Orfeu
é uma entidade secreta para muitos de nós, porque dá nome aos mistérios
órficos, dos quais pouco se conhece, além de alguns hinos em honra de
Dionísio que nos deixam supor tratar-se da sua divindade central. Sabemos
porém que o termo «mistérios» indica práticas religiosas ou afins, algumas
delas abertas só aos iniciados. Sabemos algo mais ainda: que a tragédia
nasce nas orgias, festas dedicadas a Dionísio, que teatro e ritual se
identificam em vários aspetos, daí talvez que muito do que acabo de
referir tenha expressão atual, não só na arte e cultura geral, como nos
rituais maçónicos. O mito de Orfeu, como outras heranças gregas, além das
egípcias, cristãs, hebraicas, etc., faz parte da cultura maçónica e é
representado em certos ritos.
No livro de poemas de Ana Pinto, O
rosto de Orpheu,
o ritual a que visa aceder a encenação da história de Orfeu e Eurídice,
secreto, só para iniciados, é o amor. Para a autora, a descida ao Hades é
a descida ao corpo, a penetração do outro:
e leve, leve –
desço em ti, inicio-me.
O corpo, os
braços, o ventre, as pernas, os pés
Penetro.
Apesar de se invocar mais o amor do que a
orgia, o deus do excesso e da transgressão tem o seu lugar no livro, com a
substância própria para induzir a embriaguez sagrada. Um poema de apenas
quatro versos dá-nos a medida de Dionísio e da capacidade criadora de Ana
Pinto com o material linguístico, o qual nos transmite uma grande
sensorialidade, sobretudo visual, atenta às cores e às texturas. Vejamos
então como se comporta o deus da vegetação, coroado com folhas de videira,
esse que as bacantes invocavam gritando «Evoé! Evoé! Evoé!»:
Dentro dos vasos
do denso mosto
brilham grãos de
sal e de sol
Dionysos lança o
riso sobre a cordilheira:
o abismo fica
rente à luz
Orfeu, com Eneias e Teseu, é um dos três únicos
heróis a terem conseguido penetrar na morada dos mortos e dali sair com
vida. Ele entrou por ter seduzido com o canto os guardiões do Hades.
Comovidos, os deuses das zonas ínferas deixaram-no ir buscar Eurídice que
sucumbira à mordedura de uma serpente venenosa. Havia porém um compromisso
para o sucesso da operação: no caminho de regresso à luz, seguido por
Eurídice, Orfeu não podia olhar para trás. Sabemos que ele não resistiu à
curiosidade e olhou, a ver se a amada o seguia, se os deuses tinham
cumprido a palavra. Ainda a viu, mas logo a perdeu ali para sempre, pois
os deuses não aceitaram que tivesse duvidado da sua palavra.
Olhar para trás pode ser instrutivo, não devemos
perder a memória do que aconteceu. Mas o olhar deve preferencialmente
dirigir-se para a frente, de modo ativo, em busca do novo e não do
passado. E precisamos de coragem para construir o futuro, não devemos
olhar para trás com medo, ou a ver se nos segue os passos quem melhor do
que nós cumpra tal missão. Ana Pinto interpreta o olhar retroverso numa
perspetiva temporal e não espacial, mas as valências são pessoais e algo
enigmáticas, ao negarem o que afirmam. Eis o que a propósito ela escreve:
Não canto os cantos: eles cantam-se eles
mesmos.
O advir está morto. Eu sou o presente do advir:
o corpo do tempo tem olhos
que não podem ver o que já se foi – se me volto
tudo se desmorona.
A história de Orfeu e Eurídice é das mais tratadas
em todo o mundo e em todas as modalidades da arte, com mais abundante
expressão na música. Entre nós, Orfeu teve uma célebre revista a
homenageá-lo, em 1915, que apresenta alguns dos nossos mais importantes
poetas e que escancarou as portas à modernidade. Ainda em língua
portuguesa, em 1959, refira-se o inesquecível
Orfeu negro, de Marcel Camus, baseado numa peça de teatro de
Vinícius de Morais, Orfeu da
Conceição. Rodado no Brasil em tempo de Carnaval, conta com música
verdadeiramente órfica de Tom Jobim, entre outros compositores. Tão
inspirada a obra, que alcançou uma Palma de Ouro em Cannes e um Óscar para
melhor filme estrangeiro. O que a domina é o poder encantatório da música,
exatamente como no mito grego. A dado passo, uma criança pergunta a Orfeu
da Conceição: «É verdade que você faz o Sol levantar-se tocando violão?» O
poder de transmutar através da beleza é cultivado também por Ana Pinto,
numa vertente dionisíaca da arte que exalta a juventude e as forças
naturais.
Orfeu é o ideal do artista que ao mesmo tempo
tange, canta e compõe poesia. É a lira que une os cantos. Orfeu, diz a
lenda, encantava de tal maneira com a sua arte que, para o ouvirem, os
animais selvagens aproximavam-se, as árvores inclinavam os ramos para ele,
os regatos mudavam de curso e as próprias pedras se comoviam. Em suma, o
encantamento produzido pela arte transforma as pedras brutas em seres
polidos. Dir-se-ia que o navio dos símbolos navega no oceano dos ideais e
das ideias sem suporte sob os sapatos, mas não. Para o documentar, gostava
de contar uma história que testemunhei nos seus lances atuais.
As Missões de Chiquitos, na Bolívia, fazem parte
de um outrora muito vasto território ocupado pelos jesuítas. Restam ruínas
dessas reduções no Brasil e noutros países contíguos da América do Sul. Na
Gran Chiquitanía não são ruínas, as igrejas e anexos, em cinco ou seis
povoações, distantes umas das outras os trinta quilómetros típicos da
redução jesuítica, estão funcionais. A construção é toda de madeira
pintada e talhada, podemos visitar as missões e mesmo assistir à missa,
para nos deslumbrarmos com a beleza que entra pelos olhos mas sobretudo,
no caso, com a que ouvimos.
Os índios Chiquitos ficaram famosos por se terem
deixado converter ao cristianismo através da música e não da catequese nem
da pregação. Adoravam cantar e tocar e cantavam como anjos, reza a
literatura. É conhecida a história do órgão transportado desde Potosí, no
nordeste, até à missão de San Javier, na Chiquitanía, a sudeste. Potosí é
uma das cidades do planeta construídas a maior altitude, quase quatro mil
metros. O órgão, desmontado e
carregado em burros, teve de descer quilómetros de montanha e depois
percorrer entre seiscentos a mil quilómetros, calculadas as distâncias
pelos itinerários de hoje. Tal órgão ainda existe, bem como a tradição do
canto nas igrejas. Mais do que isso: nas Missões de Chiquitos realiza-se
anualmente um importante festival de música barroca, durante o qual se
publicam pautas reaparecidas do seu sono de décadas na antiga biblioteca
dos jesuítas. No século XVIII, os índios cantavam e tocavam a “música da
alma”, como é chamada a música barroca, e tocavam-na em instrumentos que
eles mesmos fabricavam, e o mesmo acontece ainda hoje. Na minha visita, há
cinco ou seis anos, pude ouvir um menino índio e o pai a tocarem órgão em
San Javier. O filho, adolescente, já se preparava para passar ao futuro o
testemunho de que a música e a poesia, na sua dimensão órfica, têm
realmente capacidade para converter, para humanizar pedras, rios e povos
selvagens.
A aliança entre a tradição e o inexplorado é
própria da modernidade. Daí que Ana Pinto apresente uma simbologia muito
mais trabalhada do que a sugerida no título do livro,
O rosto de Orpheu. Ao dizer
isto, avanço já com uma das diretrizes da autora, muito forte, o
conhecimento da simbólica e o seu uso deliberado. Podemos falar dela desde
as coisas e seres pertencentes à Grande Deusa, a Terra Mãe, como as
pedras, as aves, as fontes, os rios, as plantas, e mesmo o sal, o ouro e o
enxofre, até algo mais cristalizado, quando entra em cena o arquiteto,
perito na Geometria, como revelam ferramentas como o fio, o esquadro e o
compasso. Neste plano, arquiteto, pedra, sal, sol e água ganham maior
definição de contornos, gestos como dar as mãos desenham figuras
geométricas que por isso atravessam a ponte que une os ritos antigos aos
modernos. Deste ponto de vista, o poema XXV é emblemático:
Arquiteto a ponte
dos planaltos
Flanco e aliança de
dois mundos, recta
e plástica em seus
metais e filigranas
Sustidas margens
raiadas pelo cerúleo e pelo nácar,
Dela se erguem os
titãs e o rio e a memória.
Ponte onde a tua
imagem é água límpida, onde o céu resvala
pelo vácuo das
estrelas, ponte aérea e elíptica.
Ponte onde te chamo
Abissal alicerce,
sobre ti
trespassam alados
sedentos da foz.
E dou-te as mãos. A
estrutura. O compasso.
Assim te ergo da
gravidade úbere contra a grande massa
celeste – ergo-te
como um sonho.
Desde as nebulosas,
viajo. Por onde o céu se derruba
em reflexos cúbicos,
por onde desce azul a música, viajo.
Ponte que une dois
mundos como um beijo:
Ocultamente
habito-te – desde a margem, cascata
Granítica – aos teus
lapidados jardins circulares.
Elemento que ao longo do livro insiste em
aparecer, com cunho bíblico, relativo à construção e criação, é o barro, a
lama primordial de que foram feitos Adão e Eva. Matéria-prima original, o
barro (e não o chumbo) vai-se depurando na Obra. De vários modos surge a
ideia de operação transmutatória, de passagem do vil ao nobre, ou da casca
grossa da árvore à bela peça polida de marcenaria.
Simbólica e retorno aos mitos clássicos seriam um
exercício algo frígido se o rosto de Orfeu de Ana Pinto não fosse o do
poema, o dela, o nosso, o humano rosto de uma Eurídice que se funde com
Eco e de um Orfeu tão mergulhado no espelho das águas que lhe ouvimos o
canto a desaparecer em apenas últimas sílabas:
Confundo-me com o
eco e o eco clama: Eurydice, Eurydice
Acordes despontam
gemas aquáticas
sob a pele da
neblina
navegam cristais que
aéreos se fundem
A brisa assobia e
aflora:
O rosto de Eurídice.
O meu rosto. Orpheu.
|
Maria Estela Guedes
(1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov
Membro da Associação Portuguesa de Escritores,
da Sociedade Portuguesa de Autores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV.
LIVROS
“Herberto Helder,
Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979; “SO2” .
Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler
Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”,
Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial
Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa,
1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria
Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À
Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de
Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu
Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários :
Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em
colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora,
1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”.
Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas
Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis
Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007;
“Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na
Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”.
Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Geisers”. Bembibre, Ed.
Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas
modernos em Portugal”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010.
“Tango Sebastião”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2010. «A obra ao
rubro de Herberto Helder», São Paulo, Editora Escrituras, 1010;
"Arboreto». São Paulo, Arte-Livros, 2011; "Risco da terra", Lisboa,
Apenas Livros, 2011; "Brasil", São Paulo, Arte-Livros, 2012; "Um
bilhete para o Teatro do Céu", Lisboa, Apenas Livros, 2013;
Folhas de Flandres, Lisboa, Apenas Livros, 2014.
ALGUNS COLECTIVOS
"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de
Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom
homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte.
“O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual.
Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”.
Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009.
Entrada sobre a Carbonária no Dicionário Histórico das Ordens e
Instituições Afins em Portugal, Lisboa, Gradiva Editora, 2010; «A
minha vida vista do papel», in Ana Maria Haddad Baptista & Rosemary
Roggero, Tempo-Memória na Educação. São Paulo, 2014.
TEATRO
Multimedia “O
Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação
Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação
de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de
Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de
Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando
Alvarez e interpretação de Maria Vieira.
|