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Sá de Miranda, o que não muda na mudança |
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É por na Carta a D. João III se ter dito “Homem de
um só parecer, / Dum só rosto, uma só fé, / De antes quebrar que torcer, /
Ele tudo pode ser, / Mas de corte homem não é” que Francisco Sá de Miranda
(Coimbra, 1481 — Amares, 1558) hoje se recorda muito mais como autor de
honra do que como honra das Letras. Ele é um cedro do Líbano na nossa
História da Literatura, símbolo de incorruptibilidade, o que não deixa de
ser curioso: se por um lado não vergou, do outro foi o homem da mudança,
aquele cuja bagagem cultural permitiu esse extraordinário florescimento
das nossas Letras protagonizado pel’
Os Lusíadas, emblema da língua e da Pátria portuguesa. Claro que tal
só foi possível por Sá de Miranda ser um grande poeta, nenhum autor de
inferior categoria teria capacidade de uma liderança cultural que não
acaba com o Renascimento, antes atravessa os tempos até aos de hoje, dando
de beber quer a’ O Guardador de
Rebanhos quer à moldura clássica de Sophia de Mello Breyner Andresen e
à luminosidade de Eugénio de Andrade.
É bem verdade que na sua obra, diversificada na
forma e rica nos temas, desempenha papel de relevo a crítica de costumes,
e entre estes o de maior monta seja a corrupção política e a do clero. Foi
aliás por se ter metido a defender Bernardim Ribeiro, seu amigo e
companheiro de viagem na Itália, que se viu envolvido em intrigas da corte
que o forçaram a exilar-se nas terras minhotas, onde era proprietário e
onde acabou por morrer, já idoso, e decerto cada vez mais infeliz com o
rumo que ia tomando Portugal: nunca os poderes político e religioso tinham
alcançado tais alturas de corrupção, e desprezo pelo que hoje se engloba
na carta dos direitos humanos, com a Inquisição a queimar pessoas vivas na
praça pública em nome de Deus: “los aires andan corrutos / los hombres
cada vez más”, sintetiza, na écloga «Alexo».
É um homem moderno na temática, Sá de Miranda, e
não me refiro apenas a temas como o da fonte de lágrimas, que por Camões
fluirá até nos nossos dias encontrar um Herberto Helder, num destemor que
contraria o preceito machista de que os homens não choram, o combate entre
o amor e a razão, a mudança na paisagem e a dor que não muda, a felicidade
da vida no campo, sem esquecer a tão prolixa e fecunda mitologia
greco-latina, temas e assuntos todos eles característicos do Renascimento.
Porém Sá de Miranda não cultivou só os temas e as formas trazidos
da viagem a Itália que inauguraram entre nós o período renascentista - o
soneto, a canção, a sextina, as composições em tercetos e em oitavas e os
versos de dez sílabas - ele manteve-se fiel à graça das artes maior e
menor, como se diz da redondilha. É por isso um homem da transição, aquele
que sabe combinar a mudança com o que deve permanecer imutável. No seu
tempo, o que mais deve ter chocado foi certamente o teatro em prosa,
habituada a corte aos autos de Gil Vicente, com quem parece ter Sá de
Miranda entrado em conflito, a pretexto de num auto Gil Vicente ter
satirizado os clérigos com filhos, o que o teria ferido, filho como era de
padre. São suposições. Mais importante que o conflito é o facto de Sá de
Miranda ter travado relações com Gil Vicente e Bernardim Ribeiro, tal como
conheceu os renovadores, fora de Portugal, como informa Rodrigues Lapa
(Francisco Sá de Miranda, Obras
completas, 1960): a longa estadia em Itália “deu-lhe tempo para
conhecer de perto as grandes figuras literárias de então – Bembo,
Sannazzaro, Giovio, Rucellai, Tolomei, Sandoletto, Ariosto. Felizmente
para ele, tinha em Itália alguém que, pertencendo ainda à sua família, por
parte dos Sás Coluneses, facilmente o poderia relacionar com os maiores
escritores de então: a célebre Vittoria Colonna, a ilustre literata e
amiga platónica de Miguel Ângelo.” Passando por Espanha no regresso a
casa, Sá de Miranda pode ter conhecido Garcilaso de La Vega e Juan Boscán,
os autores que desempenhavam na corte espanhola o papel modernizador que
desempenhou na portuguesa Sá de Miranda.
A modernidade da temática mirandina mais cativante
para nós, homens do século XXI, provém da crítica de costumes que aflora
em toda a sua obra, seja nas peças
Vilhalpandos e Estrangeiros,
seja na epistolografia, em que avulta a “Carta” a D. João III (em
redondilha maior, o verso de sete sílabas), seja nos sonetos, nos idílios
ou nas éclogas. Quando Sá de Miranda se atira aos corruptos, vivam eles
nos gabinetes governamentais ou nas sacristias, não fora o seu discurso
erudito e bem trabalhado, e a língua em que se exprime, nem sempre o
português, quase o ouviríamos na boca de recentes candidados nas eleições
presidenciais.
Era um homem muitíssimo culto, que manejava com
mestria as duas línguas em que habitualmente se traduz a nossa literatura
até depois do período filipino, o português e o castelhano, que conhecia
em pormenor a complexa panóplia das divindades, trasladadas para o mapa
lusitano, quando transforma os rios das suas terras de exílio em Ninfa
Neiva e Ninfa Lima ou, como acontece na
Fábula do Mondego, em que este
se torna Letes, passagem para Orfeu ir ao Hades buscar Eurídice. Mesmo
quando descreve o pendão da cidade de Coimbra, a sua pena acrescenta mito
latino ao que Fernanda Frazão e Gabriela Morais, em
Viagem da serpente por Portugal,
defendem ser pré-existente mito celta:
«Por nueva prueva del antigo cuento,
que mi flaca Talía os há cantado,
conservólo Coimbra en su pendon,
como hoy cad’año el aire desplegado,
la Ninfa en forma d’un encantamiento,
que la guarda un drago y un léon»
Além disso, Sá de Miranda devia conhecer bem as
Leis, por ter frequentado as suas aulas em Alfama, ainda a Universidade
residia em Lisboa. E conhecia, à boa maneira do naturalismo que se
instalava na arte, o quotidiano, desde a política e tudo quanto aprendera
nas suas viagens, àquilo cujo interesse para nós não podia ele sequer
adivinhar. É o caso de nos versos “Os meus, se nunca acabo de os lamber,/
como ussa os filhos mal proporcionados” nos prestar a informação de que
muito provavelmente no seu tempo o urso ainda fazia parte da fauna
portuguesa, ou, num outro soneto, “A morte de sua mulher”, falar das
areias ricas em ouro do Tejo e do Douro. Estas informações são valiosas
nos nossos dias para os investigadores em História e Filosofia das
Ciências.
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POEMAS DE SÁ DE MIRANDA
O SOL É GRANDE
O sol é grande, caem co’a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d’alto cai acordar-m’-ia
do sono não, mas de cuidados graves.
Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração qu’em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.
Eu
vira já aqui sombras, vira flores,
vi
tantas águas, vi tanta verdura,
as
aves todas cantavam d’amores.
Tudo
é seco e mudo; e, de mestura,
também
mudando-m’eu fiz doutras cores:
e
tudo o mais renova, isto é sem cura!
QUE FAREI QUANDO TUDO ARDE?
Desarrezoado amor, dentro em meu peito,
tem guerra com a razão. Amor, que jaz
i já de muitos dias, manda e faz
tudo o que quer, a torto e a direito.
Não espera razões, tudo é despeito,
tudo soberba e força; faz, desfaz,
sem respeito nenhum; e quando em paz
cuidais que sois, então tudo é desfeito.
Doutra parte, a Razão tempos espia,
espia ocasiões de tarde em tarde,
que ajunta o tempo; enfim vem o seu dia:
Então não tem lugar certo onde aguarde
Amor; trata traições, que não confia
nem dos seus. Que farei quando tudo arde?
ANTRE TREMOR E DESEJO
Antre tremor e desejo,
Vã esperança e vã dor,
Antre amor e desamor,
Meu triste coração vejo.
Nestes
extremos cativo
Ando
sem fazer mudança,
E
já vivi d'esperança
E
agora vivo de choro vivo.
Contra
mi mesmo pelejo,
Vem
d'ua dor outra dor
E
d'um desejo maior
Nasce
outro mor desejo.
[YO NO LA ENTIENDO BIEN, MAS ESTA FUENTE]
Yo no la entiendo bien, mas esta fuente
habla comigo; y horas se m’antoja
como de tantas quexas, que se enoja,
horas que me consuela y que las siente.
Trúxome aquí un cuidado, y no consiente
que me vaya a outra parte y que m‘ acoja
de los sueños en que ando, juzgue, escoja.
Ya vergüenza es tardar tan luengamente.
Gran fuerza se m’ ha hecho a los mis ojos,
gran al entendimiento, andando así
de veras ocupado en mis antojos.
No sé lo que me ví, ni que no ví,
quien puso tal sabor en mis enojos,
apesar (que es peor) tanto de mí.
COMIGO ME DESAVIM
Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.
Com
dor da gente fugia,
Antes
que esta assi crecesse:
Agora
já fugiria
De
mim, se de mim pudesse.
Que
meo espero ou que fim
Do
vão trabalho que sigo,
Pois
que trago a mim comigo
Tamanho
imigo de mim?
Ó MEUS CASTELOS DE VENTO
Ó meus castelos de vento
que em tal cuita me pusestes,
como me vos desfizestes!
Armei castelos erguidos,
esteve a fortuna queda,
e disse:– Gostos perdidos,
como is a dar tão grã queda!
Mas, oh! fraco entendimento!
em que parte vos pusestes
que então me não socorrestes?
Caístes-me tão asinha
caíram as esperanças;
isto não foram mudanças,
mas foram a morte minha.
Castelos sem fundamento,
quanto que me prometestes.
quanto que me falecestes!
[QUANDO EU, SENHORA, EM VÓS OS OLHOS PONHO]
Quando eu, senhora, em vós os olhos ponho,
e vejo o que não vi nunca, nem cri
que houvesse cá, recolhe-se a alma a si
e vou tresvaliando, como em sonho.
Isto passado, quando me desponho,
e me quero afirmar se foi assi,
pasmado e duvidoso do que vi,
m'espanto às vezes, outras m'avergonho.
Que, tornando ante vós, senhora, tal,
Quando m'era mister tant' outr' ajuda,
de que me valerei, se alma não val?
Esperando por ela que me acuda,
e não me acode, e está cuidando em al,
afronta o coração, a língua é muda.
[AQUELA FÉ TÃO CLARA E VERDADEIRA]
Aquela fé tão clara e verdadeira,
a vontade tão limpa e tão sem mágoa,
tantas vezes provada em viva frágua
de fogo, e apurada, e sempre inteira;
Aquela confiança, de maneira
Qu’ encheu de fogo o peito, os olhos d’ água,
por que eu ledo passei por tanta mágoa,
culpa primeira minha e derradeira,
De que me aproveitou? Não de al por certo
que dum só nome tão leve e tão vão,
custoso ao rosto, tão custoso à vida.
Dei de mim que falar ao longe e ao perto;
ria; a si se consola a alma perdida,
se não achar piedade, ache perdão.
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Índice antigo |
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Maria Estela Guedes
(1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov
LIVROS
“Herberto Helder,
Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979; “SO2” .
Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler
Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”,
Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial
Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa,
1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria
Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À
Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de
Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu
Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários :
Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em
colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora,
1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”.
Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas
Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis
Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007;
“Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na
Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”.
Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Geisers”. Bembibre, Ed.
Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas
modernos em Portugal”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010.
“Tango Sebastião”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2010. «A obra ao
rubro de Herberto Helder», São Paulo, Editora Escrituras, 1010;
"Arboreto». São Paulo, Arte-Livros, 2011; "Risco da terra", Lisboa,
Apenas Livros, 2011; "Brasil", São Paulo, Arte-Livros, 2012; "Um
bilhete para o Teatro do Céu", Lisboa, Apenas Livros, 2013;
Folhas de Flandres, Lisboa, Apenas Livros, 2014; dir. CadeRnos
SuRRealismo Sempre, na Apenas Livros. Nessa coleção, "Surrealismo
incertae sedis, 2015".
ALGUNS COLECTIVOS
"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de
Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom
homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte.
“O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual.
Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”.
Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009.
Entrada sobre a Carbonária no Dicionário Histórico das Ordens e
Instituições Afins em Portugal, Lisboa, Gradiva Editora, 2010; «A
minha vida vista do papel», in Ana Maria Haddad Baptista & Rosemary
Roggero, Tempo-Memória na Educação. São Paulo, 2014.
TEATRO
Multimedia “O
Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação
Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação
de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de
Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de
Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando
Alvarez e interpretação de Maria Vieira.
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