Há muitos anos, nos tempos em que se preparava o
multimédia O lagarto do âmbar, com texto meu, o João Grosso dizia
que adorava encenar ele uma peça em que houvesse ações simultâneas em
diversos apartamentos de um prédio. Esta é a estrutura da peça
Claraboia, adaptada de um texto de José Saramago, que dá lugar a uma
cenografia incomum: um prédio em corte, para se ver o interior de seis
apartamentos, em três andares. A claraboia, ao dar claridade, imita o
simbólido olho de Deus - é o panóptico que permite, seguindo
literalmente o sentido da palavra, ver tudo.
A peça está lindamente
dirigida por Maria do Céu Guerra, tudo corre na perfeição, com atuações
corretas, por vezes cómicas, outras vezes dramáticas, merecendo todos a
salva de palmas em pé de um público que lotou a sala e lutou para nada
perder de vista nem de ouvido, quando havia sobreposição mais forte de
cenas.
O principal fascínio da
peça assenta numa perversidadezinha muito humana que é a de gostar de
saber o que se passa em casa dos outros, ficar a olhar para as casas
isoladas na paisagem quando se passa de comboio, a imaginar que pessoas lá
moram e como será a sua vida. Temos sempre a miragem de um Éden por detrás
da graça de umas cortinas corridas ou de um reposteiro de trepadeiras
verdes a cobrir varandas.
O panóptico de Claraboia
satisfaz o nosso voyeurismo, que nunca é simples, nunca é uma curiosidade
focada num aspeto só, o idílio de um par romântico atrás da persiana, ou a
visão de um punhal a cair sobre um peito indefeso, ou uma cena picante, de
cravo num cinto de ligas a realçar as meias pretas. A curiosidade pode ser
mais ampla, exigir um "Como viviam as pessoas da classe média nos anos
cinquenta?"
A claraboia é o olho de Deus. Impávido, implacável. O
voyeurismo de Saramago, satisfazendo todos os olhares, é no entanto de
predominância política. A classe média vivia mal, tinha de recorrer a
expedientes e no seu espectro mais amplo apresentava uma moralidadezinha
sórdida. No outro lado, escondendo-se da Censura, esboça-se a revolução de
esquerda, como era de esperar num autor como José Saramago.
Vale a pena ir ver, é teatro de costumes no seu melhor. |
Maria Estela Guedes
(1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov
Membro da Associação Portuguesa de Escritores,
da Sociedade Portuguesa de Autores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV.
LIVROS
“Herberto Helder,
Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979; “SO2” .
Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler
Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”,
Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial
Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa,
1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria
Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À
Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de
Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu
Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários :
Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em
colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora,
1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”.
Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas
Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis
Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007;
“Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na
Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”.
Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Geisers”. Bembibre, Ed.
Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas
modernos em Portugal”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010.
“Tango Sebastião”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2010. «A obra ao
rubro de Herberto Helder», São Paulo, Editora Escrituras, 1010;
"Arboreto». São Paulo, Arte-Livros, 2011; "Risco da terra", Lisboa,
Apenas Livros, 2011; "Brasil", São Paulo, Arte-Livros, 2012; "Um
bilhete para o Teatro do Céu", Lisboa, Apenas Livros, 2013;
Folhas de Flandres, Lisboa, Apenas Livros, 2014; dir. CadeRnos
SuRRealismo Sempre, na Apenas Livros. Nessa coleção, "Surrealismo
incertae sedis, 2015".
ALGUNS COLECTIVOS
"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de
Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom
homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte.
“O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual.
Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”.
Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009.
Entrada sobre a Carbonária no Dicionário Histórico das Ordens e
Instituições Afins em Portugal, Lisboa, Gradiva Editora, 2010; «A
minha vida vista do papel», in Ana Maria Haddad Baptista & Rosemary
Roggero, Tempo-Memória na Educação. São Paulo, 2014.
TEATRO
Multimedia “O
Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação
Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação
de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de
Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de
Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando
Alvarez e interpretação de Maria Vieira.
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