Aliás, o Jardim Botânico da Ajuda e seus componentes - biblioteca, gabinetes de física, de história natural e casa do risco - fora criado para ensino do príncipe D. José, neto de D. José I, no qual se depositavam muitas esperanças, mas que as frustraria morrendo aos vinte e sete anos.
Os italianos eram célebres então na Europa, não só pela competência no ensino (enciclopédico, ainda sem o esboço da especialização que veio a traduzir-se pela divisão da Filosofia em disciplinas como a Botânica, a Mineralogia e a Zoologia), como por terem a experiência da criação de jardins botânicos desde o séc. XV. Daí que Pombal tivesse chamado mestres italianos para leccionarem na nossa Universidade, que até 1911 só existirá em Coimbra, pois a de Évora fora encerrada por Sebastião José, bem como outros estabelecimentos de ensino jesuítas. Três desses mestres, Domingos Vandelli, Franzini e Dolabella, foram além disso incumbidos de colaborar no traçado dos jardins botânicos de Coimbra e Ajuda, projectos que não viriam a ser executados na íntegra, por excessivamente dispendiosos, como se lê em carta de Pombal, dirigida ao bispo reitor da Universidade, que transcrevo de Abílio Fernandes (1949):
Ex.m° e rev.mº sr. - Reservei até agora a resposta sobre a planta que esses professores delinearam para o Jardim Botânico, porque julguei preciso precaver a v. ex.ª mais particularmente sobre esta matéria.
Os ditos professores são italianos, e a gente desta Nação, acostumada a ver deitar para o ar centenas de mil cruzados de Portugal em Roma, e cheia deste entusiasmo, julga que tudo o que não é excessivamente custoso, não é digno do nome português ou do seu nome deles.
Daqui veio que, ideando eles nesta corte, junto ao Palácio Real de Nossa Senhora da Ajuda, em pequeno espaço de terra, um jardim de plantas para a curiosidade, quando eu menos o esperava achei mais de 100:000 cruzados de despesa, tão exorbitante como inútil.
Com esta mesma ideia talharam pelas medidas da sua vasta fantasia o dilatado espaço que se acha descrito na referida planta; o qual vi que, sendo edificado à imitação do pequeno recinto do outro Jardim Botânico, de que acima falo, absorveria os meios pecuniários da Universidade antes de concluir-se. Eu porém entendi agora, e entenderei sempre, que as cousas não são boas por serem muito custosas e magníficas, mas sim e tão somente porque são próprias e adequadas para o uso que delas se deve fazer.
Isto, que a razão me ditou, sempre vi praticado, especialmente nos Jardins Botânicos das Universidades de Inglaterra, de Holanda e de Alemanha, e me consta que o mesmo sucede no de Pádua; porque nenhum deles foi feito com dinheiro português. Todos estes Jardins são reduzidos a um pequeno recinto, cercado de muro, com as comodidades indispensáveis para um certo número de ervas medicinais e próprias para o uso da faculdade de Medicina, sem que se excedesse delas a compreender as outras ervas, arbustos, e ainda árvores das diversas partes do mundo, em que se tem derramado a curiosidade, já viciosa e transcendente, dos sequazes de Lineu, que hoje têm arruinado as suas casas para mostrarem o malmequer da Pérsia, uma açucena da Turquia, e uma geração e propagação de aloés com diferentes apelidos que os fazem pomposos.
Debaixo destas regulares medidas deve pois v.ex.ª fazer delinear outro plano, reduzido somente ao número de ervas medicinais que são indispensáveis para os exercícios botânicos e necessárias para se darem aos estudantes as noções precisas para que nao ignorem esta parte da medicina, como se está praticando nas outras Universidades acima referidas, com bem pouca despesa; deixando-se para outro tempo o que pertence ao luxo botânico, que actualmente grassa em toda a Europa. E para tirar toda a dúvida, pode v. ex.ª determinar logo, por uma parte, que Sua Majestade não quer Jardim maior, nem mais sumptuoso que o de Chelsea, na cidade de Londres, que é a mais opulenta cidade da Europa; pela outra parte, que debaixo desta ideia se demarque o lugar, se faça a planta dele com toda a especificação das suas partes, e se calcule por um justo orçamento o que há-de custar o tal Jardim de estudo de rapazes, e não de ostentação de Príncipes, ou de particulares, daqueles extravagantes e opulentos, que estão arruinando grandes casas na cultura de Bredos, Beldroegas e Poejos da índia, da China e da Arábia.
Deus guarde a v. ex.ª etc. - Oeiras, em 5 de Outubro de 1773. - Marquês de Pombal. Il.mº e ex.mº sr. bispo eleito de Coimbra
Se Vandelli vira em Sebastião o Desejado, este cortou-lhe pela raiz as aspirações iluministas. Portugal estava de rastos, na sequência do terramoto. Não admira assim que Sebastião José tivesse apertado o cinto e as teorias reformistas, e emendasse de sua justiça o plano grandioso de Franzini e Vandelli para Coimbra, considerando que para cultivar umas beldroegas basta uma horta, e não há necessidade nenhuma de estudar também as de Cabo Verde, arbustos de Moçambique e árvores do Maranhão, até porque já está muito saturado dos exotismos dos sequazes de Lineu. Carta deliciosa, a evidenciar que, quando entre a filosofia e a reforma se interpõe o mealheiro, o que ressalta é a tacanhez de espírito. Se pensarmos que ao longo do séc. XVIII se estudará a anatomia humana nos cadáveres de carneiros, percebemos melhor por que motivos a reforma da Universidade ficou só pela sugestão ornamental de uma figura de estilo.
Mas os jardins foram-se construindo, o Marquês de Pombal acabaria por ceder aos reformadores. Em 1787, já Beckford, o mais conhecido estrangeiro da altura que escreveu sobre Portugal, se refrigerava no da Ajuda, noticiando também o incêndio do palácio:
M. Verdeil e eu jantámos hoje sós, e fomos dar um passeio a pé, ao pôr do Sol, por sob as sussurrantes e macias árvores do Jardim Botânico. À ida procurámos a marquesa de Marialva, mas ela tinha saído. O canto dos operários que acabavam a balaustrada do Jardim Botânico e o ressoar das suas ferramentas no mármore produziam uma música tão sonolenta que eu sentia-me embalado como quem vai adormecer. Dormitei na carruagem, todo o caminho, de regressa a casa. (...)
Cerca de uma hora depois da sua partida, precisamente quando eu ia para a cama, o sino das Necessidades começou, furioso, a tocar a fogo e logo lhe responderam todos os outros sinos. Passaram tropas da cavalaria a todo o galope e havia tambores que rufavam aqui e ali. A causa de toda esta balbúrdia era um incêndio no Palácio da Ajuda. Viam-se as labaredas das minhas janelas. Pelas duas da madrugada, a barafunda cessou e eu adormeci.
Quarta-feíra, 18 de Julho
Houve pequenos prejuízos com o fogo e não se perderam vidas. As miseráveis construções defronte do Jardim
Botânico estão rasas com o solo. Tanto melhor. Eram uma piolheira e receptáculo de toda a sorte de lixo. Mr. Horne chegou das Caldas. Veio cedo, e estava a tomar o pequeno--almoço quando cheguei para o ver. Tivemos uma longa conversa acerca da imundície, da estupidez e do despotismo em Portugal, e do pouco que este governo tem para me oferecer digno da minha aceitação.
Voltemos à década anterior, não muito diversa das que hão-de vir, agora pela mão de contemporâneos nossos, pois industria saber o que pensam da política de Sebastião José.
Quando D. José em 1768 decide formar um Jardim Botânico na sua Quinta da Ajuda, chama um estrangeiro para o gerir: Domingos Vandelli. A moda da época pelos estrangeiros não prova que o Rei não tivesse em Portugal um português com conhecimentos suficientes para ocupar o lugar de director. O facto pode estar porém ligado à expulsão dos Jesuítas, os únicos que se tinham realmente dedicado com carácter sistemático ao estudo da Botânica e das ciências naturais. Vandelli recorre posteriormente a outro italiano para ocupar o lugar de jardineiro-chefe: Matiazzi. (Carita & Cardoso, 1990).
A matemática, por exemplo, estivera nas mãos exclusivas da Companhia de Jesus. Portugueses capazes de ocuparem os lugares atribuídos a estrangeiros existiam, haja em vista um Verney, um Abade Correia da Serra, um Ribeiro Sanches, um Cavaleiro de Oliveira, um Félix de Avelar Brotero, de seu verdadeiro nome Félix da Silva e Avelar, que viria a suceder a Vandelli na direcção dos jardins botânicos de Coimbra (1791) e Ajuda (1811). Entre 1730 e 1740, o próprio Sebastião José participa em debates com intelectuais em que se critica o hermetismo e excessiva ornamentalidade do barroco e se anuncia o espírito racionalista das Luzes, algo similar ao que em França teve o nome de Querelle des Anciens et des Modernes. São as arcádias e academias a germinar. Sebastião José conhecia assim os intelectuais da sua geração que podiam ocupar as cátedras deixadas livres pelos jesuítas. Acontece entretanto que muitos estão no exílio, perseguidos por serem cristãos-novos, caso de Ribeiro Sanches que se fixa na Holanda; outros são perseguidos por Pina Manique. De outra parte, à vontade de esclarecer o povo, democratizando portanto o ensino, opõe-se o obstáculo da
mentalidade enraizada: ao gongorismo (conceptismo e cultismo são os nomes com que se define a extrema complicação do discurso barroco, cheio de artifícios retóricos obscurecedores do pensamento, e frívolo até certo ponto, precisamente por a clareza dos conceitos se escravizar à fantasia dos ornatos verbais) se sucede a sociedade secreta, outra forma de hermetismo, agora no próprio funcionamento das arcádias, nas quais o escritor tinha de submeter os textos à crítica de um "tribunal" secreto. Se não aceitava a correcção, precisava de se justificar e defender nesse mesmo tribunal, apesar de pior a emenda que o soneto. Como se nota, até nestas agremiações de literatos, Portugal é um país culturalmente dominado pela Igreja, agindo como espelho da Inquisição. E no entanto as arcádias pretendem-se anti-jesuítas, anti-escolásticas, anti-inquisitoriais. Simplesmente, entre a vontade e o acto existe subterraneamente toda a carga de uma tradição que pesa como património genético, e se ergue contra os caracteres adaptativos adquiríveis. Se o ensino estivera nas mãos da Companhia de Jesus, é evidente que é jesuítica a formação intelectual destes homens. Além disso, são padres a maior parte dos que se reclamam de esclarecidos; muitos escritores árcades, padres são, Verney é padre, Filinto Elísio, que com Félix de Avelar Brotero se exila em França, suspeitos do Santo Ofício, passe o erro de sintaxe e a incompleta ordenação de Brotero, que apesar disso, quando se tratava de negar filiação em sociedades secretas, assinava Padre Félix da Silva e Avelar (Pires de Lima, 1948), padres são. De Abade Correia da Serra, não é preciso dizer mais. No que rezam fontes ter sido governo sombra de Pombal passam sotainas, sotaina usaria para despacho o ministro da Marinha e Ultramar, Padre Maninho de Melo e Castro. Por todo o lado só se vêem padres, a padraria persegue a padraria, o bafo inquisitorial tresanda em toda esta época, com as suas fumaradas de poluição.
Fala-se do ateísmo de Pombal, do seu medo e de como tinha as mãos atadas. A presença de concepções que limitavam a ciência ao enquadramento teológico dificilmente aceitaria racionalistas sem suspeitas, sotaina usando embora e a pineal tonsura da iluminação. Nos tribunais do Santo Ofício, em se tratando de julgar letrados, chegava-se ao extremo de inquirir sobre livros escolares, necessariamente publicados só após censura prévia, e por livros escolares entenda-se gramáticas, v. g., a bem dizer exclusivos instrumentos de tortura no ensino das línguas, o grego e o latim. Nesta matéria subversiva, de boamente aceite era uma gramática de latim em latim escrita, e bem menos aceitável uma outra, mais moderna, que as regras do latim explicava em português. Também nisto vemos o que é o hermetismo, a que outros dariam o nome de obscurantismo, esse obscurantismo congénito que nem as Luzes do Sol conseguiriam arredar para o lado, de modo a ver-se a salvadora face daquele por que tantos na época suspiravam, o Desejado, esse que bavia de chegar em manhã de nevoeiro.
Hoje, a decisão de Pombal de chamar tantos estrangeiros para Portugal (ele também mandou bolseiros para o estrangeiro, o termo "estrangeirados" aliás ainda sobrevive) é considerada uma doença. Foi decerto um exagero, injustiça semeando neblinas de Sebastião provinciano.
Agustina Bessa-Luís (1981) publicou sobre o Marquês de Pombal um livro muito interessante, cuja tese é, em súmula, a de que tanto esforço nenhum resultado obteve, primeiro porque Sebastião só agiu ao nível da elite, teve medo de mexer nos estudos menores, o que significava bulir com as superstições do povo; principalmente porque está na biologia do português, lente embora, o aprender devagar, ser ignorante e não estimar que o retirem de tal beatitude; e acima de todas as razões por não ter conseguido acabar com a Inquisição, que só já bem adiantado o séc. XIX (1821) veria o seu poder policial legalmente extinto: a reforma da Inquisição, verdadeiro obstáculo ao avanço das Ciências, não se deu, e todo o seu apostolado cívico caiu em orelha mouca. Agustina refere-se ao apostolado do iluminista Padre Luís António Verney, de formação jesuíta, que propusera a reforma da Inquisição, e com o "Verdadeiro Método de Estudar" inspirara as reformas do ensino, a criação do Colégio dos Nobres (o principal motor desta instituição é mais Ribeiro Sanches), etc.. Verney não obtivera sequer grande apoio pessoal por parte do ministro. A prosa de Agustina merece entretanto ser lida à sua luz própria e com mais extensão:
Quanto a Sebastião José, consideram-no um estrangeirado pelo curriculum diplomático, o que não é muito, e pelo casamento, o que é um acidente e não uma teoria. É certo que está pronto a tomar dum inglês as suas ideias da Companhia das Índias Portuguesas; a política da educação inspira-se em Verney, o projecto do monopólio do Alto-Douro deve-se a colaboradores como Mansilla; além de que há uma variedade de empreendimentos em que os interessados são
estrangeiros, como Jácome Ratton e Timóteo Verdier. Nomes como Macou, Daupias, Milliet, Larcher, Meuron, andam à cabeça da administração em coisas do comércio; Gabriel Lacroix tinha uma fábrica de caixas de papelão, Natal Lemaitre outra de meias de estambre; Verdier associara-se a Ratton na compra de teares para a fiação de algodão, João Alexis era fabricante de chapéus, M. Froment esteve à frente de uma fábrica de rapé. E quando se procedeu à reforma da Universidade, houve um doutor Franzini para Matemáticas, um doutor Dolabella para Física experimental, um doutor Vandelli para Química. E até os produtos para as aulas de História Natural provinham do Museu de Vandelli e do capitão Vandeck, que os legou ao Rei. Lente de Anatomia era o doutor Cecchi, e o doutor Gold estava na Medicina Prática. Para a língua grega, o P.e Birmingham, o que parece já um tanto próximo duma política de marginalização nacional.
Acrescente-se à lista de Agustina a Fábrica de Louças de Vandelli, dita de Vandelles ou Bandelli (faianças de vandel), na região de Coimbra, e conclua-se que, se hoje, à distância de a discriminação nacional nos afectar pessoalmente, a sentimos como espinho ainda, naquela época, aos nacionais afectados na carne, deve ter gerado revolta pela injustiça, invejas profundas, ódios brutais, estimulou sem dúvida o nacionalismo romântico, deu origem a intrigas, calúnias e difamações, e creio que Vandelli foi vítima disso. Tomou-se bode expiatório de um ódio ao estrangeiro que se foi mitigando e reacendendo no correr dos tempos, manifestando-se ainda agora, sempre que o cosmopolitismo e a universalidade ferem a sensibilidade nacional. Um ficcionista nosso contemporâneo como Almeida Faria, só para dar um exemplo, é depreciado por certa crítica por ser um estrangeirado. Só por curiosidade, refira-se que o autor fala nove línguas e que o principal cenário exótico das suas obras é Veneza. Vandelli viera de Pádua, cidade onde se criara o primeiro jardim botânico europeu. |