Muito bom, este livro de Maria Azenha é tecido em
negativo e minimalista: parece que o universo cabe em um só verso. Ao
entrarmos no campo semântico, o da pluralidade de interpretações que a
obra de arte consente, podemos defrontar-nos com o máximo contido no
mínimo: um pequeno livro tece uma rede de alusões ao século XXI, em
diversas vertentes, entre as quais o retrato do indivíduo, da família, da
sociedade, o papel representado pelos Estados, a situação apocalíptica em
que se encontram países e nações e uma Europa que posa desnuda e morta.
São 33 rápidos poemas, o último com apenas duas linhas,
últimas palavras que apelam para a maior desgraça humanitária da Europa
nos nossos dias, fulcro de conflitos internacionais. Intitula-se
“Migração” e é por esse final que principio:
Limparam nossos lábios com a poeira do deserto.
Cada um que sai leva as últimas palavras.
Não significa o total de 33 poemas que precisemos de os
dividir ou multiplicar para alcançarmos pela matemática alguma revelação
mais substancial. Não, se aos 33 acrescentarmos o “Poema contínuo” da
página 49, logo verificamos que a revelação não é de números, sim de
nomes. Então, a nossa necessidade será a de acrescentar Herberto Helder a
vários autores interpelados no livro. Ao contrário de Herberto, que fica
na zona escura, sem o nome explicitado, como convém ao Poeta Obscuro,
trazem o nome expresso Rainer Werner Fassbinder, realizador de
As lágrimas Amargas de Petra von
Kant, Jesus Cristo, Arthur Rimbaud, Pier Paolo Pasolini e também o
pintor alemão Heinrich Hoffmann, conhecido pelas suas várias
representações de Cristo, algumas das quais, se o não são, parecem ser
fruto das técnicas do claro-escuro próprias da estética tenebrista.
Então temos, para começar, um lado escuro dos tempos,
anunciado pela “Queda”, no poema inaugural, visualizada no poente: não é
um anjo que cai, como logo o pensamento decide, e o segundo poema confirma
em título, “O Anjo do desastre”, nem o mais rutilante de todos os corpos
celestes, nem é do sujeito lírico a queda. O que cai é a matéria-prima da
obra ao negro que Maria Azenha oferece à nossa sensibilidade neste pequeno
livro. Cai então o poema, maior dos símbolos, visto que contém todas as
suas criaturas, afetos e referências:
Cheguei há poucas horas.
Os sons do mundo são carvões acesos no meio do escuro.
Minha boca gizada a diamantes de sangue
rasga poentes com lenços negros de seda.
A linha do horizonte é uma águia vermelha.
O poema tomba.
Tomba o poema, negativo, como um retrato antes de ir
aos sais de revelação, na câmara escura, e tecido com nadas, ou seja,
aquilo que é residual e se opõe ao sim, aquilo que recebe carga elétrica
contrária à positiva. Capa a preto e branco, com predominância do negro, e
muitos versos em referência à noite e cenários com pouca luz, deixam
adivinhar uma oposição. Aliás, já o título,
A casa de ler no escuro, é
tenebrista. Porém as trevas só se
concebem por contrastarem com o dia claro. Essa é a técnica, vinda da
Maria Azenha pintora, que me leva a falar do tenebrismo, que conhecemos
sobretudo de Caravaggio. Consiste ele em banhar em tintas escuras grandes
superfícies da tela para fazer sobressair as carnações claras.
Podemos falar de
Obra ao negro, título de Marguerite Yourcenar, que ela mesma explica
da seguinte maneira:
«A fórmula A obra
ao negro, que dá o título a este livro, designa, nos tratados
alquímicos, a fase de separação e dissolução, que era, diz-se, a parte
mais difícil da Grande Obra. É ainda discutível se uma tal expressão se
aplicava a audaciosas experiências sobre a própria matéria, ou se
significava simbolicamente as provações do espírito ao libertar-se de
rotinas e ideias feitas. Significou, sem dúvida, uma coisa e outra,
distinta ou simultaneamente.».
Não é fácil saber se o nigredo de Maria Azenha consiste
em empreender audaciosas experiências sobre a própria matéria, como
explica Marguerite Yourcenar, ou se significa simbolicamente as provações
do espírito ao libertar-se de rotinas e ideias feitas. Nós somos
continuamente confrontados com situações que nos obrigam à própria
transformação, e n’ A casa de ler o
escuro há algumas, veremos as mais fortes e que nos tocam a todos.
Com obra ao negro e nigredo
quero chamar a atenção para o que o escuro do livro ilumina, e não é por
distração que atribuo luz às trevas. A palavra “nigredo” também faz parte
do léxico dos alquimistas, é um sinónimo de
obra ao negro, ao designar o
primeiro estado da obra alquímica, a morte espiritual. Sucedem-lhe os
estados albedo (purificação),
citrinitas (despertar) e
rubedo (iluminação). Os
alquimistas acreditavam que no primeiro passo para alcançar a pedra
filosofal, todos os ingredientes tinham de ser mesclados até formarem uma
matéria preta.
Os que leram o livro já notaram que além da queda
inicial aparecem várias situações catastróficas, entre elas a morte: seja
a mulher que se suicida, seja o cadáver do homem que vai a enterrar, a
morte física está presente, tal como a morte espiritual. Nesses casos, em
que o sentimento apela para a rosa, enquanto símbolo do amor e da
compaixão, surge uma dominante mística, ligada ao coração, que o Calvário
exprime. Falo de rosas, mas o tema da morte, na sua dimensão espiritual, é
de cravos que se ornamenta, e logo transportados na boca pelo “Anjo do
desastre” do segundo poema. Para nós, portugueses, os cravos são as flores
do 25 de Abril, e é na casa dos antigos capitães que nos encontramos.
Entre parêntesis, uma informação biográfica: Maria Azenha e eu somos dos
mais recentes sócios desta Casa e hoje estreamo-nos nela como tal.
Referências à iminência de morte da revolução tinham de entrar connosco,
não podiam ficar lá fora.
Os cravos também são ferros, usados para pregar Cristo
na cruz, como sabemos da nossa cultura cristã. Para os alquimistas, toda a
provação de Jesus até morrer no Calvário é entendida como obra ao negro.
É ele o grande morto, sem anular
outras mortes, individuais, em massa e com intenção de genocídio,
iniciáticas e criminais, passadas e presentes. Passadas e públicas foram
as mortes nos campos de concentração, haja em vista Auschwitz, no poema “A
noite da europa”, presentes são as dos desalojados pelas guerras e pela
fome que migram para uma Europa que também se apaga. Apaga-se em “Lesbos”,
por exemplo, nome de ilha duplamente simbólico, dos raros poemas, se não
for o único no livro, em que cintila a palavra “esperança”, como farol na
tela tenebrista. Tão nigredo como a morte de Cristo é então a morte do
velho continente, personagem no poema intitulado “Europa”, em que o abismo
por nós mesmos cavado é testável com fio de prumo:
É uma estranha morta.
Os braços fazem de escuro.
O céu é sete vezes horto.
O chão,
um fio de prumo.
Uma gruta encostada ao seu ombro
navega dentro dum túmulo.
Chove desesperadamente.
Chove de novo.
Porém há outros mortos, mais humanos, se bem que
simbólicos do mesmo modo, suficientemente importantes para darem título à
obra. Vejamos o poema “A casa de ler no escuro”, onde se ilumina o cadáver
do homem:
O poema é um quarto escuro
onde sozinho entras.
Mais negro ainda é o aposento
onde habita o teu cadáver.
Que homem morreu? – é caso para perguntar. O
Homo sapiens, certo indivíduo da
espécie, ou o macho? O macho em geral, na sua expressão machista, é um dos
flagelos que subsistem num tempo em que a sobrevivência da espécie,
abençoada pela Bíblia com o imperativo “Crescei e multiplicai-vos”, deixou
de exigir a procriação. Hoje dispomos de técnicas para nos multiplicarmos
sem necessidade de ato sexual. Uma vez postas em prática no futuro, de um
lado deixa de se justificar a educação para o machismo, de outro
libertam-se as energias sexuais para o amor, o prazer, o convívio social e
outras finalidades de um mundo agora de ficção científica de que nem
suspeitamos.
Retrato tenebrista do mundo e da Europa num século XXI
que se esperava civilizado, de grandes progressos humanitários e
espirituais e não apenas progresso tecnológico,
A casa de ler no escuro é a
câmara escura em que a autora vai decifrando os sinais do presente que
anunciam um futuro francamente tenebroso. Então não há esperança? –
perguntamos. Sim, há esperança, tinha que haver, numa autora dedicada às
causas sociais e humanitárias, membro de uma fraternidade que se faz
simbolizar pela cruz e pela rosa.
No meio das trevas reluz uma esmeralda, a pedra da
esperança, sim. Só uma, é uma única vez que a palavra “esperança” está
escrita, mas chega para iluminar a casa. Encontramo-la num lugar
paradoxal, onde hoje correm lágrimas, a morte e a fome pairam, devido à
deslocação forçada dos migrantes, mas que antes era símbolo de uma
delicada poesia. Intitula-se “Lesbos” o poema. Acredito que a esperança
que nele rebrilha é a única arma capaz de vencer a catástrofe da família,
do desgoverno, da violência, da guerra e da pobreza: o amor, a compaixão
dos que praticam a misericórdia.
Estremecem
sob a angústia pesada
das pedras.
Sentem calafrios e
secam as sombras de sangue
no chão.
Com olhos de veludo negro
a mão humana
enxuga-os com o ouro do sol
e com os óleos santos de
crianças derrubadas.
Nos confins da terra,
passos
recomeçam,
sem balanço nem piedade,
a marcha da esperança.
Não será a política a dar luz à pintura tenebrista da
ilha, antes o seu passado sáfico. É como vejo a marcha da esperança:
reivindicação pelo direito ao amor, ciência de que a fraternidade é o que
nos resta para salvar.
|
Maria Estela Guedes
(1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov
LIVROS
“Herberto Helder,
Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979; “SO2” .
Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler
Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”,
Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial
Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa,
1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria
Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À
Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de
Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu
Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários :
Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em
colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora,
1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”.
Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas
Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis
Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007;
“Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na
Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”.
Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Geisers”. Bembibre, Ed.
Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas
modernos em Portugal”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010.
“Tango Sebastião”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2010. «A obra ao
rubro de Herberto Helder», São Paulo, Editora Escrituras, 1010;
"Arboreto». São Paulo, Arte-Livros, 2011; "Risco da terra", Lisboa,
Apenas Livros, 2011; "Brasil", São Paulo, Arte-Livros, 2012; "Um
bilhete para o Teatro do Céu", Lisboa, Apenas Livros, 2013;
Folhas de Flandres, Lisboa, Apenas Livros, 2014; dir. CadeRnos
SuRRealismo Sempre, na Apenas Livros. Nessa coleção, "Surrealismo
incertae sedis, 2015".
ALGUNS COLECTIVOS
"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de
Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom
homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte.
“O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual.
Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”.
Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009.
Entrada sobre a Carbonária no Dicionário Histórico das Ordens e
Instituições Afins em Portugal, Lisboa, Gradiva Editora, 2010; «A
minha vida vista do papel», in Ana Maria Haddad Baptista & Rosemary
Roggero, Tempo-Memória na Educação. São Paulo, 2014.
TEATRO
Multimedia “O
Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação
Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação
de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de
Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de
Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando
Alvarez e interpretação de Maria Vieira.
|