Por exemplo, Brotero plagiou Link e Hoffmansegg. Roubou-lhes até algumas espécies. Mas os seus biógrafos defendem-no: que não foi por mal, antes pelo contrário, etc.. Por exemplo, As ilhas de Cabo Verde no princípio do século XIX, de António Pusich (1810), é um plágio, na estrutura, selecção de temas e até em redacções inteiras, do Ensaio económico sobre as ilhas de Cabo Verde, de João da Silva Feijó (1815). Se o leitor, atentando nas datas, prefere a facilidade de concluir que o plagiador é Feijó, não faz diferença. Uma das minhas citações do Ensaio, a propósito da demografia de Cabo Verde, reaparece textualmente nas memórias de António Pusich. Orlando Ribeiro, que as publicou e anotou, refere que Chelmicki, trinta anos depois, repete quase ipsis verbis várias passagens de Pusich. Só a confrontação de textos, muito trabalho gratuito e muita nota erudita permitiriam afirmar serem tais passagens de Feijó e não de Pusich, ou mesmo de terceiros, ao revés do que pensa Orlando Ribeiro, caso tal assunto merecesse especial atenção. Não merece.
Todos os clássicos imitaram Homero e se copiaram copiosamente uns aos outros. Alguns sonetos de Camões são traduções de Petrarca, "Os Lusíadas" repetem a estrutura da "Eneida" e até a abertura não é mais do que um decalque - Arma virumque cano, etc.. Nem podia ser de outra maneira, uma vez que a taxonomia da epopeia, da comédia ou de outros géneros clássicos implica obediência a modelos, a regras estruturais. Fizeram-se estatísticas dos versos de Shakespeare roubados, alterados e inéditos, sendo estes apenas um terço do total. Pascal roubou pensamentos aos gregos e latinos, Montaigne fez o mesmo, Fernão Lopes é das maiores vítimas de furto na nossa historiografia, e houve mesmo quem tivesse declarado que é justo plagiar os medíocres, e outros que o roubo intelectual é legítimo se seguido de assassinato.
Nada disto é novo nem levanta problemas de maior. Importa mais entender que razões lhe subjazem, saber a partir de quando um corte epistemológico faz com que a cópia passe a plágio, ou seja, quando e porquê irrompe a noção de que o pensamento é propriedade particular, sendo assim passível de censura e, mais tarde, de procedimento judicial a sua apropriação selvagem.
Há um passado em que tal problema não existiu (a não ser na consciência mais aguda de alguns espíritos libertos, satíricos ou bufões), por a ordem de valores dominante promover a imitação, a sujeição cega ao argumento de autoridade (magister dixit), a repetição e a mimese do real. Isto nasce com Aristóteles, é próprio da escolástica, de todos os classicismos. Já aqui se tem falado de escolástica sem a explicar, talvez seja útil saber por isso o que dela nos diz Padre Luís António Verney (considerado seu matador oficial pelo optimista António José Saraiva), com as cartas que constituem a obra "Verdadeiro Método de Estudar" (1746):
Torno à ideia que lhe queria dar da Lógica. Digo, pois, que o método de filosofar não se deve seguir porque o diz este ou aquele autor, mas porque a razão e experiência mostram que se deve abraçar. Isto é o que eu não posso meter em cabeça a muita gente; porque a maior parte do mundo não examina os princípios das coisas, mas vão uns detrás dos outros, como carneiros, sem mais eleição que o costume, e antes querem errar por cabeça alheia, que acertar pola própria. Persuadem-se que os velhos não podem ensinar coisa alguma má, e recebem os tais ditames com a possível veneração. Nenhum toma o trabalho de examinar se a opinião é boa ou má: uma vez que a disseram os antigos mestres, é o que basta.
Oxalá tivessem vingado estas ideias, para não continuarmos a ouvir hoje balido atrás de balido, e só um uivo de longe em longe. Na Idade Média, a escolástica consistia mais em transmitir dado saber do que em aprender e ensinar coisas novas, mudando o objecto da filosofia, que então se centrava na fé. Daí o seu carácter repetitivo, tradicional no sentido etimológico (traditio = passagem de testemunho), e a sua relação profunda com a teologia. O método de ensino não era mau: não havia disciplinas, apenas textos para comentar (da Bíblia, de Aristóteles, de Galeno, Hipócrates e outros). Os textos eram lidos nas aulas pelo professor (lector, daí o lente e o leitor), problematizados, levantava-se uma questio a que era preciso dar solução.
Até aqui, tudo bem. Simplesmente, o o mestre disse pode ser discutido mas nunca refutado. A refutação, tal como Karl Popper a explicou, não visa separar o erro do acerto, nem o falso do verdadeiro, sim o científico do não científico. Uma experiência de física falsificada continua a ser científica, de resto, se à ciência subtraíssemos todos os erros, pouco restava. A refutação distingue a ciência da metafísica, ou seja, o falsifícável/testável do não falsificável/não testável. É impossível testar se Deus criou ou não criou os anjos, verbi gratia. Podem então os Padres da Igreja discutir tão largamente o seu sexo, em Santa Sophia, que nem reparam que os turcos já tomaram Constantinopla. Mas jamais terem a veleidade de provar que os anjos não existem, ou sequer de tal porem em dúvida.
Quando o scholar chega ao ponto de concluir o comentário do texto, dito dialéctica, precisa de uma bengala, uma vez que, como aprendiz, não tem voto na matéria. O seu pensamento é livre para concluir entre macho e fêmea ou mesmo variantes mais angélicas, mas terá sempre de lidar com anjos, o que nada tem de perigoso, pior será quando, a torto e a direito, se mandar gente para a fogueira por ter trato com o Demónio. Essa bengala é o argumento de autoridade, que ao mestre pertence, e em geral não é mais que "o mestre disse" do próprio texto comentado. De resto, "autoridade" significa o que é próprio do autor, o que tem direito à palavra. Esse argumento de autoridade é então a teoria de Galeno, de Hipócrates, de Aristóteles, ou o Verbo das Santas Escrituras, o que implica o círculo vicioso da tal repetitividade, a traditio, que passa um testemunho mas não dá saída a que novos mestres procriem novos argumentos de autoridade. Expande-se um texto à força de comentários, não se geram novos textos. Existe veneração dos antigos, e o mais antigo, portanto mais sages (sábio), depois de Aquele que ab initio passou testemunho aos Evangelistas, é Aristóteles.
Nos sécs. XVI e XVII surgem tantas escolásticas quantas as ordens religiosas, há também uma escolástica protestante, dominando entretanto a jesuíta. O essencial delas é sempre a veneração do magister dixit, representada por Verney na sua imagem do carneiro que atrás de carneiro vai, como no caso Vandelli.
Mao Tsé Tung, para se defender dos opositores, e evitar que lhe desautorizassem as teorias, usava invocar o velho magister dixit chinês: "Não se discute a pérola do dragão". Mas essa pérola é precisamente aquela que mais refutação exige. Um colar de pérolas de dragão chama-se ideologia.
O neo-classicismo dos árcades, vigente na época de Vandelli, que dá lugar à querela dos antigos e dos modernos, na qual já sabemos ter participado Sebastião José, não significa "novo", significa "velho", "ainda mais uma vez a mesmíssima pérola de drago". Como os próprios árcades reconheceram, a sua escola falhou, entre outras razões, pela de não ser mais do que café coado pela terceira vez (a primeira é o classicismo da Antiguidade, a segunda o Renascimento). Porém, até o facto ser interiorizado e exorcismado, muito café podre se tomou. Algo de novo nascia entretanto com os autores destas gerações: a consciência crítica, a descoberta de que os mestres não gozam da infalibilidade papal, de que é preciso por isso refutar o argumento de autoridade, o que já não é pouco. A dificuldade provém de que a escolástica não é só uma filosofia, nem só um método de ensino, é uma mentalidade ovina. E mentalidades não mudam quando se queira. Se alguns morreram sabendo isto mas sem mudarem, outros, que talvez nem o soubessem, já eram mutantes de nascença.
Em todas as épocas se verificam descontinuidades quase irredutíveis que se acompanham no devir histórico, mas neste século convulso, que se chamará das Luzes, e no qual em Lisboa não falta sequer um terramoto, elas são gritantes. Dê-se um exemplo: em 1819, já Manuel Maria Barbosa du Bocage, pré-romântico (leia-se avançado para a época, pois o "pré-" é antónimo de "neo"), tinha morrido havia 14 anos, aparece um artigo na História e Memórias da Ac. R. das Sc., assinado por Trigozo d'Aragão Morato, acerca de um árcade, da Congregação dos Oratorianos, Padre Francisco José Freire, cuja única memória literária é a de ter censurado o uso da mitologia, a dar-nos a imagem do que é exactamente o café que nos primórdios da Arcádia Ulissiponense (fundada em 1756, nem Vandelli tinha ainda chegado a Portugal) fora pela terceira vez coado por autores de nome um pouco mais ilustrado, como Correia Garção, e agora já nem água choca é:
Freire foi o primeiro que entre nós pretendeu renovar a Literatura clássica e erudita, a que no Século XVI se haviam aplicado com tanta vantagem os nossos insignes Poetas e Prosadores. Porém convinha que a teórica destas divinas artes fosse mais vulgarizada; que outros engenhos igualmente felizes, tendo primeiro estudado as graças e belezas da pátria linguagem, e formado o seu estilo pelo estilo daqueles que melhor a escreveram, mostrassem até com o exemplo aos seus contemporâneos, que a reforma da Poesia e da Eloquência não se devia reduzir a uma servil imitação dos antigos exemplares, mas antes à imitação da bela natureza, que aos primeiros mestres havia servido de modelo..., etc, etc.
Supondo que o autor destes balidos sobre os benefícios da imitatio se encontrasse com Bocage no Nicola, o diálogo, por impossível, teria dado lugar a uma cena de pancadaria igual às que na Nova Arcádia Elmano travara com Elmiro. Numa cadeira estaria sentado um fóssil vivo, como algumas autoridades designam o M. coctei, diante dele uma espécie recém-formada, como ao M. coctei chamam outras autoridades. Esta não suportaria a ideia de imitar, pelo tédio e servilismo que implica, já teria experiência da liberdade criadora em situação de risco (Bocage esteve preso graças a Pina Manique). Quanto à relíquia, tremeria de pavor perante a aventura de cortar as relações filogenéticas com os antepassados, ou, mais biologicamente ainda, ficar sem modelo era o mesmo que ficar sem mama. São duas filosofias opostas, defrontam-se na mesma época (em que resiste o barroco ainda, com a vantagem da fantasia), não porém no mesmo tempo: uma antecipa o futuro, outra é um passadismo do que já na origem fora copiação do passado. Entre ambas há mais do que uma ruptura epistemológica, há revolta contra todo o tipo de esclavagismo, há sonho de revolução.
Só a partir do dealbar do romantismo, entre nós com o Bocage (1765-1805) contemporâneo de Vandelli, primo afastado do Bocage zoólogo, a antiga ordem de valores será violentamente alterada, com o estímulo subversivo da Revolução Francesa. Os ideais da "Liberdade, Igualdade e Fraternidade" propagam-se por toda a Europa, sendo entre nós perseguidos sem tréguas os afrancesados ou jacobinos, por vezes chamados pedreiros-livres, porque a maçonaria participou na implantação das ideias de que depois surgiria o liberalismo.
Os românticos, insurrectos contra a poética aristotélica (Aristóteles decretara que a arte é imitação, é ele quem define a lei das três unidades e traça a diagnose da tragédia e da epopeia, instituindo assim os modelos taxonómicos a copiar) é que são os responsáveis pelo extermínio do valor mimese e pela assunção do valor originalidade. Não que esta fosse ignorada ou não existisse, mas só agora será descoberta como dado iniludível de uma nova sensibilidade que vai ultrapassar a estética para afectar um largo público, e pessoas tão impensáveis como o
general Napoleão. Mas até se consolidar no trono, e a cópia se ir depreciando até ao pechisbeque, e depois até ao crime, vai levar muitos anos. Só nos nossos dias se criaram dispositivos legais para salvaguardar a propriedade intelectual e punir os
plagiários. Como vimos, em meados do séc. XIX, ainda os autores se copiam "naturalmente", sem lhes ocorrer a ideia de
que, fosse só por delicadeza, convinha indicarem as fontes. Podemos censurá-los, nessa altura já a originalidade tinha cartão de identidade e portanto debitar a sebenta se reprovava. Porém, em épocas anteriores ao romantismo, ou contemporâneas do seu despontar, a acusação de plágio não é pertinente, equivale a ler a história segundo vectores ideológicos extemporâneos. Seria primário censurar os vários classicismos por se copiarem uns aos outros, quando o prémio em jogo cabe ao que melhor souber imitar.
Em suma, na época de Vandelli ainda não existe consciência generalizada do que seja a propriedade intelectual. Se roubou trabalho a Alexandre Rodrigues Ferreira, o que ninguém demonstrou, é preciso cuidado antes de o condenarmos. Não vá acontecer como a outros, que o censuram por ter publicado um dicionário de tecnicismos botânicos em que se limita a traduzi-los de Lineu (e de que outro modo se elabora um dicionário? E a que melhor fonte havia ele de recorrer? E não será original um dicionário técnico no séc. XVIII?) e, logo na página seguinte, louvam Brotero por ter feito sair em França um compêndio de botânica reunindo as mais abalizadas lições dos mestres sobre a matéria.
É sempre perigoso mexer nestes assuntos, basta substituir "estudo dos plágios" por "estudo das fontes" ou vice-versa
para mudar radicalmente a intencionalidade de um trabalho. Além disso, no limite máximo da imitação, tanto podemos ter o plágio como o hiper-realismo de um holograma.
Só poderíamos condenar Vandelli se soubéssemos se, tendo cometido plágio, tinha disso sentimentos de culpa. Que o mesmo é perguntar se a sua personalidade seria romântica ou clássica. É difícil responder, as ideias dominantes de uma época atravessam as pessoas sem elas às vezes se aperceberem disso. De um lado, o sistema de classificação lineano é aristotélico, Vandelli dava aulas pelo "Systema Naturae" de Lineu, era um neo-clássico. Lineu vem na senda escolástica, seguiu Aristóteles como primeiro sistemata. O aristotelismo é o seu fundamento, por rejeição do platonismo, cortejado este pelos poetas renascentistas. Desde a Idade Média o aristotelismo esteve ligado à Igreja, S. Tomás de Aquino é um dos seus expoentes. No séc. XVIII, tinha por veículos privilegiados os jesuítas, donos do ensino, com assento na maior parte das cátedras, responsáveis assim pela mentalidade portuguesa. Ao expulsá-los, e ao banir Aristóteles da Faculdade de Filosofia, Pombal pretendia de facto o que não conseguiu: modernizar o ensino, substituindo os jesuítas por estrangeiros e mandando portugueses para fora, onde reinava a Aufklarung. Há fé nas Luzes, no poder de a ciência melhorar o homem, afastando para os lados as trevas da superstição e do fanatismo religioso, que o não deixavam contemplar a luz da Razão. Iluministas como António Verney desencadeiam a guerra contra a escolástica, mas pouco conseguem. Em 1879 ela é oficialmente reimposta, mediante a encíclica Aeterni Patris, de Leão XIII, com o fim de unificar o ensino nas escolas católicas, surgindo assim a Neo-escolástica. Isto tem tanto significado como dizer que ela acabou em 1772 com o Marquês de Pombal, ou antes disso, com o Verdadeiro Método de Estudar. Modos de pensar não começam nem acabam por efeito de decretos. Ainda agora, face a certas teses de doutoramento, que se limitam a inventariar teorias alheias, sem crítica, sem refutação, sem ideias próprias, o mínimo que se pode dizer é que vivemos ainda à sombra do magister dixit. Ora a ciência é de facto um meio de melhorar o homem, mas não existe ciência sem Razão clara, e para que exista esta é preciso estimular o seu exercício pela refutação permanente.
Comentar textos, passar testemunhos (traditio), convidar à inquirição e à resposta convêm a um bom método de ensino. O que aqui se reprova é o retorno passivo à opinião magistral antiga, porque esse liquida a hipótese de descoberta de novos mundos e de novos conhecimentos.
A mentalidade escolástica existe como tradição entre vários povos, independentemente de Aristóteles ou de S. Tomás, que aliás não são responsáveis de ser seguidos lealmente, uma vez que lhes são anteriores, a percentagem de analfabetismo prova que nunca os leram, e a distância geográfica cria obstáculos à reprodução. Assim é que, na longínqua China, Mao invocava o antigo anexim: "Não se discute a pérola do dragão".
Discute-se Vandelli que, por outro lado, foi um fisiocrata, herdeiro de Adam Smith; um dos construtores do liberalismo económico, simpatizante dos franceses e acusado de jacobinismo. Portanto um sonhador da Liberté, Egalité, Fraternité. Rousseau escrevia a "Carta dos Direitos do Homem", base da Constituição dos Estados Unidos da América. Isto seria Vandelli, talvez. Muito ocultamente, pois Pina Manique perseguia sem piedade os "franças", aqueles que deram as boas-vindas a Junot. Apoiaram-no, receberam benesses, subiram a postos políticos importantes, aproveitaram-se deles em jogos duplos num momento perigoso, mas a verdade é que no jacobinismo reside a origem do liberalismo português.
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