Entre o Gabinete da Ajuda (localizado no que então eram arrabaldes da capital), e o Museu de Lisboa, na Escola Politécnica, sita no antigo Colégio dos Nobres, onde por sua vez existira o Noviciado Jesuíta da Cotovia, existia outra instituição, a onde, em 1836, foram parar as colecções da Ajuda: o Museu da Academia Real das Ciências, na rua do mesmo nome, em Lisboa, onde havia um gabinete de história natural. Prestam-se estas informações aos vindouros, pois parece às vezes que houve um único museu de história natural cujo nome foi sucessivamente mudando. Não, há é um lote de exemplares que, esse sim, é sempre o mesmo. Três Macroscincus coctei se passearam assim, de museu em museu, pelas ruas da cidade, às costas de galegos. No correr dos séculos, perdemos estas noções, e então acatamos acriticamente tudo o que lemos, e às vezes faz parte de uma mitologia, não do relato objectivo dos factos. E tendo a objectividade caído em desuso dada a sua impraticabilidade, é útil duplo alerta neste caso. É bom confronlar testemunhos, e a nossa melhor hipótese sobre dado assunto nunca é a primeira, sempre a última, a mais simples que for possível desencantar. Tudo menos seguir um só magister dixit, pois isso equivale a retomar a tradição em quanto enferma de viciado.
Citemos Silvestre Ribeiro (1879), a propósito da mudança das colecções da Ajuda para a Academia das Ciências:
Cabem aqui algumas noticias, que encontrámos em um escrito especial, sobre o estado do Museu da Ajuda e da sua mudança para o edifício da Academia Real das Ciências de Lisboa.
O Museu da Ajuda continha uma colecção numerosa de exemplares, belos e valiosos alguns; mas assim mesmo era deficiente, e mais própria para um bazar do que para um estabelecimento científico. Por outro lado, os exemplares existentes não estavam metodicamente dispostos e denominados, em conformidade com o estado da ciência da época.
A mudança foi feita com alguma precipitação, e sem as devidas precauções e cautelas; de sorte que se perderam alguns objectos de verdadeiro valor, maiormente na secção mineralógica, e de muitos exemplares cairam os rótulos que os designavam. Acresceu a este último inconveniente o de fixarem, na colocação nova, os rótulos caídos em objectos a que não pertenciam.
Chamo a atenção para o facto de Vandelli já ter morrido havia vinte anos, quando se deu esta triste cena da perda e troca das etiquetas. A memorizar ainda que, a despeito do bazar, das perdas e da pilhagem francesa em 1808, havia material precioso nestas colecções, parte do qual é justo pensarmos que tenha sido adquirido e mandado coligir pelo museu da Academia.
Link não foi o único estrangeiro a escrever sobre Portugal. Muitos o fizeram, chamados pela repercussão que teve na Europa o terramoto de 1755 - até Voltaire falou dele. O cataclismo gerou naturalmente teorias apocalípticas e diversos estados de espírito metafísicos. Do púlpito, ameaçou um padre que fora castigo de Deus por Portugal não ser suficientemente católico, ao que Pombal reagiu muito agastado.
Os estrangeiros são chamados também pelo clima - a Madeira chegou a ser um sanatório para os doentes dos pulmões e a reunir pessoas a que Agustina Bessa-Luís dá título de romance, "A Corte do Norte". E vinham ainda pelo gosto que então explodiu pelas viagens. Já conhecemos as filosóficas, outras há entretanto a merecerem duas palavras, para melhor compreensão do séc. XVIII, cujo figurino se define pelo corte epistemológico - bazar de ideias, de movimentos estéticos, de descontinuidades intelectuais e científicas, até de sensibilidades.
Salvo os monumentos quinhentistas "Peregrinação" e "História Trágico-Marítima", a nossa literatura não possui muitas obras de viagem, mas deve-se isso também a que não existem propriamente como género literário. A taxonomia literária é mais morfológica do que temática. Muitas obras de viagens integram-se em diversos géneros, consoante a estrutura, como a falsa novela de Garrett "Viagens na Minha Terra". Entre a "Peregrinação" de Fernão Mendes Pinto e as românticas "Viagens" de Garrett, há, entre outras, uma diferença abissal, a oceânica.
Deixando de lado o caso português, em que só com dois títulos nos tornámos pioneiros, na literatura de viagens vemos duas vertentes principais: à longa distância, rumo a países exóticos, de que se relatam factos fabulosos e costumes diversos dos europeus, sucede-se, mais tarde, até com um pouco de ironia, a curta ou nenhuma distância: "Viagens à Roda do Meu Quarto", obra menor de um francês cujo nome nem recordo, pois vive apenas como título sintomático de uma tendência de que participa o livro de Garrett. Ou seja, passa-se da lonjura à proximidade, do exterior ao interior e à intimidade, do alheio ao próprio, do social ao psicológico. Já no séc. XVIII há um certo desdém dos que ficam em relação aos que partem para muito longe, a civilizar e a curar de civilizações estranhas, quando, face a aventuras corridas na selva, há sempre
quem diga: "É mais perigoso fazer uma viagem a Trás-os-Montes do que à Amazónia".
São célebres as "Lettres Persanes" de Montesquieu, em que nada disto se verifica, por se verificar algo de muito reverso: para a França viaja alguém que hoje classificaríamos de extraterrestre, um persa. Todo o sentido da viagem se inverte, o europeu já não visita, é visitado; selva, lugar exótico, é agora Paris. Como quem diz: os europeus têm a prosápia de se julgar muito civilizados, e de querer civilizar os povos selvagens, mas afinal selvagens somos nós, os europeus. Com este novo sentido nasce uma nova personagem na literatura europeia, o bom selvagem do romantismo, ligado à ideia de que o homem nasce bom, a sociedade é que o corrompe (J.-J. Rousseau). A crítica torna-se autocrítica, de facto os costumes estavam corrompidos, o séc. XVIII é o século da libertinagem, à testa da qual podemos pôr personagens como Casanova e o Marquês de Sade, de resto bons escritores. É o século de Mozart, cuja educação, de requintado, nada tinha, cujo comportamento deixava muito a desejar, seja embora divina a sua música. Em Portugal, ao puritanismo extremo que impedia as mulheres de andarem sozinhas na rua, as obrigava a cobrir a cabeça, levava a que nos bailes homens dançassem com homens e mulheres com mulheres, opõe-se a libertinagem dos padres, dos príncipes, e nem é preciso lembrar o que se passava com D. João V e Madre Paula, no Convento de Odivelas. Madre Paula recebia presentes como banheiras e penicos de prata, os quais tinham no fundo já não sei se anjinhos em relevo, se as armas de Portugal. Fosse o que fosse, a respeitabilidade pelos vistos só servia para lhe pôr em cima um monte de caca. A marmelada de Odivelas é muito mais do que um doce regional com grandes pergaminhos. Por falar nisso, é nos conventos que a culinária se desenvolve como arte e ciência. No período barroco, a doçaria, os conventos e Cristo haviam sido uma só e a mesma coisa em místicos poemas como "Ao Minino Deus em metáfora de doce", de Frei Jerónimo Baía, significando isto que o Menino Jesus se degusta como Pão-de-ló que aos Anjos/Foi em figura oferecido.
Já que viajamos no interior da viagem, diga-se que três tipos de sensibilidade coexistem no séc. XVIII: já vimos, no tempo de D. João V, homens a dançar com homens. Sucedem-se os salões das senhoras de classe, que se tornam protectoras das artes e até escrevem. Nesta altura, por simpatia com o despontar das suas reivindicações, os homens passam a vestir-se (rendas, laços, muito enfeite) e a maquilhar-se como elas (usam rouge, bâton, pó-de-arroz, salpicam-se de grains de beauté, cuja distribuição tem significado amoroso: sinal no beiço indica despeito, no olho é ciúme, na face é paixão), usam cabeleiras postiças empoadas como as mulheres, adoptam poses feminis. Chegamos à época de Napoleão e já floriu o romantismo, aparece uma novela que vai afectar o público por empatia com o protagonista, o jovem Werther. Werther passa o livro a chorar de desgosto por causa de uma menina que até gosta dele mas casa com outro, e a verdade é que Werther nada fez para a conquistar, jamais ousaria um beijo, limita-se a derramar lágrimas em cima de cartas que escreve a um amigo. É hiper-sensível, comove-se com as florinhas botânicas, os passarinhos zoológicos, as pedrinhas mineralógicas, passa a terna mão pelas cabecinhas das crianças desvalidas, e suicida-se por fim, quando nada, excepto a originalidade do autor, o impedia de se declarar e casar com a donzela. É com esta personagem que a Europa vai empatizar, a ponto de jovens se suicidarem com o "Werther" no bolso ou na mão. Da primeira vez em que Goethe, botânico, biólogo pré-evolucionista, recriador (nos "Fausto", p. ex.) da alquimia (o século das Luzes da Razão é também o século das brumas do Irracionalismo, o sebastianismo impera, aparecem sociedades secretas, bruxarias, há místicos, loucos, teosofia, espiritismo, mais o reacender dos Rosa-Cruz e afins), para além de ser um dos grandes escritores mundiais, quando Goethe, dizia, se encontra com Napoleão, este confessa já ter lido o "Werther" sete vezes. Sete vezes é obra, sobretudo para o Conquistador. O livro é bom, mas extremamente piegas para mim, que sou mulher. É difícil uma mulher aceitar a total recusa de conquista por parte de Werther, espantoso que o General Napoleão Bonaparte se comovesse com uma sensibilidade tão etérea, que parece até um manifesto de rejeição a ele. Werther é uma espécie de Napoleão às avessas, e isso deve-o ter comovido até às lágrimas.
O que o romantismo vai trazer de diferente, e com isso influir na mentalidade de um público que pela primeira vez na história é muito grande (a burguesia, que se transformará em consumidora por excelência do romance, género criado pelos românticos), é, para além do primado da afectividade sobre a racionalidade, o herói romântico. Este herói há-de evoluir para um aventureiro como Sandokan, Feijó ou Alexandre Rodrigues Ferreira, mas quando nasce é uma criatura à qual foram atribuídas as características que a convenção diz pertencerem à mulher.
O homem travestiu-se (só com Garrett as mulheres aparecem em palco, os papéis femininos eram desempenhados por homens desde a tragédia grega) e acabou por ter comportamento e sensibilidade ditos femininos. O que nada tem a ver, evidentemente, com a libertinagem, a não ser talvez como antídoto angelical. É destas descontinuidades que se tece o séc. XVIII. Com a libertinagem de costumes emparelha em França uma filosofia, mas agora é preciso dizer que a raiz do termo é "liberdade" (essa liberdade tão paradoxal numa época de escravatura), a dos libertins d'esprit, como Voltaire e Montesquieu. Em Portugal nada se lhe poderia assemelhar, uma vez que havia duas censuras, a régia e a da Inquisição; a ciência, se respirava, era no interior de um colete de forças. Tal como dos naturalistas que partiram para o ultramar, disse que o senso de justiça exigia que se considerasse pago o seu trabalho, ainda que só um caracol tivessem enviado, agora, dos que em Portugal ficaram, é preciso valorizar o que se tenha feito, pois pouco que fosse já seria extraordinário, face à repressão feroz, arbitrária e indiscriminada que existia. Jamais em Portugal poderíamos ter tido libertinos de espírito, pela razão muito simples de não haver liberdade de expressão, e nem sequer liberdade de leitura. Os livros estrangeiros eram retidos na alfândega e as traduções retalhadas e modificadas até ficarem irreconhecíveis. Até um estrangeiro como Beckford se queixa de Pina Manique:
Embora eu estivesse sem paciência nenhuma, topei com o velho abade, bode expiatório, sobre quem eu descarrego os pecados dos meus adversários. Hoje veio jantar e eu censurei-o muito por o seu sobrinho Manique, intendente da Polícia, não ter querido deixar passar, sem um aviso da Rainha, alguns caixotes de livros, etc, que me chegaram à alfândega.
E talvez por isto e idênticas razões, na sequência da nossa história, nunca tivesse florescido entre nós a filosofia. Filosofa enquanto criação pura de ideias, no sentido contemporâneo do termo. Não me refiro àquela "filosofia", englobadora do que hoje são múltiplas disciplinas literárias e científicas, patente em expressões como "viagens filosóficas", museus de "filosofia
natural" ou "Faculdade de Filosofia", onde se formaram a maior parte dos naturalistas.
Voltemos entretanto às viagens. A partir de 1755, por causa do terramoto, Portugal começou a ser muito visitado, tornando-se assim assunto de literatura estrangeira. Os portugueses, não obstante o seu ódio aos estrangeiros, sempre lhes deram demasiados ouvidos, a ponto de Camilo ter dito um dia que Portugal era o único país do mundo a preocupar-se com o que dele diziam lá fora, e a coleccionar esses ditos numa literatura. A mim me parece que os portugueses, mais do que darem ouvidos, lhes meteram no ouvido o que muito bem quiseram, justamente por saberem que depois tal literatura seria saboreada, comentada, pesaria em certas ponderações e decisões.
Geralmente, os estrangeiros nada de bom têm a dizer de Portugal, uma espécie de Pretolândia (havia muitos escravos e libertos em Lisboa) atrasada e inculta, na sua sapientíssima opinião. É bom lembrarmos aqui o persa de Montesquieu, bem mais civilizado que um príncipe de Versalhes.
Este intróito serviu também para voltarmos à Academia Real das Ciências, agora com alguns instrumentos para refutar mentalmente o retrato que dela nos deixou o viajante Carrère, de passagem por Portugal em 1796:
Esta Academia é uma monstruosa agremiação de pessoas, umas que não sabem nem têm nada a fazer, outras que não sabem nem querem fazer nada, e ainda de alguns sujeitos que se mexem muito para fingirem que andam muito ocupados e que, no entanto, não produzem mais que aqueles que nada fazem.
Está dividida em seis classes. (...) A segunda é a dos sócios estrangeiros, em número de oito. Ali se encontram inscritos os nomes de famosos sábios europeus, que a Academia elegeu sem os consultar e que certamente ficariam muito surpreendidos de encontrarem os seus nomes figurando à frente de uma academia desconhecida em toda a parte e quase ignorada dentro dos limites da cidade onde está estabelecida. (...)
A maior aplicação do engenho desta Academia, o seu mais penoso trabalho, o mais glorioso para ela, o mais inútil, o mais fastidioso, o que ao público se afigura mais cansativo, é o seu Dicionário da Língua Portuguesa, de que até agora só está publicado o primeiro volume, um enorme infólio de mil páginas. Versa apenas sobre a letra A. Será obra para não menos de vinte volumes, se alguma vez chegar ao fim.
Como se nota, afinal havia público interessado nos trabalhos da Academia. O estrangeiro, só pelo facto de o ser, não merece atestado de sapiência, a sua palavra não corresponde a um magister dixit. E se correspondesse, por isso mesmo precisaria de ser refutada. Basta consultar os catálogos, para se ver que na Academia se publicavam anualmente muitos livros, sem falar das antigas crónicas, base dos Portugaliae Monumenta Histórica, do Dicionário da Língua Portuguesa, e sem falar dos artigos de Vandelli, Feijó, tantos outros que deram vida às Memórias Económicas, Memórias e História e subsequentes revistas, como o Jornal de Ciências Matemáticas, Físicas e Naturais, onde Bocage publicará quase toda a sua obra. Havia um museu de história natural a funcionar nela, a onde por sinal foram parar três célebres lagartos de Cabo Verde. Em 1858, fundava-se o Museu de Lisboa na Escola Politécnica, de que tomou a direcção J. V. Barbosa du Bocage. As colecções do museu da Academia, porque o material já se acumulava, não cabia nas instalações, nem a instituição tinha interesse e disponibilidades financeiras para suportar os seus encargos, tendo até sido extinto o lugar de director, fizeram então nova viagem, durante a qual é crível que mais rótulos caissem e mais trocas se fizessem, coisa natural em qualquer mudança de casa, sem que nisso seja preciso pôr intenções malévolas. Três Macroscincus coctei subiram assim, presumivelmente às costas de galegos, a R. de S. Marçal, até serem depositados no Museu de Lisboa, que hoje tem o nome de Bocage.