No séc. XVIII, a densidade populacional humana no arquipélago era muito inferior à do tempo de Bocage. Feijó chega a queixar-se de não ter sapatos, onde nem como os comprar. Diz que é difícil andar nas ilhas por falta de caminhos, pede por caridade, algures, que o destinatário lhe mande um barrilzinho de carne. Passa fome, é atacado pelo paludismo, escreve com despudor: "estou morrendo". Assina por vezes como "o mais desgraçado","o mais infeliz" dos homens e, contra o que Bocage já afirmou e mais tarde corrige, em artigo sobre ornitologia, pouco material zoológico terá enviado para Lisboa.
Urge reparar em que, se estes homens só um caracol tivessem remetido, já teriam ganho o ordenado, arriscando a vida em regiões selvagens, de clima inóspito, nem sempre entre indígenas solidários. A missão de que os incumbiram era utópica à força de desmesura: eles tinham não só de enviar amostras dos três Reinos, como estudar os costumes, a agricultura, a viabilidade da criação de fábricas, tinham inclusivamente de participar o que julgassem de interesse político, o que significa que também deviam dedicar-se à espionagem. Manda portanto o senso de justiça e a prova Saint-Hilaire que se diga que eles fizeram mais há duzentos anos, do que não teriam hoje conseguido especialistas. E se o governo os abandonou, não foi por insatisfeita a missão, sim porque a fome do governo era outra que não científica, de riqueza fabulosa insaciável.
A respeito do que enviara do Brasil Alexandre Rodrigues Ferreira, a opinião de escassez de produtos é a que também perfilha o naturalista H.-F. Link (1769-1851), mas este autor é altamente mimético, e só deve estar a referir-se às colecções expostas, não ao material depositado em armazém. Escreve ele, a propósito do que vira em 1797-1799, que o Gabinete da Ajuda
ne soutient pas à Ia vérité Ia comparaison avec celui de Paris, ni même avec celui de Madrid; il est petit, aucune partie n' y est complète: on y trouve moins d' objets relatifs au Brésil qu' on ne devait s' y attendre. (Daget & Saldanha, 1989)
Link publicou sucessivamente a sua obra em três volumes, e com posterior tradução francesa, o que lhe permitiu opinar sobre tópicos imutáveis à luz do mutacionismo pessoal, a ponto de me ter ocorrido a possibilidade de existência de dois Link, cada português seleccionando o seu, à Ia carte. Assim é que, ao referir tão proteica personagem, Machado e Costa (1949) declara:
O Museu de História Natural da Ajuda continha uma numerosa colecção de exemplares, alguns bastante valiosos, faltando-lhe, porém, uma disposição metódica apropriada a um estabelecimento científico desta natureza; a sua enorme riqueza de exemplares mereceu ao sábio alemão Link elogiosas referências ao estabelecer a sua comparação com os de Madrid e Paris.
Relacionando os factos posteriores com a publicidade que no estrangeiro Link fizera ao Gabinete, Machado e Costa continua:
A fama do valor das suas colecções chegou ao conhecimento de Napoleão que durante a Guerra da Península, em 1808, enviou a Portugal o sábio naturalista Geoffroy de Saint-Hilaire para vir buscar os exemplares que julgasse necessários para completar as deficiências do de Paris; nestes termos, o general Junot ordenou ao Dr. Domingos Vandelli, então director, a entrega imediata ao eminente delegado do Imperador de todo o material escolhido.
Sabemos que nas deficiências do Museu de Paris se contava o pouco material do Brasil (Daget & Saldanha) e que, pelos vistos, o papagaio alemão é responsável por as colecções de Alexandre Rodrigues Ferreira terem ido para França. Link e não Vandelli. Posto isto, avancemos sem mais contemplações, ainda se voltará a falar deste sábio alemão, que herborizou dois anos em Portugal, com o conde de Hoffmansegg, andou por Trás-os-Montes ao mesmo tempo que Brotero, ter-se-ão encontrado ou feito exploração conjunta, em Coimbra assistiu às aulas de Botânica de Brotero, elogiou a competência de Brotero, fez má crítica à "Flora Lusitanica" (1804) de Brotero, acusando-o de
indicar por curtas diferenças específicas várias espécies que lhe tinham sido comunicadas por Link e Hoffmansegg, e das quais Brotero sabia que os botânicos alemães tinham intenção de publicar descrições pormenorizadas (Fernandes, 1945).
Este facto parece demonstrar que tenho razão, ao ligar duas informações isoladas, segundo as quais, na mesma altura, Brotero e os alemães herborizavam em Trás-os-Montes. Conheciam-se bem, eis o que pretendo mostrar. Os alemães tinham-se atrasado com a sua homónima "Flora Lusitanica" (sai
entre 1809 e 1840), é natural o desgosto, ao verificarem que Brotero lhes surripiara ligeiramente algumas espécies. Resta
saber se, após a publicação póstuma da "Phytographia Lusitaniae", não teriam sofrido maior desgosto ainda, por Brotero lhes ter também republicado gravuras da "Flora Lusitanica", sem indicar as fontes.
Este sábio alemão Link, e quanta abundância de sábios havia na época, tinha, em 1797, vinte e oito anos. Aos cinco anos de idade, Mozart já compunha, e tocava piano com o teclado coberto com um pano. Mas a normalidade não se compõe de excepções. É preciso fazer algumas contas de aritmética antes de rotularmos de sábio quem o poderá ter sido trinta anos depoís, não agora, em que ainda nem sabe para que lado fica Meca, quando se põe a rezar as suas orações.
Feijó jamais poderia ter colhido muito material zoológico em Cabo Verde, a não ser que só mandasse exemplares das mesmas espécies. Excluindo a marinha, que dizem não ser rica, a fauna é de facto pobre, tal como explicara na sua primeira carta a Matiazzi. Se há invertebrados terrestres, que não insectos, nada me indicou que tivessem sido estudados, excepto no âmbito muito específico da parasitologia animal e humana. Em matéria de vertebrados, existem poucas famílias de répteis e aves, entre os quais se contam alguns endemismos, como o lagarto, a Tarentola gigas (uma osga), e a Alauda rasae, um Passeriforme. No seu tempo, é possível que já
tivessem sido introduzidos os macacos (por acidente, alguém pedira um macaco da Guiné e muitos teriam sido enviados, que fugiram das gaiolas, conta algures René de Naurois); e havia cabras selvagens (de que envia um indivíduo anómalo). Hoje, pondo de parte os domésticos, só alguns quirópteros e roedores (Mus musculus) rcpresentam a fauna mamalógica, e nem todas as ilhas são por eles habitadas, Não descobri referências à sua existência no Raso e no Branco. Esta pobreza está de resto de acordo tom o povoamento das ilhas oceânicas, caracterizado pela imigração e número limitado de espécies residentes. Outras características das faunas insulares são o nanismo e o gigantismo. De gigantismo há dois casos na herpetocenose, o do Macroscincus e o da Tarentola gigas, que viviam em simpatria no Branco e no Raso. Que saiba, não há espécies anãs. E também não vi alusão à perda de asas dos insectos, nos trabalhos de entomologia folheados.
Admitamos que Feijó podia ter-se dedicado mais à malacologia ou aos peixes, por exemplo. Acontece que as febres o debilitaram, está continuamente acamado, sem ninguém que lhe dê um copo de água. Dinheiro, não tem, o governo tarda em lhe pagar o subsídio ou esquece-sc de tai pormenor, o que aflige infinitamente este homem, cuja família se encontra sem recursos na metrópole. Se quisermos estabelecer comparações acerca de como o governo tratava uns e outros, refira-se que Vandelli, em Lisboa, se governava muito bem, acumulando directorias e funções, recebendo os lucros da fábrica de faianças, e usando os seus conhecimentos de economista para assessorar a Junta do Comércio. Segundo Link, excepcionalmente bem informado para quem só está de passagem a herborizar com Brotero em Trás-os-Montes, recebia anualmente oito mil cruzados (Daget & Saldanha). Mesmo na ignorância de quanto à época isso representaria, facilmente se lhe inveja a fortuna. O pobre naturalista João da Silva Feijó passava fome em Cabo Verde e a família fome passava na metrópole.
De outra pane, Feijó não conseguia arranjar carregadores suficientes, drama sofrido por todos os exploradores, mesmo mais tardios, como Capelo, Ivens e Scrpa Pinto. É extraordinário como os patrões, na sua cegueira ou ingenuidade, caracterizam a psicologia dos nativos, como se fosse fruto de uma biologia deficiente e não da revolta contra os que precisavam de estabelecer hierarquias de inferiores para se sentirem superiores, justificando assim o seu direito a escravizar. Feijó queixa-se de que para transportar dois ou três fardos eram precisos trinta homens, tal a sua moleza. Para três fardos bastam três homens, se forem livres e justamente tratados.
Pelos anos de 1730, escreve Feijó, agora no "Ensaio económico sobre as ilhas de Cabo Verde" (1815),
havia grande número de habitantes: 25 centos na capital [Cidade Velha, a escassos quilómetros da Praia] e de 12 a 13 centos na ilha do Fogo. Porém, a quantidade foi diminuindo, à proporção da falta do seu comércio, e das repetidas esterilidades que vieram a padecer, de sorte que depois do último flagelo de 1775, ficaram reduzidas ao terço daquele cômputo.
Noutro passo, conclui:
A religiosa piedade dos principais moradores destas duas Ilhas [Santiago e Fogo] que, persuadidos de fazerem uma obra meritória, e de expiação para as suas almas, deixavam libertos uma grande porção dos seus escravos, fez que estes, para se não sujeitarem ao trabalho, e subordinação aos Brancos, passassem a povoar as adjacentes, aonde juntos com os Escravos dos Donatários daquelas Ilhas, que ali estes possuíam para o cultivo das suas herdades, constituiram as suas povoações, onde todos de ordinário são Pretos fulos, e alguns Mulatos, produzidos da comunicação das suas Pretas com Brancos Portugueses e Estrangeiros, que ali concorrem a comerciar diariamente. Consta que foram assás povoadas até à grande fome de 1749, e à de 1775; hoje porém não são os seus habitantes em grande número.
Mais de cem anos depois, Francisco Newton também sofrerá os efeitos das crises (nome que os habitantes dão aos períodos de seca), que o atingiram pessoalmente:
A febre tende a desaparecer, mas a fraqueza é excessiva, pois não há que comer, a não ser mandioca, muito pouco milho, e nem sequer uma galinha, pois vai tudo para S. Vicente, onde cada ovo está a 60 réis. É uma perfeita calamidade para este pobre povo. (Carta de Ribeira Brava, 18 de Novembro de 1901)
Terminando a lista dos motivos pelos quais Feijó poucos animais coligiu: mal se consegue deslocar em terrenos onde, lamenta-se, às vezes precisava de andar de gatas e correr o risco de se despenhar nalgum precipício.
Nem nos nossos dias todos os naturalistas se aventuram em certas ilhas. Os Bannerman, que não desembarcaram no Branco nem no Raso, apesar de ornitólogos, e de no Raso existir uma ave única no mundo, confinada a um nicho do tamanho de um campo de futebol, a Alauda rasae, louvam a audácia dos que o fizeram: Boyd Alexander, Leonardo Fea, José Correia, W. Bourne, e em particular a de Padre René de Naurois, "o mais corajoso de todos", como distinguem. Na verdade, Padre R. de Naurois recebeu de De Gaulle uma condecoração por actos de heroísmo praticados aquando do desembarque dos aliados na Normandia. Ora, se é preciso coragem para desembarcar nas Ilhas Desertas nos nossos anos de 60 a 80, imaginemos o que não passou João da Silva Feijó nos finais do séc. XVIII, e quantas vezes terá visitado o Branco e o Raso. Diria que uma vez única em dez anos, logo no início da comissão, quando ainda tinha forças e saúde (se bem que, finda ela, voltasse a Cabo Verde como secretário do Governo da Província), aquela vez de que resta a lista já comentada. Mesmo o interior de outras ilhas, onde residiu, deve ter sido raramente explorado, à excepção da ilha do Fogo. Plantas, pedras e terras encontrava-as ele sem precisar de se afastar das povoações. Animais, não. Sem transportes, sem caminhos, sem dinheiro, sem carregadores, sem saúde, sem sequer boa vontade, pois Padre Martinho de Melo e Castro se esquecia de lhe pagar o ordenado, nem no interior de S. Nicolau se teráaventurado muito, e essa foi uma das ilhas em que morou durante mais tempo.
Com tudo isto quero concluir o seguinte: na época de Feijó, as ilhas, mesmo as mais densamente habitadas, estavam despovoadas no interior (e já sabemos que na capital, outrora muito populosa do ponto de vista de Feijó, houvera 2500 habitantes, reduzidos a um terço no seu tempo). Como se sabe, quando Diogo Gomes e António da Nola, em 1460, arribaram ao arquipélago, encontraram-no desabitado. As ilhas mais cedo colonizadas foram as mais hospitaleiras: Santiago e Fogo, no grupo de Sotavento. Santo Antão e S. Nicolau, no grupo de Barlavento, só foram povoadas no séc. XVIII. Em S. Vicente, descoberta em 1462, lançam-se cabras (como de resto se fez noutras), mas a ilha é desolada, árida, por isso a colonização só se tenta em 1794 (quando Feijó acaba a viagem filosófica), com umas dezenas de presos e casais portugueses. A tentativa falha, falharão também as seguintes. Em 1834, havia 340 habitantes em S. Vicente. Na totalidade do arquipélago, em 1807, havia menos de 60.000. Números que aliás variam brutalmente, consoante a extensão e repetição cíclica das secas. Só para se ficar com a ideia do que é uma crise, em 1775 morriam de fome, na Brava, 1470 pessoas. Em 1831, a população da ilha do Fogo elevava-se a cerca de 17 mil almas. Em 1834, finda a crise de 1830-1833, descia a 6 mil. Ao todo, morreram de fome no arquipélago, nestes 3-4 anos, 30 mil pessoas (números de O. Ribeiro). Durante esta crise, o governo provincial desterrou trinta criminosos para o ilhéu Branco, onde sobreviveram alimentando-se de M. coctei.
Para concluir: as crises, a subsequente mortalidade humana, a colonização irregular e incipiente, a maior densidade populacional concentrada nas poucas povoações portuárias, devem ter permitido a certas espécies adiarem um pouco a morte inevitável, se bem que também elas sofressem o efeito das secas.
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