MARIA ESTELA GUEDES

Manuela Jardim e a sua arte miscigenagora

Filha de um madeirense e de uma guineense, Manuela Jardim é uma criatura idêntica às que defende com a sua obra, de modo mais gritante na exposição que decorre (junho de 2016) na Casa da Liberdade, em Alfama, subordinada ao título: «... na feliz miscigenação das coisas».

É um excelente tema de trabalho, uma dessas "ideias construídas", como ela alega, em título de vários objetos. Poderíamos pensar que o mulato, mestiço ou fruto de mistura étnica em nada se relaciona com a arte, mesmo com aquela que usa técnicas e materiais mistos e de origem diversa. Errado: o princípio que gera ambos é o mesmo, mas para a arte é sobretudo estético o resultado, porque a arte quer-se original e o fruto da mistura é sempre novo, portanto nunca antes visto. Se casarmos branco com branco, o resultado é sempre branco; ao fim de várias gerações, os resultados da obra em branco ficam tão deslavados, débeis e depauperados que começam a destacar-se as doenças, as malformações, a demência, aquilo que a nossa cosmovisão considera monstruoso. No mundo da pecuária, em que se preza tanto a raça pura, quando o rebanho começa a acusar sinais de degeneração, é a altura de injetar nele sangue novo, quebrando a lei consanguinidade. Hoje fala-se de genética, mas em tempos passados falava-se de sangue e de relações incestuosas. A moral proíbe-as, mas na base da moral o que viça é o conhecimento de que os frutos da consanguinidade podem ser degenerados. Que conhecimento? - eis o mistério, pois sabemos de tribos primitivas cujos costumes impedem o casamento entre jovens nascidos na mesma aldeia. E ainda agora, estava eu a ver um documentário na TV sobre paínhos, aves marítimas, oiço o locutor dizer que as colónias nidificam sempre nos mesmos locais, salvo exceções, quando as aves se integram numa outra colónia, que nidifica em local diferente, evitando assim o depauperamento genético devido à consanguinidade.

«Que conhecimento?» - perguntei. Pois, como é que os primitivos sabiam? Como é que os animais sabem? Nós, humanos, na generalidade dos casos não sabemos e, para cúmulo, tendemos para amar a degeneração: permanece na mente o modelo nazi, a eleger o branco, louro, de olhos azuis. Esses modelos inculcam dois ideologemas: o da superioridade de certos grupos humanos e o da pureza racial. A pureza, seja racial ou outra, é moeda sem valor, e muito difícil de alcançar. Como escreve certa minha conhecida, «nem o álcool absoluto é puro a 100%»; se for álcool puro a 80% já conserva na perfeição.

Nós, humanos, não sabemos, salvo alguns interessados, para além de povos primitivos e cientistas. Mas os paínhos, que são umas aves que também nunca foram à escola, como os primitivos, se não sabem, mesmo sem saberem saem da sua própria colónia e buscam os companheiros noutra, evitando assim os perigos da consanguinidade.

É muito fácil falar da arte quando a arte, como a de Manuela Jardim, nos puxa pela língua. E a arte dela tem aspetos conversantes, uma série de panos até tem o título de «cromofonias». É parte da miscigenação, esta de criar neologismos e de imaginar que as cores têm caraterísticas sonoras como os animais falantes. Aliás a imaginação pode provir de forças mais profundas, visto que a sonoridade da cor, ou a cor do som, é algo que se manifesta em diversos poetas, haja em vista Rimbaud, com o seu famoso poema dedicado às cores das vogais; diz ele que o A é negro, branco o E, vermelho o I, que o U é verde e azul o O:

 

VOYELLES 

A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu : voyelles,

Je dirai quelque jour vos naissances latentes :

A, noir corset velu des mouches éclatantes

Qui bombinent autour des puanteurs cruelles,

 

Golfes d'ombre ; E, candeur des vapeurs et des tentes,

Lances des glaciers fiers, rois blancs, frissons d'ombelles ;

I, pourpres, sang craché, rire des lèvres belles

Dans la colère ou les ivresses pénitentes;

 

U, cycles, vibrements divins des mers virides,

Paix des pâtis semés d'animaux, paix des rides

Que l'alchimie imprime aux grands fronts studieux ;

 

O, suprême Clairon plein des strideurs étranges,

Silence traversés des Mondes et des Anges :

- O l'Oméga, rayon violet de Ses Yeux !

 

Miscigenação com a poesia, e portanto com outra arte, as «Cromofonias» de Manuela Jardim. Além dela, aparecem os frutos dos inevitáveis cruzamentos culturais, patentes na cruz de Cristo e outros sinais dos Descobrimentos, misturados com imagens de África. E há ainda a miscigenação táctil, física, provinda dos materiais usados, que não se limitam à cor, forma e suporte: a escultora fabrica o seu próprio suporte, caso do papel artesanal, usa objetos, fio, linhas, que costura ou cola no pano, enfim, não se disse que o pano, no sentido de «batique», o pano usado pelas africanas como roupa é um dos objetos mais envolventes na exposição, e um dos que mais transpira africanidade.

In: http://www.pervegaleria.eu/home/index.php/casa-da-liberdade-mario-cesariny.html

Manuela Jardim nasceu na Guiné-Bissau, facto que só por si não tem capacidade para construir africanidade. Nem ela realmente pretende construir tal, nada na exposição move a pensar em imitação ou sequer em descrição. A modernidade da escultora e pintora é demasiado visceral para lhe permitir exercícios de mimetismo. Então, África está presente de forma subtil, evidente, delicada, mas sem cópias. Os panos não são panos, as múmias não são múmias nem egípcias, porém o espírito de Rá é bem capaz de ter casado com o espírito do guineense Irã... 

Modernidade, sim, mas sinto pena que o seja tanto, porque Manuela Jardim usa e fabrica os suportes de quadros e escultura e eles são efémeros e perecíveis. A pasta de papel vai durar quantos anos? Uma vez senti um grande desânimo ao ver as salas interiores de um museu de ar livre, o Museu Vostell, em Malpartida de Cáceres, um entre vários monumentos da arte mais vanguardista: o cartão envelhece, objetos em materiais pobres tornam-se velharias decadentes em pouco tempo, quando o que esperamos da arte não é que envelheça, sim que se torne antiga.  

Quem está de parabéns por esta bela exposição, mais do que Manuela Jardim, é a Guiné-Bissau. Já a sua música vem sendo considerada das melhores de África; «... na feliz miscigenação das coisas» prova que também as artes plásticas se situam em plano muito alto.  

Um recado à artista, demasiado modesta: pense em usar materiais que perdurem, seja um bocadinho vaidosa... Que as suas múmias sejam capazes de vencer milénios, como as egípcias, eis o que a sua arte merece.

Manuela Jardim ladeada por duas das suas esculturas em papel reciclado.
In:
http://inclusaoecidadania.blogspot.pt/2010_05_01_archive.html
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Maria Estela Guedes (1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov

Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da Sociedade Portuguesa de Autores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV.

LIVROS

“Herberto Helder, Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979;  “SO2” . Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”, Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa, 1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários : Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora, 1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”. Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007; “Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Geisers”. Bembibre, Ed. Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos em Portugal”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010. “Tango Sebastião”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2010. «A obra ao rubro de Herberto Helder», São Paulo, Editora Escrituras, 1010; "Arboreto». São Paulo, Arte-Livros, 2011; "Risco da terra", Lisboa, Apenas Livros, 2011; "Brasil", São Paulo, Arte-Livros, 2012; "Um bilhete para o Teatro do Céu", Lisboa, Apenas Livros, 2013; Folhas de Flandres,  Lisboa, Apenas Livros, 2014; dir. CadeRnos SuRRealismo Sempre, na Apenas Livros. Nessa coleção, "Surrealismo incertae sedis, 2015".

ALGUNS COLECTIVOS

"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte. “O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual. Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”. Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009. Entrada sobre a Carbonária no Dicionário Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal, Lisboa, Gradiva Editora, 2010; «A minha vida vista do papel», in Ana Maria Haddad Baptista & Rosemary Roggero, Tempo-Memória na Educação. São Paulo, 2014.

TEATRO

Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez  e interpretação de Maria Vieira.