Henrique Dória é um poeta dos símbolos. Na
contracapa de Súbita iluminação, livro que hoje nos ocupa, diz ele que na revista
Vértice Joaquim Namorado lhe mostrou “os caminhos do surreal
neo-realismo”, nos quais se tem mantido. No caso do domínio do
símbolo, é bem certo que o autor mergulha nas mesmas águas
simbólicas em que navegaram André Breton e Salvador Dali, lá fora, e
António Maria Lisboa, com a sua Metaciência, cá dentro.
Perfilho a tese de que a poesia é a mãe de
todos símbolos, parece então redundante afirmar que Henrique Dória é
um poeta deles; parece mas não é, convém dizê-lo, porque de entre as
muitas tendências poéticas, as realistas evitam essa carga
misteriosa, que as afasta da descrição do mundo físico; certos
poetas mais ligados ao signo e às características formais do poema
também podem pôr de parte o que desvia a atenção para os elementos
mentais da escrita; e depois, mesmo dentro do campo da simbólica, há
zonas mais gerais e outras mais restritas: o mesmo símbolo pode
receber carga semântica diferente consoante a grelha de leitura:
cristã, maçónica, psicanalítica ou outra.
Poetas do símbolo são geralmente aqueles que
buscam na palavra uma origem divina ou a sua natureza religiosa.
Aliás, se virmos bem, as três religiões fundadoras da nossa cultura
fundam-se elas mesmas na escrita e na origem divina dos seus
mandamentos, expressos em tábuas da Lei, isto é, escritos em
tabuinhas ou em panos, caso este da transmissão ao Profeta dos
mandamentos corânicos. A Palavra, tal como o Verbo, bem sabemos que
na nossa cultura católica representam os patamares mais altos. E
porque assim é, a “súbita iluminação” do leitor face ao livro assim
intitulado é a de compreender que o maior valor para Henrique Dória
é a obra, primeiro dos três lances da jornada que nos apresenta para
a alcançar. Esclarecendo:
Súbita iluminação reúne cinquenta poemas desenvolvidos em três
fases: “A obra”, “O corpo” e “O fim”.
Por muito que a queiramos entender como
opus magnum, a verdade é
que a obra magna do
escritor só pode ser aquela que se exprime pelos símbolos verbais:
carateres, sinais e orações. Daí que nessa primeira parte, “A obra”,
se diga que “a minha escrita é o canto do grou”, que na sepultura
perdurará o “lume das palavras”, que a tentação não vem nem de
mulheres nem do ouro, sim da página – e essa é a tentação do amor.
Transcrevo um excerto de hino à noite do poema “Criar a luz”, que
continua a iluminar-nos neste assunto em que o poeta trata a língua
como meio de comunicação com deuses e anjos, enfim, com uma
realidade que supera o quotidiano para penetrar na esfera do
religioso:
Noite, ó noite transbordante! Vem incendiar
A língua
Que não se recolhe
Com medo de perder as palavras
- É quanto pedimos
Para não sermos um logro
Sob o azul olhar dos anjos.
Noutros livros de Henrique Dória, símbolos
como o «mar de bronze» apontam numa direção especificamente
maçónica. Em «Súbita iluminação», em que existem situações
paralelas, o âmbito do símbolo deriva para algo diferente, porque o
mais impressionante grupo verbal dinamizado por um símbolo
tipicamente maçónico, a espada flamejante, escapa à dicionarização
para assumir estatuto anímico, ou psicanalítico, se preferirmos.
Desde o título, com o termo “luz”, o veio mais forte, entre os
quatro elementos, é o fogo. A espada flamígera, ou flamejante, foi a
usada pelo anjo que puniu Adão e Eva. O instrumento de justiça
castigou com o exílio para longe do Paraíso. Noutra perspetiva, a
espada flamejante executa a sentença afastando Eros de Psique. A
cultura católica, ao aceitar a relação sexual apenas no matrimónio,
suprime o erotismo, que o mesmo é dizer que a salvação de Psique só
é possível com o desaparecimento de Eros.
O que acontece em seguida é que, ao lado de
um instrumento de corte cujo gume é o fogo, aparecem cenas de
mutilação das mãos. Em idênticas circunstâncias, vemos asas
arrancadas, vamos dizer que asas de anjos, e recordemos que Eros, em
especial na versão de Cupido, é um anjo, um deus-menino cuja
emblemática são as asas, além das flechas e da venda. A mutilação
pode ser interpretada como sinal de impotência, preferencialmente
impotência política. As notações cívicas são de assinalar em
Henrique Dória, típicas do neo-realismo que reclama, se bem que
também o surrealismo se tenha sublevado contra a ditadura; neste
campo, o que mais fortemente surge é o 25 de Abril, bom augúrio para
o nascimento de um filho a 9 de maio de 1974. Assim, a criança
torna-se também ela um símbolo, ao abrir os olhos num país
finalmente em liberdade.
Mais de quarenta anos volvidos sobre as
canções de Zeca Afonso, evocadas por Henrique Dória, é bem possível
que o sentimento de liberdade tenha cedido a voz ao sentimento de
estar separado de si mesmo, com a mão suspensa, como se à distância
do seu próprio olhar. O sentimento de alguma coisa ter sido cortada
em duas, de o poeta ter perdido não só as mãos como as asas,
aprofunda-se em drama com a imagem de objetos cortantes, a faca e
essa espada flamejante que anuncia o fim do Paraíso.
As imagens de mutilação aparecem ao longo do
livro, como um leitmotiv, vejamos algumas mais óbvias: “A faca e a
foice que nos cortará / As mãos”, os “anjos que nos seguem / Trazem
cortada uma asa”, “A ambas cortará / O espelho sangrento / Do meu
próprio eu”. A mutilação pode apontar o feminino como em “Usou um
motor que cortava/ Os seios”, e neste caso, poema intitulado “Após
Goya”, ficamos a saber que o objeto cortado, mutilado e despedaçado
é a alma. Diversas vezes no livro aparece esse termo, “alma”. Psique
não podia ver o rosto do esposo, Eros. No momento em que quebrou o
interdito, deixando-se deslumbrar com a sua beleza, Eros desapareceu
e com ele o paraíso em que até ali tinham vivido.
Apetece saltar por cima de interpretações
várias da mutilação, simbólica estranha em poesia, para ir ao
encontro de uma voz que nos interpela de um outro plano, também
espiritual e também relacionado com o mito, mas mais propriamente
filosófico, e a filosofia é um dos patamares em que se ergue o
pensamento de Henrique Dória, por isso também a sua poesia. Partimos
para aí apesar da paixão, e sobretudo da grande emotividade destes
poemas, que por momentos nos enternecem, tal a sua candura:
Às vezes, das nossas mãos
Nasce uma constelação
E ficamos felizes como pequenos
Cães acariciados
O livro está incrustado de constelações como
estas, achados poéticos capazes de deixar o autor feliz como um
cachorrinho acariciado, achados que nos fazem inveja. Temos de
saltar sobre eles para fechar num anel estas palavras, e o anel é
platónico, religa-se a O
banquete, livro em que diversos convivas debatem o tema do Amor.
Ora a nossa súbita iluminação, face à espada flamejante, é a de
separar as duas metades do ser, e isto refere Platão. É um homem do
teatro, Aristófanes, quem n’O
banquete apresenta a versão de que o Amor é a procura da nossa
outra metade, separada por castigo dos deuses na origem dos tempos.
Muito atual este debate, que naturaliza a questão da
homossexualidade e garante a antiguidade de algo que hoje em dia é
muito referido pelos psicólogos e psicanalistas nos meios de
comunicação: nós somos bissexuais na origem, a orientação sequente
depende do constrangimento social. A percentagem de heterossexuais e
de homossexuais puros é mínima. A reação de alguns é tomar por moda
estas observações, como se fossem frivolidades para esquecer
depressa, mas elas já decorrem de hipóteses psicanalíticas do século
XIX e, de outro lado, foram intuídas pelos filósofos antigos.
Na linguagem de Platão, o que se conta é que
na origem do mundo havia três tipos de seres humanos: um formado por
duplos masculinos, outro por duplos femininos, e outro por seres
duplos de masculino e feminino, os andróginos. Deus castigou os
homens dividindo-os ao meio, daí que o Amor seja a busca da nossa
outra metade, seja ela o duplo feminino da mulher, o duplo masculino
do homem ou a outra parte do andrógino.
No caso da
Súbita iluminação de
Henrique Dória, o que será a faltosa metade do poeta, que o leva a
empreender a sua procura? É com a solidão por falta dessa amada que
termino, deixando a outros intérpretes
a descoberta, aliás a súbita
iluminação quanto a esse assunto. De qualquer modo, a solução do
enigma, espelhada em personagens de
Homero, vem no poema intitulado “Lamento de Odisseus”:
A tua boca é um búzio
De onde me vem o som do mar
E a água doce
Longínqua Penélope.
O teu corpo é a ilha da salvação
A ilha da aurora
De róseos dedos.
Dos teus cabelos espalhados sobre o Egeu
Nasce o coral
Três vezes coroado.
Perdido conheci a solidão do amor
A solidão da morte
Mas nenhuma delas comparável
À solidão da minha alma
Longe de ti – longe de si própria.
Eu, o eterno inquieto
Ter-me-ei perdido para sempre
Serena Penélope?
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Maria Estela Guedes
(1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov
LIVROS
“Herberto Helder,
Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979; “SO2” .
Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler
Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”,
Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial
Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa,
1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria
Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À
Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de
Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu
Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários :
Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em
colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora,
1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”.
Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas
Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis
Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007;
“Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na
Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”.
Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Geisers”. Bembibre, Ed.
Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas
modernos em Portugal”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010.
“Tango Sebastião”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2010. «A obra ao
rubro de Herberto Helder», São Paulo, Editora Escrituras, 1010;
"Arboreto». São Paulo, Arte-Livros, 2011; "Risco da terra", Lisboa,
Apenas Livros, 2011; "Brasil", São Paulo, Arte-Livros, 2012; "Um
bilhete para o Teatro do Céu", Lisboa, Apenas Livros, 2013;
Folhas de Flandres, Lisboa, Apenas Livros, 2014; dir. CadeRnos
SuRRealismo Sempre, na Apenas Livros. Nessa coleção, "Surrealismo
incertae sedis, 2015".
ALGUNS COLECTIVOS
"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de
Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom
homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte.
“O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual.
Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”.
Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009.
Entrada sobre a Carbonária no Dicionário Histórico das Ordens e
Instituições Afins em Portugal, Lisboa, Gradiva Editora, 2010; «A
minha vida vista do papel», in Ana Maria Haddad Baptista & Rosemary
Roggero, Tempo-Memória na Educação. São Paulo, 2014.
TEATRO
Multimedia “O
Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação
Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação
de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de
Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de
Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando
Alvarez e interpretação de Maria Vieira.
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