" para a Europa-América. A tradução levantava muitos problemas. Vamos assentar em que os problemas não seriam de falta de conhecimento do Inglês, e ainda menos de Biologia. Vamos assentar em que os milhares de problemas de que venho falando, patentes, visíveis, nos textos da ciência, a relacionarem-se com ignorância, é com a nossa, de leitores, receptores da comunicação, e jamais com a competência científica dos autores, pois estamos no nível mais alto de conhecimento específico que existe na Terra. Quem possa saber mais de Zoologia que os zoólogos, não está na Terra, está no Céu. Ou no Inferno, tanto faz. Quando a ciência subverte com erros escandalosos, não é por falta de competência, é porque a necessidade obriga. Em suma, o Prof. Sacarrão não assinou nenhuma tradução de Darwin porque não achou conveniente, útil, nem oportuno. Não quis. Outros, antes e depois dele, também não traduziram, e não foi de certeza por falta de conhecimentos de Ciências Naturais nem de Inglês. Que problemas seriam esses que levantava a tradução, e ele dizia apenas não entender o que Darwin estava a escrever? Ignoro. Mal comecei a petiscar esta tradução, que entendo necessária, urgente, pois é uma vergonha que só cento e cinquenta anos depois da edição em Londres, os portugueses possam ler uma obra que definiu o paradigma actual do pensamento científico, dou com um problemazito de cornos. É claro que Darwin me está a pôr os cornos a mim, que não ouso imaginar que possa ele ter produzido, por experimentação no seu quintal, um mamífero com mais do que um par deles. Também não consta que, entre a descendência dos cruzamentos de pombos que efectuou, algum tivesse nascido sem asas e com garras de abutre, estilo Dodó. Lamento acabar sem mais remates, tenho as pernas a tremer, e o mais que me apetece dizer é que, quando a subversão da ciência causa terror aos leitores, os interpela quanto à sua sanidade mental, não há pânico que nos domine: uma Carbonária não é um prato de spaghetti. Haja coragem para falar! O que está escrito no texto abaixo, ao fundo da página 26, é que os animais seleccionados pelo Homem sofrem variações de caracteres, isto é, a descendência de um cruzamento entre um cão da Sibéria e um caniche pode apresentar caracteres diversos dos dois tipos progenitores. E então aparece a frase "Diz-se que os animais de pêlo longo e áspero têm tendência a ter cornos longos ou numerosos". Adeus, em matéria de cornos, em mamíferos, só conheço o unicórnio, o bicórnio, o cuco e o tricórnio. E isto já é condescender bastante com a paródia. Fora da Fauna "mamelógica", como sacanamente escreveu Antero de Seabra, consideremos Babilónia, que também tinha muitos cornos, e se calhar é mesmo desses longos e numerosos cornos da apocalíptica cidade que o naturalista do Beagle está a falar. |
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Página 26 de "A origem das espécies", com os numerosos cornos na última linha |
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(1) Maria Estela Guedes, "Perfil de G.F. Sacarrão". Em: http://triplov.com/sacarrao/biografia.html (2) Directório de G.F. Sacarrão no TriploV, em: http://www.triplov.com/sacarrao/index.html (3) Maria Estela Guedes & Nuno Marques Peiriço, "O gaio método". Em: http://www.triplov.com/estela_guedes/gaio_metodo/index.htm | ||
Capítulo VIII
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