MARIA ESTELA GUEDES
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A Carbonária de Carlos Ademar |
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Escrevo "a Carbonária de Carlos Ademar" no mesmo sentido em que Carlos Zatti, salvo erro, referindo-se ao site em http://www.carbonaria.org , o identificou como sendo a Carbonária de Walmir Battu, actual grão-mestre da Alta Venda Carbonária do Brasil, à qual está ligada a minha heterónima Stella Carbono. Uma Carbonária de Stella Carbono pode ser conhecida no TriploV, quando se acede à Venda das Raparigas (1). Mais para o lado das conclusões, talvez venha a propósito explicar o que é a Carbonária (para mim, Maria Estela Guedes). Comecemos entretanto pelo princípio: "O Homem da Carbonária" é o mais recente livro publicado por Carlos Ademar, escritor cuja profissão não é essa - e quantos escritores têm a profissão de escritor? -, sim a de investigador da Polícia Judiciária. Carlos Ademar junta-se assim ao inspector Maigret, mais do que a M. Poirot e a Miss Marple, para investigar o homicídio cometido no Jardim da Estrela, em Lisboa, em 1926, dezasseis anos após a implantação da República e poucos antes da tomada do poder pelo nosso pai tirano mais característico, António de Oliveira Salazar, que o manteria nas mãos durante quarenta anos. No Jardim da Estrela aparece, abatido a tiro, o chefe da segurança do Presidente do Conselho. Entre os inúmeros obstáculos à revelação do assassino, entrando até na fileira dos suspeitos, temos uma figura de humor, a D. Ermelinda, esposa do alto político, que poderia dormir com todos os membros da segurança, numa atitude que não seria a politicamente mais correcta, mas soa bem com o tinir das campainhas dos eléctricos e com as roupas elegantes dos que iam passar as tardes de Domingo para o Parque Mayer ou para os jardins de Campo Grande. O livro é mescla de ficção e ensaio, bastante colado à estética do realismo. Por isso Afonso Pratas, o investigador, é mais Maigret que Poirot, Poirot é quase uma personagem surrealista, em especial nas séries televisivas que celebrizaram o conhecido detective de Agatha Christie. Por isso, a cómica sugestão de que a D. Ermelinda dormia com todos os seguranças do marido se revela falsa na realidade comedida dos factos. Por isso, talvez, o móbil dos crimes nada tem a ver com a Carbonária, fundadora da República, nem com revoluções menores do que essa. A colagem à realidade e o ensaísmo notam-se em vários planos, sobretudo decorrentes da profissão do autor, como será o caso do conhecimento que revela das armas, da condução de interrogatórios e de outros procedimentos policiais. O homem morto pertencera à Carbonária, dada como já inactiva no período em que decorre a acção romanesca. Pretexto para o autor prestar algumas informações sobre a organização, que mal parece considerar maçónica, se a considera como tal. Depreende-se que será ao menos idêntica, por se falar de iniciações. Porém, a menos que me tenha escapado a informação, não vi referência nem à Maçonaria Florestal nem ao rito que adopta. Não parece que o comum das pessoas, ao referirem-se à iniciação, imaginem o que ela possa ser ou significar. Definitivamente, está excluída da maior parte da literatura não-maçónica a circunstância de as reuniões terem lugar num espaço a que se chama "Templo", a que os profanos não têm acesso; os textos não revelam que essas reuniões, que em situação normal duram mais de cinco horas, encenam um rito; que, como no teatro, mas não como numa igreja, todos os movimentos estão ritualizados, não sobrando mais do que alguns três minutos a cada interveniente para tomar a palavra, no momento apropriado; deixa-se igualmente na sombra o facto de que os intervenientes usam paramentos, como os sacerdotes. Em suma, não parece existir consciência de que a Carbonária, exemplo entre outros, não é uma unidade, é uma rebis, para usar o termo que a Alquimia concede à "coisa dupla". Ela pode sobreviver sem o conteúdo que teve na República e antes dela, quando o que a antecedeu foram as sociedades de jardineiros. De resto, o conteúdo das sociedades de jardineiros, liberal contra o miguelismo, não era ainda o conteúdo das Carbonárias - Portuguesa, Lusitana e outras. Paradoxo maior: na Carbonária não existe doutrina, não existe uma divindade própria, porque as maçonarias não são religiões. Não sendo religiões, ainda menos são seitas, ao contrário do que os profanos dizem. Então, diria eu, a Carbonária (tal como decerto as outras ordens maçónicas) é uma sociedade de estrutura religiosa vazia. Existe um rito, como recipiente, e os conteúdos variam consoante as épocas e as necessidades históricas, podendo desaparecer do horizonte, uma vez alcançados os objectivos a que as sociedades se propõem. A estrutura vazia, a qualquer momento pode ser preenchida. Jamais, no entanto, por uma doutrina religiosa. A Carbonária, que existe em vários países (no Brasil há pelo menos duas), não está inactiva, está esvaziada, e à deriva, alcançadas as suas metas e esquecidos, ou tornados anacrónicos, os princípios que outrora a regeram, confinantes com os da esquerda: socialistas, comunistas e anarquistas. O romance de Carlos Ademar não presta informações novas a quem o requeira para se instruir sobre a organização que continua a usar o distintivo de "mítica". Cumpre no entanto a missão que o autor se propôs, de a utilizar como pano de fundo de um romance histórico-policial. De novo, para mim, algo que oferece alguns perigos, e por isso vou relatar sem confirmar, deixando que a receita fique errada, se for caso disso: os ingredientes para a confecção das bombas. Sabemos que a própria Polícia fingia de nada saber, nas vésperas da implantação da República, permitindo que veículos carregados de armamento passassem debaixo do seu nariz, a ponto de se dizer que Lisboa, na altura, era um arsenal. Sabemos que os particulares fabricavam bombas em casa (2), e foi assim que Aquilino Ribeiro, um dos nossos romancistas mais notáveis, viu morrer um camarada no seu quarto: ambos estavam ocupados a fazer a revolução armada! (3). Mas eu, pessoalmente, ainda não tinha dado atenção à receita das bombas, cuja maior dificuldade reside no recipiente de ferro - a pinha que é preciso forjar da maneira certa nos ferreiros. Quanto ao resto, é fácil: rastilho de comprimento q.s., pólvora até dois terços da bilha, e metralha até à boca. Um fósforo e pum! |
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