Além da carta de Arduíno citada por Carlos França que, como lemos, não tem peso material, as únicas provas documentais que conheço susceptíveis de incriminar Vandelli vêm no livro de Daget e Saldanha (1989). São duas cartas do italiano para Lacepède, zoólogo do Museu de Paris, escritas pouco tempo antes de Saint-Hilaire levar para França os exemplares que escolhera no Gabinete da Ajuda. É indispensável lê-las na integra:
Lisbonne 12 de mars 1808
A son Excellence Ie Grand Chancelier de Ia Légion d' honneur,
J' ai remis à Son Excellence Monseigner Ie General Junot une lettre et quelques dessins de poissons pour remettre à Votre Excellence. Je prie Votre Excellence de me faire savoir si (elle) Ies a reçus pour lui (en) envoyer d' autres copies en cas en avoir perdus.
Monseigneur Ie Vicomte de Barbacena a bien voulu me faire Ie plaisir de remettre à Votre Excellence un poisson nouveau et Ia langue de I' osteoglossum que j' ai déjà envoyé. Toutes Ies occasions que j' aurais, j' envoyerais à Votre Excellence des poissons ou Ies dessins.
Votre três humble et três dévoué serviteur
D. Vandelli
Monseígneur,
J'ai reçu avec très grand plaisir Ia lettre avec laquelle vous m' avez honoré, m' assurant que vous a plu l' envoy que j' ai osé vous faire.
Je n'ai envoyé a plus long temps le catalogue et les dessins que vous désiriez parce que j' attendais les remettre par mon fils qui allait à Paris pour se perfectionner dans les sciences naturelles, une maladíe empêcha ce voyage et à présent il lui sera très difficile sans votre Protection envers ce Gouvernement. Le Prince duquel il était page lui avait promis un emploi pour pouvoir s'entretenir dans le voyage et son séjour à Paris.
Les dessins que j'ay l' honneur de vous remettre sont 1º une nouvelle espéce de Loricaria hirstrix, 2º un nouveau genre de poisson qui à cause de sa langue osseuse avec laquelle les habitants du Para liment une composition qu'ils font de fruits qu' on apelle Guarana, mon disciple Ferreira qui I' a trouvé dans le Rio Negro do Para, l'a apelé Osteoglossum: 3º Testudo planitia à deux têtes du Para; 4º Squalus glaucus pêché ici dans le Tage.
J' ai l'honneur d' être Monseigneur
Votre très humble et três obéissant Servíteur
Dominic Vandelli
Bocage ofereceu a Günther, permutou, recebeu de outrem exemplares, sem que ninguém o acusasse de depredar em favor alheio o património nacional. Vandelli tinha colecções privadas, era delas e das do capitão Vandeck que provinham os espécimes estudados nas aulas, em Coimbra. Os primeiros indivíduos de Mabuya fogoensis que Bocage teve oportunidade de estudar foram-lhe oferecidos por Günther, das colecções particulares deste. Link só herboriza no Brasil mediante contrato com Vandelli, precisou de autorização para apanhar plantas em território português. Anos mais tarde, os museus da Europa capturam M. coctei até não sobrar um esqueleto, uma pele, um osso, como vestígio da sua passada existência em ilhéus portugueses, e não se dá conta de os estrangeiros precisarem de autorização para depredarem o nosso património natural.
Veremos Bocage, embora com avareza, a enviar M. coctei para o estrangeiro. São dois elos de relação importantes com o exterior, que permitem a actualização científica: a permuta ou oferta de espécimes e das separatas das revistas onde eles se descrevem. Os escrúpulos de dar material levantam-se em relação a Vandelli, só porque este, para além de ser O Estrangeiro e O Indesejado, sofreu o acidente de ter vivido na época em que Napoleão pilhava obeliscos no Egipto para os plantar na Praça da Bastilha, e ter recaído sobre ele a ordem do general Junot, para entregar à França o que Saint-Hilaire quisesse levar.
A traditio diz que o ladrão não é o Imperador, sim o director do Jardim Botânico da Ajuda, que desse modo teria cometido crime de traição contra Portugal (Dicion. Biogr. Univ. Aut.). Sirva para alguma coisa a escolástica, e releia-se o magister dixit de Junot transcrito no início deste trabalho, segun-o o qual pertence a S. M. o Imperador Napoleão Bonaparte o argumento de autoridade responsável pelo desfalque cometido nas colecções de todos os museus públicos e privados, religiosos e profanos, de nobres ou plebeus, existentes em Portugal.
Vandelli não se aproveitou do trabalho de Alexandre Rodrigues Ferreira, quem afinal se aproveitou do que Vandelli oferecera, cópias de desenhos, e espécimes duplicados, foram os que descreveram; Shaw é autor de Vandellius lusitanicus; a Vandellia é de Lineu; Cuvier descreveu Osteoglossum Vandellii. Se estes mestres o homenagearam, designando as espécies com o seu nome, foi por respeito e nada de reprovável existir na oferta, ou, em caso de desonestidade, mandava a decência que devolvessem os exemplares.
Considera-se desdenhoso o tratamento de "discípulo" que Vandelli dá a Alexandre, mas Alexandre partiu para o Brasil com vinte e três anos, e nada de mais curial, no protocolo escolástico, do que a relação magister/scholar, idêntica à de pater/filius. Isto tem na origem ritos de passagem, implica graduações, "grados", "grãos" ou "graais", não chegara ainda A Hora de o aprendiz ser investido na categoria de feiticeiro, nem de contemplar o cálice em que José de Arimateia recolhera o sangue do Crucificado. Tão aprendiz é Alexandre, que troca as peças anatómicas dos seus exemplares, atribuindo a língua óssea a uma espécie a que não pertencia. Isso leva Valenciennes a comentar: Cet os provient d' un Vastrès; mais j'ai tout lieu de penser que le naturaliste portugais a cru que Ia langue osseuse appartenait à l'espèce qu 'il avait dessinée (Daget e Saldanha, 1989).
Repreende-se Vandelli por, na Florae et Faunae Lusitanicae specimen, apresentar um nomen nudum, nome sem descrição da espécie. Estamos no séc. XVIII. No seguinte, espera-se que mais avançado, os autores passam a vida a descrever como novas as espécies já conhecidas ou vice-versa. Cuvier descreve como Lacerta scincoides o crânio do Macroscincus, quando os Lacerta pertencem à família Lacertidae e não à Scincidae. Duméril e Bibron, ao darem como Euprepes diferente bocado do mesmo lagarto, descrevem, diria que platónica e já não aristotelicamente, a ideia de Cocteau, tendo apenas a sombra da forma do Euprepes projectada na caverna, visto que o osso estava noutra esfera do Museu. Mais grave ainda: silenciam a anomalia do facto. Em 1911, séc. XX, Bettencourt-Ferreira escreve um artigo sobre a tartaruga-lira. Em nota infrapaginal, para ninguém ver, diz que a espécie é de Vandelli, e que Lineu a incluiu no Systema Naturae como Testudo coriacea Vandelli. No corpo do texto, para todos verem bem, diz que a espécie é de Lineu. Quem peca mais? E porque?
Por que motivo só se censura Vandelli, quando todos os cientistas, ao longo de séculos, erraram tanto ou mais do que ele? Errar é próprio dos homens, Vandelli errou, logo Vandelli não devia só por isso ser considerado um delinquente.
O leitor há-de estar lembrado de que uma das mais graves acusações lançadas sobre o italiano é a de que este, para se manter no cargo de director da Ajuda, pondo Alexandre fora de combate, destruirá as colecções do brasileiro. Vandelli, nas horas livres deixadas pela direcção do Jardim da Ajuda, fabricação de balões e serviços de chá de faiança, estudos químicos, e assessoria à Junta do Comércio, andara a furtar etiquetas e a plantar as dos peixes nas borboletas e por aí fora. Prova insuspeita de que havia falta de etiquetas em todos os exemplares, e não só nos brasileiros, já a forneceu Feijó. O M. coctei não tinha indicação de proveniência, e não se trata de acaso, eram quatro exemplares, de Feijó e não de Alexandre. Até sabemos que Feijó só excepcionalmente indicava o local onde colhia o material botânico, mineralógico e zoológico. Mais uma prova de que ninguém tocou em nada fornece-a agora Saint-Hilaire, ao relatar como encontra os depósitos das colecções no Gabinete da Ajuda, quando procede ao inventário do que pretende levar para França:
(Le cabinet) n'est rien en comparaison des magasins. Des caisses en bon nombre sont pleines dans Ieurs différents tiroirs, Ies unes d' insectes, les autres d'oiseaux, celles-Ià d'herbiers, celles-ci de minéraux, de produits chimiques, etc... J' ai vu plusieurs herbiers, les uns de Ia côte d' Angola, Ies autres de plusieurs autres côtes d' Afrique et des Indes, des herbiers du Para, du Maragnon, de Ia Rivière Noire, etc. Tous sont vierges, on ne s'est pas donné Ia peine de les ouvrir: ni une plante, ni une idée botanique n'en sont sorties. (Daget e Saldanha, 1989)
Nem Vandelli mexeu nas colecções, nem os naturalistas colheram pouco material, nem ele estava em mau estado. Em 1808, havia bom número de caixas e gavetas com colecções virgens. Ninguém dali retirara uma planta, uma ideia botânica, uma etiqueta a dizer "Pará" ou "Cabo Verde", de outro modo Saint-Hilaire não diria "e de várias outras costas de África e das Índias". Alexandre regressara em 1795, incumbiram-no de inventariar os haveres do Gabinete, e não consta que tenha apresentado queixa contra faltas ou deterioração dos exemplares. Qualquer pessoa, por mais tímida que seja, ataca como um tigre, se suspeita de sabotagens do seu trabalho.
As cartas a Lacepède, que revelam? Primeiro é preciso saber quem é Lacepède: além de notável cientista da época, uma pessoa que muito respeitosamente se trata por Monseigneur, Grand Chancelier de Ia Légion d' honneur, em suma: um titular, pessoa influente, homem de Estado. Vandelli pede-lhe protecção, numa data em que é não só perigosíssimo ser estrangeiro como amigo de estrangeiros. Franceses, em 1808, são o inimigo, eles tomaram conta de Portugal. Ninguém distingue entre Robespierre e Junot, esse Junot que garantia já não haver jacobinos em França, tendo ele acabado pessoalmente com os últimos radicais. A nossa realeza, apavorada e impotente, fugira para o Brasil. A rainha enlouquece, diz-se que pelo terror da guilhotina e de Pina Manique, e o termo Terreur pertence à história dessa mesma Revolução Francesa que desfraldara o estandarte da Liberté, Egalité et Fraternité, publicara a "Declaração dos Direitos do Homem", e entretanto ia guilhotinando cientistas como Lavoisier.
O que estas cartas demonstram é que Vandelli, se não era jacobino, no mínimo simpatizava com os franceses. Tanto basta para os portugueses o condenarem. E os outros portugueses? Aqueles que assinaram com ele a declaração de boas-vindas a Junot, seguindo de resto os conselhos do regente? Os portugueses estão divididos entre revoltosos e pactuantes com o novo status quo. Vandelli assinou em segundo lugar, mas era interessante saber quem encabeçava a lista e quantos a rubricaram. De resto, o facto de assinar em segundo lugar só demonstra a sua projecção internacional. Fosse ele um obscuro intelectual ou político e nem em último lugar viria. Tal como era interessante saber que destino tiveram os portugueses que assim baixaram a cabeça ao invasor. Porque nem todos a terão baixado ao assinar, houve farsas, diplomacias, jogos duplos, e só por uma rubrica não podemos adivinhar de que lado estava Vandelli. Sabemos é que os ingleses, aliados de Portugal contra os franceses, na Guerra Peninsular, intercedem em seu favor para ele não morrer desamparado na Terceira, em idade já muito avançada. Foi esse o papel desempenhado pela Real Sociedade de Londres. Mas parece que a história é muito linear e escrita só numa face do papel. Vandelli deve ter sido pessoa de grande prestígio e respeitabilidade, para obter favores de tão alto e de lados tão adversários. E que oculto poder teria uma academia de homens de ciência, como a Royal Society, para subtrair à pena um estrangeiro?
A ideia política de Napoleão era unificar a Europa, algo de tão sedutor como hoje. Na "História da Europa" encomendada pela Comissão Europeia, prefaciada na edição portuguesa pelo Presidente da República, Mário Soares, o historiador francês Duroselle (1990) dá algumas razões da derrota imperial:
III. O fracasso de uma comunidade económica europeia: Bloqueio Continental e sistema continental.
O egoísmo francês de Napoleão. Na falta de uma Europa política igualitária, poderia ter-se pensado numa comunidade económica europeia. Era o sonho dos economistas, geralmente discípulos do grande pensador inglês Adam Smith, e em especial do seu principal discípulo francês Jean-Baptiste Say (1767-1832). (...) Napoleão - segundo se admite - era pouco competente no campo da economia política. (...) Achava que se tornava necessário acumular o máximo possível de ouro nos cofres franceses, públicos ou privados, graças à alfândega com os seus prolongamentos, proibições, regime aduaneiro, etc. Napoleão actuou sempre de forma que os progressos económicos pertencessem à França, com prejuízo, se necessário, da agricultura e da indústria dos países vassalos. Estes adquiriam, por consequência, um sentimento cada vez mais marcado de que se trabalhava para a França, e não para benefício pessoal.
Resta saber se daqui a dez anos não estaremos a ser perseguidos por europeístas ou nacionalistas, visto que é sempre destas uniões e imperialismos que depois surgem as "lutas étnicas" (expressão de Konrad Lorenz). Não cabem entanto aqui digressões sobre a política actual, sim entender o que está por detrás da condenação de Vandelli, por isso voltemos às cartas a Lacepède.
O que mais salta à vista nelas é a sua substância semiótica, autêntico atestado de inocência: Vandelli dominava mal o francês, e além disso tem dificuldades de expressão. Mais claramente: escreve mal em qualquer língua, tropeça a cada passo, o registo do seu discurso é escrito, isto é: não tem marcas de oralidade. A oralidade é o travejamento retórico do género literário mais praticado nesta época, se não em todas, e que no século anterior tivera como coroa de glória Padre António Vieira. Designa-se, por quanto nele há de oral, oratória. Oratória ou sermonística. A epistolografia, que também domina, mas agora em texto publicado, requer igualmente muita oralidade. E o leitor pergunta: como é que a insuficiência literária das cartas a Lacepède prova a inocência de Vandelli?
Prova, sim, prova que o único testemunho escrito abonatório da sua pessoa, que eu conheça, claro, não saiu da sua pena sob a forma de cartas anónimas.
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